WWW.FERNANDOMOLICA.COM.BR

Blog

PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

Os meninos da árvore


Por Fernando Molica em 28 de dezembro de 2009 | Comentários (11)

Quem, de um modo geral, se queixa da árvore de Natal da Lagoa não reclama da árvore. Até pode fazer comentários sobre a dita cuja, realçar seu anacronismo, seu caráter um tanto quanto kitsch. A maioria finge se importar com o aumento no trânsito, com o estacionamento ilegal. Mas, no fundo, o que lhes incomoda não está dentro da Lagoa nem em suas pistas destinadas a carros, ônibus e motos. O calo que lhes irrita e ofende é o povo que se aglomera para ver a árvore.

Se não atraísse tanta gente do além-túnel, a árvore seria quase ignorada, passaria assim batida, como há até bem pouco tempo eram tolerados o frescobol e o altinho à beira-mar, como ainda é admissível o baseado que rola na areia. Frescobol, altinho e baseado seriam, digamos assim, coisas nossas, práticas consagradas pelos que vivem do lado de cá do túnel. Yes, we can. Mas só we que can. A praia é nossa, assim como a Lagoa.

A curiosa – e bela – geografia do Rio facilitou a segregação. Há um acúmulo de beleza (e de riqueza) do lado de cá. A pequena Zona Sul é um dos melhores lugares do mundo para se viver. Outras grandes cidades do mundo têm áreas nobres espalhadas; as nossas, graças à proximidade do mar, acabaram concentradas. Num processo agravado nas últimas décadas, a Zona Sul virou sinônimo de Rio; pelo menos, do Rio desejado, que exporta gostos, modas e costumes. Nem a produção literária escapou disso – de um modo geral, a perspectiva é a de quem mora do lado de cá (mesmo que o livro trate de favelas, pobres, subúrbios e que tais).

Lembro que, menino de Piedade, gostava de passear pela Zona Sul, volta e meia pedia a meu pai que desviasse o caminho e passasse por Copacabana, Ipanema e Leblon. Naquela época, o subúrbio era mais bonito e tranquilo, menos degradado e violento. Mas, mesmo assim, gostava de ver aquele Rio diferente, mais iluminado. Um Rio que tinha praia, que olhava de perto para o Cristo e para o Pão de Acúcar.

Se, na minha infância, houvesse a árvore na Lagoa, insistiria com meus pais para levar-me até ela. Iria querer participar da festa, compartilhar daquele Rio que saia bem na foto dos jornais. Às margens da Lagoa, comeria pipoca e algodão doce, tomaria mate, tiraria fotos, me encontraria com algum colega de escola – quem sabe, com aquela menina que tanto desejava. Sonharia com uma foto de nós dois abraçados, tendo a árvore como fundo. Foto que, tímido, nunca ousaria pedir.

Nas margens da Lagoa de hoje, vejo muitos meninos como fui. Meninos que vieram de Piedade, do Engenho de Dentro, de Quintino, de Realengo. Eles acreditam que a cidade também é deles, que o Rio não é apenas dos que são louros, têm pele mais clara e muito, muito mais dinheiro. Meninos que, de tão felizes com a árvore, com a pipoca, com o algodão doce, com o mate e com o sonho da menina amada, não notam que às suas costas, do alto dos prédios, muita gente reclama de sua presença, ironiza seus hábitos, suas fotos, seu entusiasmo, suas roupas, seus gritos e, mesmo, sua cor. Pessoas que defendem o banimento da árvore, seu exílio no Piscinão de Ramos. Para elas, apenas os locais podem parar seus carros sobre as calçadas da Zona Sul.

Os meninos – ainda bem – ignoram, mas eles não são tolerados por quem acha que a Lagoa, as praias, o Cristo refletido nas águas pertencem a poucos, paisagens hereditárias, excludentes. Pessoas preconceituosas e bobas: não sabem como a presença daqueles meninos e meninas humaniza o Rio,o torna mais afável, tolerante. Acreditam – tolinhos – ser possível construir uma cidade com base na separação, não conseguem ver o quanto isso já nos custou. O Rio se fez diferente porque soube conviver com a diferença; por ser porto e capital, aprendeu a trocar com estrangeiros, com gente de outros estados. O branco Noel subiu o morro; o preto Carlola foi para o asfalto. Num botequim simbólico, eles se encontraram a criaram a música brasileira. Isso vale para Nazareth, Pixinguinha, Chico Buarque, Villa-Lobos, Nelson Cavaquinho.

Os meninos que atravessam o túnel para ver a árvore não sabem, mas a presença deles por aqui – escrevo, fazer o quê?, do ponto de vista de quem agora mora do lado de cá – faz o Rio respirar; renova a cidade, reforça a necessidade de convivência e tolerância, faz com que, como dizia Cazuza, olhemos a nossa própria cara. Que sejam bem-vindos.

DEIXE SEU COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Comentários
27 de janeiro de 2010

olá achei o máximo!

Hana
05 de janeiro de 2010

Já transfomei a ida para ver a árvore em programa várias vezes... As reclamações que ouço são várias também: que complica o trânsito, que a árvore é feia, que é patrocinada por um banco etc. Ultimamente tenho ouvido críticas menos veladas, de gente reclamando das famílias que levam canga e isopor para sentar à beira da Lagoa. Que bom que ainda existem famílias que fazem isso! Elas ainda enxergam as belezas que a cidade tem. Para mim, a árvore devia ser um patrimônio do Rio de Janeiro.

Ana Beatriz Guerra
05 de janeiro de 2010

finalmente, alguém escreve algo que eu penso! há muito. já me indispus no multiply com uma quase amiga que reclamava da árvore, de forma velada, exatamente por isso. adorei! no fundo é isso: eles! um outro que negamos. pois acho que a ZS devia ter mais árvores. mais motivos, mesmo que bobos ou equivocados como esse, para que atravessassemos o túnel. meu pai levava a família todo domingo para passear em Copa. motivo: nenhum. mas ele era um cara visionário, arrojado, destemido, antenado, ambicioso no ótimo sentido. eu adorava aqueles passeios cheios de cores vivas e de coisas com as quais só podia sonhar. que viva a árvore! e os sonhos!

denise lopes
04 de janeiro de 2010

Antonio, Moutinho, Bruno, Eduardo, LeMatta, Celina, Diego: obrigado pelas mensagens. Acho que vou pro Bar Lagoa no dia 6, pra me despedir da árvore. Abraços, Feliz Ano Novo.

Fernando Molica
04 de janeiro de 2010

Muito legal, Molica. Aqui em São Paulo temos uma árvore, no Ibirapuera. Eu era contra, até ler sua crônica. Abração.

antonio prata
02 de janeiro de 2010

Excelente texto, Molica. Eu, se ainda fosse menino e ainda morasse em Madureira, decerto quereria ir...

Marcelo Moutinho
31 de dezembro de 2009

Assino embaixo!

Bruno Chagas
30 de dezembro de 2009

Molica: excelente! Há tempos venho ensaiando escrever algo muito parecido. Este ano, quase o fiz, mas tive preguiça. Se vc for ver lá no blog, no dia 24 postei uma foto, tirada por mim um dia antes, que enquadra propositalmente uma carrocinha de churros E a árvore... É isso: que os ambulantes, os meninos, os pais desses meninos dos outros Rios venham e curtam a cidade que é deles também! Que a Lagoa seja o quintal do Rio todo, ora, ora, classe mé(r)dia! E o que fui fazer lá? Levar a Luísa para se deslumbrar com a árvore, para se lambuzar de pipoca e cachorro quente, para tirar fotos e ver outras crianças tão felizes tirando também as suas fotografias. E para que ela entenda, ainda bem cedo, o que é a convivência, a harmonia, o que são as direfenças que precisam ser diminuídas e/ou respeitadas. Fui lá, pelo terceiro ano seguido com ela (e ainda comemos milhos e tapioca e pizza e bebi cerveja dos ambulantes, sim), fui lá de-li-be-ra-da-men-te para dizer não a esses caras-pálidas que pensam que mandam na NOSSA cidade. Um abraço e um grande 2010 pra você!

Eduardo Carvalho
29 de dezembro de 2009

Bela crônica, meu caro. Concordo inteiramente com seu ponto de vista. É hora de humanizarmos essa cidade. Gostei quando você falou que "nem a produção literária escapou disso - de um modo geral, a perspectiva é a de quem mora do lado de cá". É algo a se pensar. Um Feliz 2010 para ti e que a árvore continue a ser o sucesso de público que é. Abração!

Luis Eduardo
29 de dezembro de 2009

Beleza de crônica, Molica. Terminei a leitura com um nó na garganta. E olha que sempre fui "privilegiada", nascida, crescida e envelhecida à somba dos morros litorâneos. E sou (era?) das que reclama(av)m da árvore, por um motivo que vc não citou: o gasto excessivo de energia, que poderia ser utilizada em hospitais. Pois que essa energia alegre os olhos dos meninos de além-túneis e que ajude a integrar nossas tantas desigualdades e injustiças. Obrigada pela emoção.

Celina Portocarrero
29 de dezembro de 2009

Tolinhos... Essa observação regozijou-me.

Diego Moreira