Os muitos sambas e cantos do Rio
Por Fernando Molica em 01 de dezembro de 2015 | Comentários (0)
Compostos a partir da década de 1920, alguns dos belos sambas que fazem parte do repertório do musical ‘É com esse que eu vou’ revelam como seus compositores tinham necessidade de apresentar e elogiar diversos bairros da cidade. Numa época em que a informação viajava na velocidade do bonde e que a cidade não se mostrava tão partida e amedrontada, narrar a existência de um lugar e exaltá-lo eram formas de incluí-lo no mapa artístico e sentimental do Rio.
E tome de Lapa, de Praça Onze, do mundo de zinco que era Mangueira, de rodas de sambas em Piedade e em Madureira, bairro que tanto chorou a morte de Zaquia Jorge. Pedaços da cidade ligados por bondes — o de São Januário, que levava mais um operário, o de Ipanema, que, antecipando a fama da garota de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, entrava triunfal no Tabuleiro da Baiana “trazendo as mais lindas cabrochas do Rio”.
É graças a um dos sambas que cariocas mais novos ficam sabendo que havia um bonde, o 56, então chamado de Alegria, que ligava a Praça Tiradentes à antiga Rua da Alegria (hoje, Rua Olímpio de Melo). O apelido do bonde permitiu uma grande sacada a Haroldo Lobo e Wilson Batista, autores de ‘…o 56 não veio’: preocupado com a demora de sua amada, o personagem da canção teme que o namoro tenha saído dos trilhos: “Será que ela não veio porque se zangou?/Ou o bonde Alegria descarrilou?”
Ao falar dos bairros e de seus moradores, os sambas faziam com que estranhos se tornassem mais conhecidos, ressaltavam práticas, eventos e problemas desta ou daquela parte da cidade — a falta de abastecimento que obrigava Maria a subir o morro com a lata d’água na cabeça, os baixos salários, o trem que atrasava e complicava a vida do trabalhador. Letras que geravam identificação naqueles que passavam pelos mesmos perrengues e que amplificavam o protesto. Crônicas que ajudaram a alinhavar uma espécie de cidadania carioca, que reforçavam o sentimento de pertencimento e despertavam, em todo o país, curiosidade em relação aos muitos cantos do Rio.
Assim como fizeram em ‘Sassaricando’, em ‘É com esse que eu vou’, Rosa Maria Araújo e Sérgio Cabral atuaram como arqueólogos em busca de canções que revelassem pistas do nosso jeito, do que nos caracteriza, que gera identificação. O musical, que esteve até outro dia em cartaz no Imperator, volta e meia retorna aos palcos. É bom ficar atento para não perder a chance de cantar um pouco a nossa história.
(Coluna Estação Carioca, O DIA, 22/11.