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O cobrador dos estádios


Por Fernando Molica em 25 de maio de 2023 | Comentários (1)

Meio arriscado cravar, mas arrisco dizer que o torcedor tradicional está perdendo lugar para uma outra figura, o cobrador. Aquele sujeito que vai pro jogo menos pra torcer e mais pra comemorar, que vê numa vitória não o resultado de um esforço coletivo, mas o cumprimento de uma obrigação.

Talvez a elitização dos estádios tenha contribuído para esta radicalização. O torcedor que vai às tais arenas é mais endinheirado que os antigos arquibaldos e geraldinos. É alguém acostumado a ter o que classifica de vitórias em sua vida pessoal e quer que seu time contribua para reforçar este sucesso. Como o sujeito que compra ações, ignora o risco desse mercado e exige que seu rendimento seja sempre crescente.

Na  minha já longa carreira de torcedor, lembro que sempre houve vaias, protestos, xingamentos de uma torcida para jogadores de seu clube (já xinguei muito, o Botafogo por pouco não completou 21 anos sem um título sequer). Lembro de protestos organizados, aquela história de torcidas pendurarem faixas de cabeça pra baixo, de uma ou outra invasão de centro de treinamento.

Mas, agora, tenho a sensação de que o protesto virou norma. E tome de “Time sem-vergonha”, “Queremos raça” pra lá. Treinadores que não apresentam resultados em pouquíssimo tempo – um mês, dois meses – são questionados de maneira dura, ofensiva. Uma derrota faz com que torcedores/cobradores invadam aeroportos pra xingar os jogadores.

Esse movimento coincide com a tendência de escantearmos um pouco a seleção brasileira. Há algum tempo que a paixão despertada pela equipe não é mais a mesma. Pode ser pela falta de títulos, pelo fato de trazer muitos jogadores desconhecidos, que fizeram toda sua carreira fora do país. O uso da camisa amarela como uniforme político também agravou  este distanciamento.

Pode ser também que isso tenha a ver com um processo mais egoísta, de afastamento do coletivo, de priorização do individualismo, fenômeno compatível com recentes guinadas no pensamento de boa parte da sociedade. O que se busca é a vitória pessoal, não de uma categoria. Torcer por um clube, por mais popular que seja, é mais exclusivo do que apoiar um time apoiado por 220 milhões de pessoas.

Se a vitória é o único objetivo possível, por que torcer por quem perde, por que apoiar um time derrotado, por que sofrer? A lógica cobradora contaminou mais ricos e mais pobres; turbinou a violência de torcidas organizadas, dispostas a eliminar os que torcem por outro time.

Certo de que tem um crédito, esse novo torcedor trata de cobrá-lo. “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!”, parecem dizer os torcedores de hoje, que parecem ecoar um famoso cobrador da literatura brasileira, aquele criado por Rubem Fonseca, homem que, armado, comete homicídios e outros crimes para receber o que considerava lhe ser devido.

“Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respetio, sanduíche de mortadela no botequim da Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol”; “Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo”, escreveu RF.

“Tão me devendo vitórias, campeonatos brasileiros, copas do Brasil, Libertadores, Mundial de Clubes, tão me devendo goleadas, dribles desconcertantes, tão me devendo”, parecem dizer os cobradores dos estádios.

 

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Comentários
25 de maio de 2023

É isso mesmo.

NELSON RICARDO DA COSTA E SILVA