O samba que desfila na Tiradentes
Por Fernando Molica em 03 de novembro de 2015 | Comentários (0)
Quem é de sambar não pode deixar de dar uma chegadinha no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, para ver ‘Sambra’, musical escrito e dirigido por Gustavo Gasparani, que também encabeça o elenco. Apesar do nome — uma óbvia referência ao patrocinador da peça disfarçada de alusão ao nome do país –, o espetáculo, uma baita produção, cumpre com louvor a missão impossível de contar a história do ritmo que melhor nos representa e define.
Diante da dificuldade de fazer um resumo de algo tão poderoso e rico, Gasparani saiu pela tangente. Apresentou o processo de formação do samba — os pioneiros que se reuniram em torno de Tia Ciata — e correu para abraçar figuras e momentos fundamentais de nossa música.
Assim, levou para o palco blocos temáticos que nem sempre respeitam a cronologia: faz todo sentido apresentar ‘A voz do morro’ (Zé Keti) e ‘Agoniza mas não morre’ (Nelson Sargento) lá no início. Em feitio de manifesto, as canções, compostas quando o samba já era um senhor de idade, dialogam bem com as que marcaram presença no nascimento do estilo.
Outros blocos tratam do samba-exaltação, de um encontro poético de Noel Rosa com Martinho da Vila (a imitação de Alan Rocha é espetacular, digna dos aplausos que ele recebe em cena aberta), da Bossa Nova, da canção de protesto, do samba-canção. Quem, como eu, for mangueirense deve passar antes na farmácia e comprar um daqueles pacotes de lenços de papel para poder encarar com algum garbo o desfile de composições de Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e Guilherme de Brito. Melhor, qualquer pessoa que não carregue uma pedra no peito deve levar o pacote de lenços. É difícil imaginar algo mais bonito e emocionante.
O musical termina com referências às escolas de samba e às rodas que reúnem músicos, bêbados, vagabundos e doutores em tantas esquinas da cidade — dá vontade de ficar por ali mesmo, pedir uma cerveja e varar a madrugada ao som de clássicos feitos à sombra da tamarineira do Cacique de Ramos. Desejo de, no final do espetáculo, levar todo mundo — músicos, atores, técnicos, público — para a praça ali em frente. E, lá, sem microfone ou roteiro, ouvir e cantar mais e mais. Cantar as músicas que estão no repertório e as que ficaram de fora ( como ‘O samba do Irajá’ e outras tantas do Nei Lopes). A Tiradentes, antigo Rossio, viraria assim o Renascença, o Bip-Bip, a Ouvidor, a Feira das Yabás, o Terreiro de Crioulo, o Ponto Chic, o Candongueiro, a Pedra do Sal. Lugares de samba e de culto, de exercício do nosso dom.
(Coluna Estação Carioca, O DIA, 02/11)