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O chute dos leitores


Por Fernando Molica em 05 de maio de 2014 | Comentários (0)

Artigo publicado em “O Globo” em 09/6/05:

“Vá entender leitor: não se diz, o tempo todo, que o público está cansado de más notícias, que ninguém agüenta mais ler/assistir informações sobre violência, corrupção, salários de parlamentares? Pois. Na última sexta-feira, O GLOBO publicou, em sua primeira página, uma foto que deveria fazer a alegria do Carlos, da Cynthia, do Claubert, da Laura, do Marcelo e de tantos e tantos outros leitores que mandaram cartas ao jornal para apoiar ou justificar a atitude do policial que deu um chute na cara de um bandido detido e algemado.

De uma ou outra maneira, com maior ou menor ênfase, a grande maioria das cartas dos leitores acha que é assim mesmo que devem ser tratados os marginais – com chute na cara, mesmo depois de dominados pelo Estado. Se eles acham isso mesmo, deveriam ter ficado alegres com a publicação da foto na primeira página do jornal. Deveriam, isto sim, ter mandado cartas e e-mails de apoio aos editores do GLOBO: enfim, uma boa notícia, um exemplo construtivo, que aponta para uma saída neste beco escuro em que todos vivemos.

Mas não. As cartas criticavam o jornal, ironizavam a suposta parceria entre jornalistas e bandidos; leitores ameaçavam até cancelar assinaturas. Daí o espanto que abre este texto: por que será que eles não queriam que o gesto do policial fosse divulgado? Por que viram a foto na primeira página como uma denúncia e não como um bom exemplo? O texto que acompanha a imagem é correto, equilibrado. Não xinga o policial, não classifica o bandido de ‘coitadinho’. Por que será que leitores viram na publicação da foto de Berg Silva um manifesto contra a violência policial?

Arrisco uma resposta: os tais leitores eram favoráveis à omissão da foto porque sabem que o gesto do PM está errado; envergonham-se de viver numa sociedade que, perplexa diante da violência, vê como única saída o abandono aos princípios básicos da civilização. Uma sociedade que, ao chutar o bandido, iguala-se aos marginais. Os leitores talvez, no fundo, envergonhem-se até mesmo de defender o que defendem – o que é errado a gente esconde, como disse aquele então ministro, o flagrado pela parabólica.

Ao defenderem um Estado marginal – porque feito à margem, fora da lei – cidadãos fazem uma aposta arriscada. Entregam aos homens calçados com aquelas botas o direito de meter o pé na cara de quem bem entendam, partem do princípio de que seus rostos – ou o rosto de seus filhos, de seus amigos, dos seus empregados – nunca serão atingidos pelo pontapé de um agente do Estado. Estão convictos de que nunca serão achacados, sofrerão extorsão, nunca serão – nem eles nem os seus – vítimas de um flagrante armado ou mesmo de um mal-entendido (ou será que nossa polícia é tão boa que só prende culpados, tão precisa que é incapaz de chutar, bater ou, admita-se, em tese, matar um inocente?). Os leitores das cartas têm certeza de que nunca serão detidos, nem precisarão, em benefício próprio, exigir o respeito aos direitos humanos; estão certos de que nunca correrão o risco de levarem tiros disparados a esmo em ruas da Baixada Fluminense.

Quando justificam e estimulam o comportamento ilegal dos agentes do Estado, os leitores contribuem para desvalorizar a PM, para humilhar a instituição e todos aqueles que nela trabalham e que, diariamente, em nosso nome, arriscam suas vidas. As cartas que apoiaram o chute na cara defendem uma polícia de atitudes clandestinas, inconfessáveis, feitas à sombra. Uma polícia que se envergonhe de seus gestos. Nas cartas, os leitores manifestam a incapacidade de admitir uma PM eficiente, que atue com firmeza, dentro dos parâmetros da legalidade. Uma instituição madura que saiba – como qualquer outra instituição – da impossibilidade de controlar todos os seus integrantes, mas que se mostre justa na apuração e punição de eventuais desvios.

Talvez os leitores que defenderam o PM do chute não tenham notado, mas a capa do GLOBO de sábado é tão interessante e didática quanto a da véspera. Registra o protesto contra a publicação da foto e, logo acima, destaca uma manifestação de parentes de vítimas da recente chacina na Baixada, que, ao que tudo indica, foi praticada por policiais militares. Os manifestantes usavam toucas ninjas iguais às utilizadas pelos autores da chacina, iguais às usadas na chacina de Vigário Geral e em tantas e tantas outras. As duas notícias – o protesto contra a foto e o registro da manifestação – são correlatas. A indignação dos leitores ajuda a entender a ocorrência das chacinas. Ao estimularem a violência do Estado, cidadãos se tornam um pouco responsáveis por uma polícia que não ousa mostrar o rosto e que pode chutar a cara de qualquer um de nós.

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