O menino baiano de Praga
Por Fernando Molica em 14 de março de 2016 | Comentários (0)
Meu amigo adorava me chamar de complicado, de enrolado, dizia que eu sempre dava um jeito de deixar tudo meio confuso. Atribuía isso, em parte, à minha condição de torcedor do Botafogo. Ele exibia a tradicional marra rubro-negra, a falsa certeza do vencer-vencer-vencer. Eu, filho de mineiro e consciente dos infindáveis mistérios e possibilidades que há entre e o branco e o preto, sempre fui mais desconfiado.
Ele ressaltava minha enrolação, mas não conseguia explicar a própria origem. Isto, mesmo depois de tantos anos — 37! — de convivência, de tantas festas, de tantos bares, e de tantas cervejas (e vinhos, e uísques).
Ri muito quando, no ano passado, o jornal que ele comandava — o ‘Correio’, de Salvador –, o chamou de carioca. O sujeito nasceu num país, a Tchecoslováquia, que nem existe mais. Culpa da simpatia que o pai, o também jornalista Flávio Costa, nutria pelo socialismo. No meio de uma viagem em direção a Moscou tinha uma Praga no meio do caminho — e foi por lá que a Ieda, baiana como o marido, pariu o Sérgio.
Segundo ele, sua primeira certidão de nascimento registrava a chegada ao mundo de mais um Sergei. Ainda no primeiro dia de aula na Escola de Comunicação da UFRJ, ele descreveu o documento, que saudava mais um camarada que ajudaria a construir uma pátria sem amos, a tal da internacional.
Eu achava que o primeiro endereço brasileiro do meu amigo ficava em Salvador; outro dia me disseram que não, que sua família veio inicialmente para o Rio e, anos depois, mudou-se para a Bahia, pouso que seria trocado por Paris e pela Cidade do México. Depois, ele voltou para cá e, há sete anos, para a capital baiana. Um lugar era pouco para quem sempre soube chegar, que virava local assim que pisava em uma nova terra.
Tarefa facilitada por sua rara qualidade de ouvir mais do que falar, de prestar atenção no outro, de se esforçar para compreender o que não entendia bem. Oráculos e gurus se mantêm ligados às mudanças, sabem como é perigoso ficar rodando em torno das próprias certezas. Ele, criativo, avesso ao óbvio, tinha sempre novos caminhos para sugerir, um jeito simples de descomplicar pessoas e situações.
Meu amigo sempre foi generoso — nos elogios, na oferta de comida e bebida e na relação com a mulher, com os filhos, amigos e colegas. Roubando o mote de reportagem do ‘Correio’ e citando — só pelo Sérgio eu faço isso — o hino do Flamengo, friso que ele tinha prazer em nos ver brilhar. Meu amigo morreu há oito dias, e tudo ficou mais triste e complicado.
Estação Carioca, O DIA, 14/3.