O dia em que Jango foi xingado pelos gaúchos
Por Fernando Molica em 23 de março de 2016 | Comentários (0)
Em 1994, repórter especial da ‘Folha’, fui escalado para ser o carrapato de Brizola que, pela segunda vez, tentava chegar à Presidência. Eu tinha que segui-lo em praticamente todas as suas viagens pelo país.
Foi uma campanha complicada. Desgastado por conta de sua atitude no processo de impeachment de Collor – ao contrário de outros líderes oposicionistas, ele nunca demonstrou entusiasmo pela retirada do presidente -, Brizola enfrentava o entusiasmo dos petistas ainda inconformados com a derrota de Lula em 1989 e os efeitos da derrubada da inflação pelo Plano Real, principal arma da campanha de FHC.
O velho líder trabalhista, que chegaria em quinto lugar na disputa, perdera força, suas viagens eram quase todas para o Rio Grande do Sul ou para cidades em que havia forte presença de gaúchos. Era constrangedor testemunhar como seu prestígio havia se deteriorado em apenas cinco anos – na eleição anterior, ele quase alcançara o segundo turno.
Muitas vezes, por falta de voos comerciais para algumas localidades, eu pegava carona no jatinho usado pelo Brizola. Um negócio meio complicado, mas que se revelaria muito interessante.
Brizola adorava falar no ‘fio da história’, tinha a percepção de que representava um pedaço daquele interminável novelo de lutas. Sentia-se responsável por um bastão que já fora empunhado por Vargas e Jango. E ele, para minha sorte, não se cansava de contar histórias. Já na sala de embarque, o homem que atraíra ódios e amores de tanta gente, começa a falar. Uma fala apaixonada, sedutora, vibrante – era como se ele, caudilho, reunisse seus homens em torno de uma fogueira para revelar segredos.
E foi numa dessas vezes que falou sobre a Campanha da Legalidade, ou, simplesmente, Legalidade – como Brizola preferia definir um dos mais espetaculares momentos da história republicana, o período em que ele, em 1961, governador do Rio Grande do Sul, se entrincheirou no Palácio Piratini, distribuiu armas para civis e usou um microfone de rádio para resistir a um golpe de estado, a resistência dos militares em permitir a posse de Jango na Presidência.
Num dos voos, Brizola narrou o balde de água fria que representou a decisão de Jango de aceitar a solução parlamentarista. Ele e aquelas milhares de pessoas reunidas diante do palácio sentiram-se traídos. Contou que, ao chegar a Porto Alegre, o ainda vice-presidente foi até uma das sacadas do Palácio Piratini para saudar o povo – e acabou sendo vaiado e xingado.
“Foi chamado de covarde”, relatou Brizola, gesticulando e reforçando o peso do ‘r’ que, alongado, parecia disparar rajadas de indignação na memória do cunhado e ex-presidente. “Mulheres que haviam passado dias na praça tiravam suas calcinhas e as ofereciam para ele. Diziam ‘Toma, é o que mereces, não honraste tuas calças'”.
Naquela noite – me disse Brizola -, Jango não conseguiu dormir sozinho. Horas depois de ser enxovalhado, o futuro presidente, que assumiria um cargo destituído de muitos poderes, foi para o quarto do marido de sua irmã Neusa, para o quarto do governador do Rio Grande do Sul. E, lá, ao lado do cunhado, adormeceu chorando.