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Novos tenentes*


Por Fernando Molica em 21 de junho de 2023 | Comentários (0)

A leitura dos arquivos do celular do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência da República, ajuda a confirmar algo que vinha sendo muito discutido. Apesar da complacência e mesmo estímulo de alguns oficiais-generais à tentativa golpista, o apelo para uma virada de mesa vinha, principalmente, de oficiais mais jovens. O fato ressalta a necessidade de a sociedade discutir o processo de formação dos militares, algo que não pode ser definido apenas por integrantes de uma corporação criada e mantida pelo Estado.

Articulações e mobilizações que envolveram majores, tenentes-coronéis e coronéis remetem ao Movimento Tenentista que, a partir da década de 1920, foi decisivo nos rumos da vida brasileira e radicalizou a influência militar na política. A partir da Marcha dos 18 do Forte, outras revoltas explodiriam no país. O tenentismo foi decisivo na Revolução de 1930 e na ascensão de Getúlio Vargas. Anos depois, alguns de seus representantes atuaram na crise que levou ao suicídio do próprio Vargas; do mesmo grupo saíram líderes das articulações para o  Golpe de 1964.

O tenentismo consolidou nos quartéis a ideia de que militares são mais preparados para governar. Caberia a eles o direito de, no mínimo, tutelarem o poder civil. Nos jornais das décadas de 1940 e 1950 havia, praticamente todos os dias, declarações políticas de oficiais-generais. A submissão do país ao poder militar foi escancarada na ditadura entre 1964 e 1985, mas ainda está presente. As marcas estão na Constituição e na permanência de uma visão corporativa dos próprios militares. O viés ideológico que rejeita visões de mundo à esquerda e a adesão ao governo de Jair Bolsonaro são provas cabais dessa postura.

O governo anterior foi marcado pela volta dos militares ao noticiário; suas opiniões, declarações e notas passaram a ser lidas com atenção e preocupação. O Ministério da Defesa e/ou os comandos militares soltaram notas em apoio à democracia, algo desnecessário numa democracia consolidada. Numa delas, divulgada em novembro, as três forças falaram que atuaram como “moderadoras” na história brasileira, referência a um poder que não têm.

A confusão institucional, a politização das Forças Armadas, o risco de uma ruptura no processo democrático e o retorno de ares tenentistas mostram que passou da hora de o poder civil se impor. Não se trata apenas de melhorar o orçamento militar e investir em novos equipamentos, a lógica não pode ser a mesma empregada para buscar apoio no Congresso, ainda mais num país em que a maior parte dos gastos no setor é consumido com despesas de pessoal.

Ontem, num debate, o ministro da Defesa, José Múcio, falou que “a Academia” lhe cobra modificações. A referência a setores acadêmicos indica que as  mudanças seriam no processo de formação militar.  Múcio disse que isso precisa ser feito com cuidado para não causar fissuras.  Sim, não se trata de algo simples, mas que não pode ser mais adiado. Os que ganham da sociedade o dever e o direito de portar armas têm que respeitar limites institucionais e abandonar de postura de que são superiores ao mundo que chamam de paisano. Precisam também superar a visão dualista, de bem contra o mal, herdada da Guerra Fria. O centenário tenentismo tem que ficar no passado, não serve pro século 21.

*Artigo publicado no Correio da Manhã, 20/06/23.

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