Olhar sem câmera
Por Fernando Molica em 18 de setembro de 2016 | Comentários (0)
Em pelo menos dois grandes momentos da minha vida eu agi como a velhinha que, em foto que caiu nas redes, preferiu observar uma cena ao invés de fotografá-la – ela está cercada de pessoas que tentam registrar aquele instante com o celular.
Quando meu primeiro filho nasceu, era moda filmar os partos. As câmeras VHS se proliferavam, a presença dos pais nas salas de parto tornara-se corriqueira, era um jeito que, nós, homens, havíamos encontrado para não ficar de fora da festa. Estarmos ali era um jeito de também parir.
Na época, não sei como é hoje, havia casais que não se contentavam em deixar com o pai a tarefa de registrar o parto e chegavam a contratar cinegrafistas especializados na tarefa. A banalização das ultrassonografias e das cesáreas contribuía para a dessacralização daquele momento que, historicamente, era impregnado de dúvidas e apreensões.
A ida para o centro cirúrgico passou a ser apenas o detalhe final de um jogo com resultado conhecido, sabia-se por antecipação o sexo do bebê, os avanços da medicina fizeram com que possibilidade de algo dar errado se tornasse quase desprezível. Assim, meio que descontextualizado, o parto perdia um pouco de seu caráter único, insubstituível, milagroso – o instante em que uma nova vida, severina que seja, brota do corpo de um ser humano, momento que dá aos mortais a ousadia de uma comparação com Deus. O nascimento prova que mesmo os que não creem podem criar vida.
Como na brincadeira com baianos e sua suposta vocação para o mundo do espetáculo, o parto passou a ser encarado como estreia. O filho deixaria de ser visto com um complexo e indefinível resultado de mistérios, mas como o singelo produto de uma atividade fisiológica, fruto dos esforços e talentos de um homem e de uma mulher. É como se o discreto corte na barriga fosse substituído pelo gesto de abrir as cortinas de um palco.
Na época, aos 26 anos, não pensei nisso tudo, a lógica da espetacularização não era tão evidente, mas sabia que queria ver aquele momento com meus olhos, não admitia que, além das necessárias lentes de contato (tenho quase oito graus de miopia), houvesse qualquer outra intermediação entre mim e aquele instante, repito, único e milagroso.
Não queria uma tela ou aparelho me separasse da fração de segundo em que seria surpreendido pela vida que eu ajudara a criar. Sequer sabíamos o sexo do bebê, a médica não vira razão para pedir uma ultrassonografia. Também nem pensar na ideia de colocar um profissional para registrar uma cena tão íntima, seria absurda invasão de privacidade.
Assim, com meus próprios olhos, é que acompanhei o nascimento dos meus dois filhos. Não havia câmera, qualquer intermediação, não tinha que me concentrar no foco ou no enquadramento – a preocupação era com a mãe e com os filhos. Ainda que cercados de cuidados, ela e eles estavam sós, entregues aos mandamentos e riscos da natureza; eu tinha que, pelo menos, ser solidário com tamanho desprendimento, não podia filtrar o que se passava nem me apoiar numa máquina. De certa forma, também me despia.
Depois, quando me perguntavam se não havia gravado os partos – como assim?!? -, limitava-me a responder que sim, claro que aqueles instantes haviam sido gravados. Estão mais do que registrados, impregnados em minha memória, em minha vida, ficarão para sempre, para além de mim. Meninos, eu vi.