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O trem que se via no cinema


Por Fernando Molica em 15 de abril de 2014 | Comentários (0)

Coluna ‘Estação Carioca’, 26/1/14:

Alguns filmes brasileiros produzidos entre os anos 1960 e 1980 começavam mostrando trens. Seus diretores procuravam, assim, deixar claro que o longa-metragem trataria de pobres, que moravam longe da Zona Sul. O meio de transporte, portanto, servia como ilustração da pobreza. De um modo geral, os vagões surgiam na tela se movimentando na direção dos subúrbios ou da Baixada Fluminense.

O rumo dos trens expunha, meio sem querer, que os cineastas não viviam naquelas áreas, precisavam se deslocar até lá. Como eram pessoas legais, interessadas no destino do país e preocupadas em se mostrar identificação com o sofrido povo brasileiro, iam de trem. Na carona, levavam o público — igualmente legal, bem-intencionado e de esquerda — para aquela espécie de safari em terras além-túnel e longe do mar. De certa forma, os tais filmes (alguns, por sinal, muito bons) antecipavam as constrangedoras excursões de turistas que, em jipes camuflados, entram em favelas cariocas como quem explora savanas africanas.

Os filmes, por mais que tentassem denunciar as injustiças sociais, ajudaram a reafirmar o conceito de que trem é para pobres. Como pobres nunca foram bem tratados por aqui, seu meio preferencial de transporte foi, ao longo de décadas, sendo sucateado. Não bastava negar salários, escolas, moradias e hospitais decentes, era preciso destruir os vagões que levavam aquela gente toda para o trabalho. E tome investimentos em viadutos, túneis e vias expressas que asfaltariam o caminho de donos de carros. Inaugurado em 1967, o Túnel Rebouças era vedado aos ônibus e, portanto, aos mais pobres. A proibição só seria quebrada quase 20 anos depois, no primeiro governo Leonel Brizola.

O ódio à população mais humilde ajuda a explicar o bombardeio ao sistema ferroviário da Região Metropolitana, criado por Dom Pedro 2º. O custo das desapropriações inviabilizaria, hoje, a construção dessa rede fantástica, que vai do Centro à Baixada e ao extremo oeste carioca. A destruição de um patrimônio como esse não é de graça, só pode ser proposital. Trata-se de uma crueldade imposta de maneira sistemática e eficiente ao longo de muitos e muitos anos, fruto da mistura de interesses privados que priorizavam o transporte em ônibus com o insaciável apetite de governantes. A combinação de vontades só foi possível graças à conivência de muita gente, aqueles que não toleram uma cidade mais democrática e que só gostam de ver pobres na tela do cinema.

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