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O temporal que traduz o descaso


Por Fernando Molica em 13 de fevereiro de 2013 | Comentários (0)

Coluna Estação Carioca, jornal O DIA, 09/1

As dramáticas imagens dos estragos provocados pela chuva na Baixada são tão semelhantes às de outras enchentes que chegam a questionar o conceito de notícia: algo novo, inesperado como o homem que morde o cachorro. Em inglês, usa-se a palavra “news” para se designar notícia. Ou seja, notícia é o novo — e nada é mais velho que o descaso que, meio submerso ao longo do ano, aflora com as águas de dezembro, janeiro, fevereiro e março. As cenas das ruas inundadas e do tal rastro de destruição só competem em falta de novidade com a foto do governador de plantão sobrevoando a área atingida ao lado de algum ministro.

Com raras exceções, como no caso da tragédia da Região Serrana em 2011, as consequências da chuvarada se concentram em áreas pobres. A chuva apenas agrava a tragédia cotidiana que assola habitações precárias em bairros sem urbanização. É difícil ver alguém rico ou de classe média alta dizer, na TV, que perdeu tudo. Quem perde tudo são aqueles que já tinham muito pouco, que moram em ruas não calçadas, cortadas por valões de esgoto. Pessoas que vivem no tipo de construção que melhor representa a arquitetura popular brasileira: casas sem emboço cujos tijolos aparentes gritam a pobreza de seus moradores. Muito mais que as curvas de Oscar Niemeyer, essas construções traduzem o nosso jeito de construir. Elas estão pelo país inteiro, no Rio, em São Paulo, em periferias de cidades do Sul, no Nordeste e no Centro-Oeste. Como diria Noel, são nossas coisas, são coisas nossas.

O caso do Daniel da Silva Soares — o menino de Nova Iguaçu levado pela correnteza — ilustra a falta de cuidado do poder público. Ele não teria caído se a pinguela que atravessou fosse uma ponte decente, com muretas de proteção. Aquele rio de esgoto também não deveria existir. É inacreditável a passividade com que o País admite tantas habitações em áreas sem saneamento. Qualquer rua cortada por um valão é uma área de risco; morar diante de um rio de esgoto é tão grave quanto viver pendurado numa encosta ou num vale inundável aos primeiros pingos de chuva. Ao cruzar os braços, governos apontam para o caminho dos valões. Um jeito prático, cômodo e educado de mandar cidadãos para o lugar designado por aquela palavra que costumamos dizer em momentos de irritação. Essa mesma em que você pensou, que começa com a letra ‘m’.

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