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PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

O Rei e eu


Por Fernando Molica em 12 de julho de 2009 | Comentários (10)

Há quase 30 anos, no início dos anos 80, eu era repórter da sucursal Rio do Estadão e fiz matéria sobre o lançamento de um disco e de um show do Roberto Carlos. Naquela época, RC dedicava-se a gravar alguns de seus piores discos, cheios de bolerinhos chatos e repetitivos. Ivone Kassu, já então assessora de imprensa de Roberto, me ofereceu um lugar na platéia na noite de estréia do novo show, no Canecão. Agradeci, mas não fui.

Poucos anos depois, em 1985, eu cobria o primeiro Rock in Rio e participei de uma entrevista improvisada de RC – ele tinha ido a Jacarepaguá assistir à apresentação de Erasmo Carlos. Cheguei perto do sujeito, cumprimentei-o – e tremi como jamais voltaria a tremer diante de um entrevistado. Afinal, estava diante do meu ídolo de infância, do autor e intérprete de canções que sabia de cor (sei até hoje). Canções que ajudam a pontuar minha história. Bem, naquele dia soube que nunca poderia negar a presença do Rei na minha vida. Melhor assim: não tenho o menor pudor de, volta e meia, chorar ao ouvir algumas de suas músicas.

Rei: se não me engano, foi o Chacrinha que começou a chamar Roberto Carlos de “Rei da Juventude”. Com o tempo, o “da juventude” foi sumindo, até porque RC tratou de adaptar seu repertório ao envelhecimento de seu público. A rebeldia de algumas e importantes canções foi dando lugar à crônica de acontecimentos domésticos, ao lugar-comum de um amor intenso e onipresente. Mas, a essa altura, Roberto já conquistara um lugar cativo no nosso imaginário – e passou a ser simplesmente “o Rei”. Daí vem a pergunta, por que afinal a designação colou? Temos um outro rei, o Pelé. Mas este é o “rei do futebol”, reina apenas sobre um determinado aspecto da vida. RC, não: ele é o Rei.

Nas monarquias modernas, o rei representa a nação, um – questionável – conjunto de valores que simboliza um povo: seus ideais, seus compromissos, suas expectativas. O rei é uma espécie de protetor simbólico, está acima dos partidos, da política. Um rei reflete e personaliza aquilo que julgamos ser. Essa identificação é tão forte que o regime, um tanto quanto anacrônico, continua mantido em vários países europeus, um sinal de sua relevância.

Roberto Carlos, de alguma forma, nos representa. Chico Buarque é o que gostaríamos de ser; Roberto Carlos é mais o que somos: meio bregas, sentimentalóides, pouco politizados, mais ligados a valores familiares que aos comunitários. Como Rei, é capaz de absorver nossas contradições e divergências: manda tudo pro inferno e pede para Nossa Senhora cuidar de seu coração. Suas canções de amor ajudam a integrar corações de um país tão desigual, passam por cima de contradições sociais, servem de trilha sonora para dor-de-corno de ricos e pobres (“A saudade vai chegar/e por favor, meu bem/Me deixe pelo menos só te ver passar/Eu nada vou dizer, perdoa se eu chorar”).

Não disse uma palavra sequer contra a ditadura militar – no ótimo livro Roberto Carlos em detalhes, Paulo Cesar de Araújo mostra que RC nem tinha muita noção do que se passava (como grande parte de seus súditos, vale lembrar). Talvez achasse melhor não saber de nada. Mas, rei, comovido com o sofrimento do exilado Caetano Veloso, compôs a doce “Debaixo dos caracóis do seus cabelos”. A música não é um libelo contra a ditadura – o rei fica acima de governos -, mas uma manifestação de solidariedade com um exilado. Que se danem as estruturas de governo de ocasião, um rei tem que zelar por seus súditos. O que vale é o sentimento: um rei fica acima das paixões cotidianas, cuida do simbólico, do não-palpável, do “povo”, da “nação”.

Vários episódios de sofrimento pessoal – o acidente na infância que lhe gerou a amputação de uma perna, a cegueira quase completa do filho, a paixão e morte de Maria Rita – reforçaram sua ligação com um povo que gosta de se ver solidário, que procura explicar num suposto excesso de sentimento sua incapacidade de construir e vivenciar estruturas mais impessoais – republicanas. Rezar pela recuperação do filho ou da mulher do rei é assim mais relevante do que se envolver numa luta institucional. RC não condena nossas limitações, ele as entende. Ele, de alguma forma, também é assim, gente como a gente.

Convencido de sua condição de rei, Roberto estabeleceu algumas regras. A mais inacreditável delas é o silêncio em torno do acidente que o mutilou. Um silêncio curioso, já que o fato é de conhecimento de todos. De Pelé já foi cobrado engajamento contra o racismo; ninguém jamais pediu o apoio de RC à luta das pessoas com deficiência. Uma palavra do Rei bastaria para que todas as cidades brasileiras facilitassem a vida de cadeirantes, cegos e de todos que precisam de apoio para compensar algum tipo de deficiência (ao admitir que tinha TOC, RC aliviou a vida de muita gente, quebrou o estigma da doença, fez com que muitos passassem a se tratar). Mas ninguém fala nada sobre a história da perna – todos estão mudos. RC, digamos, não politizou sua mutilação, brasileiramente a trata como algo pessoal, íntimo. O curioso é a cumplicidade de todos em relação a isso, nenhum jornalista toca no assunto, trata-se de um tabu, o rei mandou.

No livro, Paulo Cesar quebrou o tabu, detalhou o acidente. E Roberto lançou sobre ele sua fúria real. A biografia é espetacular, emocionante, foi escrita por um fã: se o livro tem algum defeito é o de não aprofundar algumas críticas a Roberto (chega a ser um pouco condescendente com o cara). Mas RC não quis nem saber. Rei está acima disso, não pode ser biografado em detalhes (perdão pelo trocadilho). Num gesto absolutista, Roberto tratou de dar um jeito de impedir a circulação do livro. Um absurdo, claro, mas que é compreensível pela lógica monárquica. Roberto, de alguma forma, acha que um rei não pode ser tratado de acordo com valores republicanos.

Obs: eu, que desprezei o convite para o show de RC no início dos anos 80, recorri até a um cambista no sábado passado. No fim das contas, fiquei com ingressos comprados por um amigo que, na última hora, foi convidado por um dos patrocinadores. Tô devendo uma boa grana pro cara.

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Comentários
15 de julho de 2009

O broto quis andar no calhambeque...

Fernando Molica
15 de julho de 2009

Meu calhambeque, bi-bi!

Fernando Molica
15 de julho de 2009

O pior de tudo foi confessar que tinha um objeto da marca calhambeque. fiquei imaginando a cena...não gostei do que vi.

Bárbara
14 de julho de 2009

Eu sou esclarecido?!?

Fernando Molica
14 de julho de 2009

Molica, é isso aí. Choro com o Rei até hoje, principalmente naquelas músicas de dor de corno geniais - e que, atenção porque o Paulo César Araújo deixa claro no (ótimo) livro, têm a marca de Roberto, também um grande compositor, apesar do que erroneamente muitos pensam, que o Erasmo (outra fera!) é quem compõe sozinho... E Roberto tem um timbre, uma voz, um jeito de cantar, Roberto sabe tudo e indiscutivelmente é um grande ídolo - pra gente de todas as idades e classes sociais - de um país que, bem ou mal, é o nosso país... Enfim, no início dos anos 80, eu era uma criança de uns sete ou oito anos quando fui ver, pela primeira vez pessoalmente, um show do Rei - a quem ouvia e com quem cantava, naqueles vinis que todo ano chegavam em casa, que a mãe era (é) fã dele. Isso foi em São Luís, onde nasci e morei até os dez anos, na época quase um nada no mapa brasileiro (como até hoje). Mas Roberto levou milhares de pessoas, lotou o maior estádio de lá (o Castelão, mesmo nome do de Fortaleza). Chegamos cedo e ficamos horas sentados na arquibancada, com uma quantidade impressionante de lanches e que tais. E cantei com ele até o que eu ainda não entendia no corpo nem na alma (as tais dores de cotovelo e paixões), mas que me soava tão intenso e tão bonito. De lá pra cá, fui a vários outros shows: no Canecão, no Maracanãzinho e até no Municipal (quando minha avó me levou, com meu irmão, e assistimos de um lugar lá no alto, não sei como se chama, até porque o dinheiro não dava pra nada melhor). Inesquecível, como sempre. As exceções na obra dele (essas mulheres de óculos, pequenas, baleias, amazônias e tal), vá lá que sejam muitas, APENAS CONFIRMAM A REGRA: Roberto Carlos é um craque ao falar de amor, de sofrimento, de paixão, dessas cafonices todas, maravilhosas, e que nos fazem, enfim, tão mais humildes e mais humanos. Um abraço.

Eduardo Carvalho
14 de julho de 2009

Igualzinho ao Brasil, amigo. Não confunda o país com sua "classe média esclarecida". Mais beijos! Flo

Flávia Oliveira
14 de julho de 2009

Caríssima Flávia: com todo respeito e admiração vou discordar de uns pontos. Não se trata de cobrar do Rei uma posição contra a ditadura - esse tipo de engajamento não estava na lógica daquele povo da Jovem Guarda. RC, principalmente, sempre foi muito cuidadoso, sua carreira ganhou uma estrutura empresarial desde cedo (lembro que eu, criança, tinha calça ou cinto com a marca "Calhambeque"). Havia sim um protesto mais genérico, geracional até. No livro, o Paulo Cesar de Araújo frisa o quanto "Quero que tudo vá para o inferno" é importante. Mas esse ímpeto de contestação foi sendo aplacado, ele foi ficando cada vez mais conservador. Não acho também que RC tenha sido pioneiro na questão ecológica. Ele, ao buscar uma sintonia com um novo público, começou a tatear algumas possibilidades de um, digamos, engajamento light: atacou de baleias, posou com pena na orelha para a capa de um disco (se não me engano, o mesmo em que cantou a tal da música em homenagem à Amazônia). Ele tentava arrumar uma onda para surfar, mas sempre com muito cuidado. Até onde lembro, RC passou batido pela campanha das diretas: só entrou na festa no disco de 1985, quando lançou "Verde e amarelo". Até o Tancredo já tinha morrido (pelo menos, não precisou ouvir aquela besteira). Mas, enfim, nada disso abala minha admiração pelo cara. bjs. bjs.

Fernando Molica
13 de julho de 2009

Molica, Adorei a analogia com a monarquia. A relação do Brasil com o Rei é mesmo monárquica! Ele é a cara desse país!!!!! Com as contradições que isso representa... Mas não esqueçamos que, além de compor "Debaixo dos caracóis..." ele gravou "Como dois e dois". É um fato político, sim. Nelson Motta falou disso num especial muito bom que a GloboNews produziu sobre o RC50. Foi precursor do discurso ecológico. "Amazônia", se não me engano, é do fim dos anos 80; "As baleias", do meio daquela década. Adorei o show! Muito mesmo. Com chuva e tudo, ficaria mais para ouvir o que faltou: "Como vai você", por exemplo. Moutinho, o choro do Erasmo é mais manjado que o arranjo de "Cavalgada". Qualquer encontro de Roberto e Erasmo termina em lágrimas. Lembro, por exemplo, do especial da Globo no ano do lançamento de "Amigo". Foi o maior chororô. Deve ter no YouTube. Erasmo é um tremendo chorão!!!!! Beijos nos dois!!!!!!! Flo

Flávia Oliveira
13 de julho de 2009

Ele acha que está acima das coisas, eu não. Gosto de algumas canções do Roberto (com o Erasmo, sempre vale lembrar, para que uma injustiça histórica não seja reiterada), mas prefiro ouvir em casa, ou no carro, talvez justamente por não aguentar esse jeito antissético que ele assumiu há algum tempo. E que se refletiu no show (aliás, os grandes espétáculos, em Maracana, coisa assim, sempre me parecem decorados demais). O momento realmente grande foi quando Erasmo entrou no palco e conseguiu vencer o 'ensaiado', o pré-programado. Chorou de verdade, e emocionou o Roberto. Sem frase decorada, sem piada decorada. Sendo ele mesmo. Simples assim.

Marcelo Moutinho
13 de julho de 2009

Ele acha que está acima das coisas, eu não. Gosto de algumas canções do Roberto (com o Erasmo, sempre vale lembrar, para que uma injustiça histórica não seja reiterada), mas prefiro ouvir em casa, ou no carro, talvez justamente por não aguentar esse jeito antissético que ele assumiu há algum tempo. E que se refletiu no show (aliás, os grandes espétáculos, em Maracana, coisa assim, sempre me parecem decorados demais). O momento realmente grande foi quando Erasmo entrou no palco e conseguiu vencer o 'ensaiado', o pré-programado. Chorou de verdade, e emocionou o Roberto. Sem frase decorada, sem piada decorada. Sendo ele mesmo. Simples assim.

Marcelo Moutinho