Orfeu carioca
Por Fernando Molica em 13 de julho de 2016 | Comentários (0)
Saída do Theatro Municipal após o término da ópera ‘Orfeu e Eurídice’.
– Desculpa aê, mas vocês, há séculos, são todas iguais…
– Como assim?
– Como assim? A mulher do cara morre, e, para ressuscitá-la, o maluco do Orfeu topa uma parada sinistra, de descer aos infernos, encarar alma penada, monstro, o cacete a quatro.
– Ahã. E daí?
– E daí que o sujeito vai parar num lugar que parecia o clipe do Michael Jackson, cheio de cadáver, de assombração. Acuado, toca aquela harpinha de mão e dá um migué nos defuntos, que ficam bobos de ouvir música. Até entendo, lá nas profundezas só deve tocar sertanejo universitário e axé, os manés ouviram um negocinho um pouco melhor e ficaram todos animados, deixaram o cara passar.
– Eu sei, também vi a ópera, cacete. O que que você quer dizer com tudo isso? Qual é o problema com as mulheres?
– Pois é, o sujeito faz tudo isso, pega a ex-defunta pela mão e trata de tirá-la de lá, sem dar muita explicação, seguiu todas as dicas daquele anjinho cabeludo…
– …o Cupido.
– É, aquele que tava vestido como a Gal dos bons tempos. O anjinho tinha avisado o Orfeu que ele não podia olhar pra Eurídice, não podia abraçar, fazer carinho – e não podia contar isso pra ela. Se olhasse, se contasse, a maluca ia virar presunto de novo. E o cara, caráleo, faz tudo certinho, sai puxando a mulher que, claro, empaca, resolve discutir a relação. Inventa uma DR no meio do inferno.
– Ela queria saber o que estava acontecendo, muito justo. Também estava estranhando o comportamento do Orfeu.
– Sabia que você ia concordar com ela. Na boa. O maluco faz aquelas paradas todas, enrola os monstros, as almas, os seguranças tudo, mas não consegue convencer a mulher a ficar de boca calada uns quinze minutinhos, o tempo que levaria para eles saírem daquele buraco. Caráleo, desculpa, mas é muito igual, aê. E ela toma de fazer pergunta: por que você não olha pra mim? Por que você não me abraça? Por que você não ainda me chamou de fofonete? Por que, por que, por que? E o cara desesperado, cala a boca, amor, vem comigo, depois eu conto, falta pouquinho. E a mulher lá, daqui a pouquinho nada, você tem que explicar, vai ver que se arrumou com outra defunta e está me tirando da jogada, vai me levar pra um buraco ainda mais fundo. E a mulher não parava de falar, falar, falar. E cantava, cantava, cantava.
– Você tem certeza que vai continuar com isso?
– Na boa, tem que falar, fiquei injuriadaço, boladaço. Como é pode? Tanta mulher viva no mundo, tanta novinha dando mole, e o cara cisma com a finada, vai atrás dela. E a maluca resolve empacar, dizer que não vai, que prefere ficar morta a fugir daquele inferno com o marido. Pô, aê, o cara apaixonadaço, os quatro pneus arriados pra ex-defunta e ela arrumando problema, mó desconsideração, aê. De tanto tomar esporro, o cara conta pra ela a porra toda, e ela, então, voltou a morrer, Já foi tarde, cacete…
– Como é que é?
– É isso mermo, bem-feito, tinha mais é que morrer de novo, único jeito dela parar de falar. Deu até alívio. Aê, fiquei injuriado quando a porra do anjinho voltou e fez a maluca ressuscitar de novo. Mó bola fora, quase levantei e fui embora.
– Você queria que ela tivesse ficado morta? Não acredito! Não acredito!
– Claro, a doida gostava mesmo é de uma cova, de um inferno, que ficasse por lá. A essa altura deve estar atazanando a vida do Orfeu. Deve dizer que ele tem que parar de tocar aquela harpinha, que não aguenta mais ficar em casa ouvindo blem-blom, que tem que arrumar um trabalho, pegar no pesado, que só defunto é que gosta de ouvir aquelas musiquinhas…
– Odair…
– Sim, Eunice.
– Vai sifudê.