O preconceito culposo
Por Fernando Molica em 03 de março de 2016 | Comentários (0)
Dois episódios recentes levantaram acusações de racismo: o primeiro foi a exibição, no Big Brother Brasil, de utensílio usado para lavar louça que tinha a forma de um boneco negro com cabelo black power. A outra grita surgiu quando a loja Reserva exibiu em suas vitrines manequins pretos pendurados de cabeça para baixo. A imagem remeteu às fotografias de negros enforcados por racistas no sul dos Estados Unidos.
Seria irresponsável acusar o BBB e a loja de racismo. Não dá para sequer acreditar na intencionalidade de manifestações tão caricatas. Mas é impossível negar a insensibilidade de responsáveis pelo programa e pela loja. Uma atitude culposa, não dolosa, mas que reflete a dificuldade que muitos têm de se colocar no lugar do outro.
Há alguns anos, era aceitável usar o verbo “judiar” como sinônimo de maltratar. O dicionário de Evanildo Bechara chega a citar a frase “Ela judia com os pobres” — usa a palavra “judia”, que tem a mesma grafia que designa um judeu do sexo feminino. Aos poucos, e graças à mobilização de muita gente, ficou evidente o quanto de preconceito havia na utilização do verbo e de suas variantes. Há tempos que movimentos negros implicam, com toda a razão, contra o verbo “denegrir”. Os jornais, por sua vez, já deveriam ter parado com essa história de “magia negra”, expressão usada sempre de maneira pejorativa.
Exagero? Nada disso. Quem tem o direito de definir o que é aceitável ou não são as vítimas do preconceito. Um negro que, na infância, ouviu colegas dizer que ele tinha “cabelo de bombril” pode sim se sentir atingido pelo limpador de panelas exibido no BBB. O mesmo vale para a imagem dos manequins pendurados — quem acha isso um exagero deve procurar na internet as fotos que registram os tais enforcamentos. Pode fazer isso ao som de Billie Holiday cantando ‘Strange Fruit’ (‘Fruta estranha’), de Abel Meeropol, canção que narra um desses linchamentos (“Árvores do sul produzem uma fruta estranha/ Sangue nas folhas e sangue nas raízes/Corpos negros balançando na brisa do sul”).
Os casos do programa e da loja ocorreram porque muita gente ainda não atentou para a crueldade de muitos gestos e palavras incorporados ao cotidiano de uma sociedade que ainda convive com tantas marcas da escravidão. Uma sociedade que não aprendeu que o lugar do negro — e o da mulher, o do homossexual, de qualquer discriminado — é o lugar de todo mundo, o lugar de todos nós.