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Os que nunca foram negros


Por Fernando Molica em 02 de agosto de 2016 | Comentários (0)

É óbvio que os artistas responsáveis pela cerimônia de abertura da Olimpíada não são preconceituosos, não são racistas, não tiveram a intenção de reforçar estereótipos. Escrevo isso sem qualquer ironia, até por ser admirador de algumas daquelas pessoas. Mas eles erraram feio ao bolar a cena em que um menino de rua ou um camelô seria confundido com assaltante ao se aproximar da Gisele Bündchen.

Apenas um mal-entendido, como ficaria esclarecido no fim. A intenção, tenho certeza – e reforço, sem qualquer ironia -, poderia ser boa, eles tinham o objetivo de mostrar como o preconceito faz com que, no cotidiano, gente honesta é confundida com assaltantes. O problema é que faltou sensibilidade para que se colocassem no lugar do outro.

Para contar a historinha eles precisariam reforçar o preconceito, um preconceito que tanto machuca suas vítimas, meninos e meninas que identificam o medo no olhar de pessoas finas, elegantes e sinceras. Como bem definiu a amiga Flávia Oliveira, pivete ou camelô, o efeito é o mesmo: “Não importa o desfecho. É reforço de preconceito. Imaginem uma simulação de explosão de uma bomba atômica que, no final, espalhará pétalas de rosas em Tóquio 2020. Não dá. A origem dos camelôs está nos escravos de ganho da colônia e nos vendedores ambulantes, criminalizados no pós-abolição por serem trabalhadores informais.”

Arrisco dizer que, por trás da mancada, está a falta de vivência de situações semelhantes. Por mais sensíveis, inteligentes e legais – e, insisto, sem ironia – que sejam os criadores do espetáculo eles talvez nunca tenham sido vítimas desse tipo de preconceito. Lembro daquele jogador de futebol, negro e bem-sucedido, que ao mostrar solidariedade com colega vítima de racismo, falou que sabia o que era aquilo, afinal, já tinha sido negro. É bem provável – e nem sei se há negros no comando da abertura olímpica – que os autores do roteiro da festa nunca tenham sido negros.

Vivemos numa sociedade tão injusta e tão dividida que nos acostumamos com a segregação, temos dificuldade em nos colocar no lugar do outro. Há algumas poucas décadas – duas, se não me engano – não havia lei que proibisse a discriminação em elevadores. Porteiros podiam mandar para o elevador de serviço todos aqueles que tinham cara de serviçais.

Entre nós, o uso do “senhor” ou do “você” tem a ver com a idade do interlocutor mas, principalmente, com sua posição social – pobres são “você”, ricos e remediados merecem o “senhor”. Um senhor como o dos engenhos. Não nos acostumamos com negros em universidades, no comando de consultórios médicos ou de aviões. Não nos acostumamos nem mesmo com negros como passageiros de aviões.

Esta ausência de negros em posições mais importantes colabora para gafes como a que haveria na abertura da Olimpíada. Há alguns anos, o Paulo Barros tentou levar para o Sambódromo um carro alegórico que mostrava cadáveres de judeus num campo de concentração. Claro que o artista não queria nem de longe enaltecer nazistas. Pelo contrário, desejava reforçar o horror do holocausto. Mas, por não ser judeu, por não ter tido nenhum parente vítima da barbárie, ele não percebeu o quanto aquele carro ofenderia outras pessoas. Por ordem judicial, o carro não pôde ser levado para o Sambódromo.

Situações como a da festa olímpica seriam evitadas se tivéssemos uma sociedade mais integrada e inclusiva, em que as diferenças estivessem representadas nas diferentes esferas do poder. Ainda vai demorar para que isso ocorra, são muitas as barreiras e resistências, o Brasil foi criado para excluir, para manter a senzala bem longe da casa grande. Mas é fundamental estimular a mudança. E, por enquanto, vale o exercício de nos colocarmos no lugar do outro

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