Páginas tão belas
Por Fernando Molica em 15 de abril de 2014 | Comentários (0)
Coluna ‘Estação Carioca’, O DIA, 16/12/13:
A presença no palco de Waldir 59 era um sinal de que a Portela, tão maltratada nas últimas décadas, decidira, enfim, respeitar um dos elementos fundamentais da tradição africana, o culto ao passado, aos ancestrais. Aos 86 anos, o mais antigo sócio vivo da escola foi colocado numa cadeira de onde acompanharia a noite em que se apresentariam, bem na sua frente, a Velha Guarda, Paulinho da Viola e Marisa Monte
Compositor de cinco sambas-enredos portelenses, Waldir 59 estava ali na condição de homenageado, mas também exercia uma espécie de vigilância, algo essencial a uma agremiação que sonha em retomar seus melhores dias, seu passado de glória.
A cegueira causada por um glaucoma não o impediria de ver se a escola — que no ápice do desatino chegou a barrar a entrada de seus baluartes na Avenida — estava mesmo disposta a fazer as pazes com sua história, ponto de partida para novas conquistas. Não foi à toa que Paulinho, sempre atento às pontes entre passado e futuro, iniciou sua apresentação com um samba de Zé Keti, outro portelense ilustre e que anda meio esquecido.
Conduzido ao microfone por Monarco, Waldir 59 cantou ‘Riquezas do meu Brasil’, samba-enredo ufanista de 1956, composto com Candeia: ao gritar o ‘Brasil, Brasil, Brasil’ da letra, parecia dizer ‘Portela, Portela, Portela’. Na madrugada de domingo, ele deve ter ido para casa feliz, certo de que sua escola reencontrou seu caminho. Quem esteve sábado no Portelão tem direito de usar todos os chavões e adjetivos para definir a noite: inesquecível, espetacular, emocionante.
O show foi pensado para arrecadar recursos para a escola, mas representou muito mais do que isso. Marcou — meu coração mangueirense está certo disto — o renascimento de uma das principais instituições cariocas. Uma escola que gerou páginas tão belas e sambas tão lindos não pode deixar de ser protagonista no maior de todos os espetáculos.
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Por conta das mudanças no DIA , esta ‘Estação Carioca’ passa a ser publicada às segundas. O jornal, amanhã, retomará seu formato tradicional, standard, e chegará às bancas maior e mais bonito. Esta volta às origens tem a mesma lógica citada por Paulinho da Viola em ‘Dança da solidão’: ao pensar no futuro não podemos esquecer do nosso passado. Como diz o samba do portelense Alvaiade (‘O mundo é assim’), o dia se renova todo dia