O Botafogo ou a vida
Por Fernando Molica em 30 de novembro de 2023 | Comentários (2)
Torcer para um time de futebol é como crer em signo do zodíaco, no tarô e, no limite (e olha que não consigo ser ateu), em deuses, santos, orixás. Com o tempo, passamos a nos adaptar ao que mitologias dizem que somos: aquariano, filho de Deus e/ou desse orixá.
A gente acaba dando um jeito de entrar no figurino que escolhem ou escolhemos para vestir – aperta aqui, encolhe a barriga, e mais isso e aquilo. Um dia percebemos que não conseguimos mais nos separar da roupa/fantasia que nos veste e habita, somos uma unidade.
Precisamos nos identificar com algo que nos preceda e que vá além de nós. Os mitos facilitam nossa necessidade de ter alguma referência no mundo, de explicar o jeito que agimos, que somos.
Nesse sentido da transcendência, nada pra mim é mais significativo do que ser Botafogo. O radicalismo das cores – o preto da ausência e o branco da soma -, as listras paralelas que só se encontram no infinito, e a Estrela: única, solitária como cada um de nós nascemos e morremos.
Com o Botafogo aprendi a cultuar os ancestrais – Garrincha, Didi, Nilton Santos. A ver neles o meu pai e meu avô paterno, botafoguenses. E a descobrir neles meus dois filhos, alvinegros – não faz tanto tempo, jovens como aqueles garotos que, aqui pertinho de casa, fundaram o Botafogo.
Todos nós como Garrincha, escrevendo glórias com pernas tortas e impossíveis como a vida; guardiãs do segredo, dos mistérios. Deus não anda em linha reta; Xangô, orixá da justiça, imerso em sua vaidade, botou fogo na sua aldeia e decidiu a própria tragédia.
A fé nos ancestrais me fez resistir aos 20 anos sem um reles título carioca. Eu confiava, acreditava, estava no Maracanã naquele que foi, e é, um dos dias mais felizes da minha vida.
Sempre disse que antes de qualquer outra qualificação – carioca, jornalista, escritor – sou Botafogo. O figurino me servia com perfeição, mesmo nos momentos mais difíceis. Procuro, aqui, usar o verbo num passado. Hoje, pela primeira vez na vida, diante da sequência de quase inacreditáveis fracassos, depois do que aconteceu há pouco, talvez sinta a necessidade de algum rompimento com a lógica (mais que time, mais que clube) que tanto me fez e me construiu.
Nunca vou deixar de ser botafoguense, mas talvez seja preciso alguma separação, como alguém que, sem perder de todo a fé, sente a urgência de se afastar do destino que deixou nas mãos daqueles deuses. É quase impossível combinar racionalidade e fé, mas é preciso tentar não se tornar escravo de um culto que teima em ressaltar minhas limitações e meus fracassos, que me puxa para um abismo.
Acredito que, um dia, o Botafogo vai ressuscitar. Como no mito de Xangô, sobreviverá ao próprio suicídio. Mas, diferentemente dos deuses, não sou imortal, tenho apenas uma vida. E, em nome dela, preciso tentar dizer que sou botafoguense, mas não sou o Botafogo.
Não vai ser fácil, mas é preciso tentar. E, de maneira contraditória (o preto, o branco…), agora me dou conta que estou sendo dramático como são, como somos, os fiéis da Estrela Solitária. Vou tentar, prometo que vou.
Pois é, Beraba. Que porra é essa? Abração.
Fernando MolicaMolica, um texto muito sofrido, e por isso muito honesto. Aí estão todas as nossas contradições e dúvidas e enigmas e paradoxos e… Que porra é essa, esse tal de futebol?!?! Foda Abração
Marcelo