Pais, filhos – nunca fomos tão felizes
Por Fernando Molica em 25 de agosto de 2009 | Comentários (0)
Pela quantidade de visitantes que o blog recebeu entre domingo e ontem, eu deveria voltar a falar do Botafogo e de sacanagens cometidas por árbitros (e por bandeirinhas, não esqueçamos!). Mas parto para outra seara. É que, na noite de segunda, revi, em DVD, o Nunca fomos fomos tão felizes, filme de Murilo Salles lançado em 1984, há 25 anos anos. Foi naquela época que eu o assisti pela primeira vez, lembro que fiquei muito impactado. A imagem do jovem (Roberto Bataglin) tateando uma guitarra em uma sala imensa de um apartamento vazio nunca me saiu da memória. Estávamos nos estertores do período militar, na ressaca da derrota das Diretas Já. Havia uma lógica de bem contra o mal, pouco espaço para a sutileza, para a gradação. O mundo era muito claro: de um lado os gorilas golpistas e torturadores; de outro, a esquerda anistiada e heróica, que lutara contra a ditadura. Ali os vendilhões da pátria, lacaios do capitalismo, retrógados que sequer nos deixavam votar para presidente; aqui, os filhos que não fugiram à luta.
Nunca fomos… não entra da discussão do bem contra o mal, ainda que deixe transpirar uma simpatia – ou mesmo uma certa cumplicidade – pelos que se engajaram na tentativa um tanto quanto atabalhoada de promover a luta armada para derrubar a ditadura e implantar o socialismo pela via revolucionária. Mas esta explícita luta política é apenas o contexto dramático de uma outra história, mais importante e incômoda, uma questão fundamental e permanente. O filme é sobre um encontro impossível, o de um pai guerrilheiro com o filho, um adolescente órfão de mãe que fora criado num colégio de padres.
A linha condutora do filme é muito simples: o pai (cujo nome desconhecemos e continuaremos a ignorar, é apenas o Pai), vai buscar o filho no tal colégio interno. No Rio, num apartamento vazio de frente para o mar, o filho (seu nome só nos será revelado no fim) descobre que não viveria ao lado daquele que o resgatara. O pai – por questões que ele omite – é obrigado a se esconder, a tocar sua vida de forma clandestina. Isso pode parecer meio sem sentido, como um pai colocaria um filho naquela roubada? Mas o sentido vai sendo construído aos poucos. Um sentido gerado pela necessidade e, mesmo, impossibilidade daqueles encontros. Necessidade e impossibilidade; o amor e a violência, que, volta e meia, marcam encontros entre pais e filhos.
O pai do filme (Cláudio Marzo), talvez (sim, talvez, nada é muito definitivo em Nunca fomos…) imaginasse estar perto da morte. Precisava então reencontrar o filho, mantido isolado na escola havia oito anos. O filho, por menos que soubesse, acostumado que estava ao internato, queria muito encontrar o pai. A descoberta, pelo filho, desta necessidade, me fez lembrar uma música, DNA, do José Miguel Wisnik. Música autobiográfica, em que ele narra o encontro tardio com uma filha nascida de um namoro. Lembrei-me deste trecho em particular:E ali em frente a mim você me disse,
Que a falta que eu nunca te fiz então se fez
Ao reencontrar o pai – de quem não tinha sequer uma foto -, o filho percebeu a falta que tanto ele lhe fizera. E, de forma tão desastrada quanto a guerrilha tocada pelo pai e seus companheiros, o jovem passa a tentar construir uma relação a partir de fiapos, de pequenas e falsas pistas. Quem era aquele homem tão misterioso, quem era a mulher dona daquele apartamento em que ele havia sido confinado? Quem era ele mesmo, afinal? Aos trancos e barrancos, adora o pai pelo avesso, o desobedece: leva uma puta para o apartamento, desperdiça o dinheiro sagrado da guerrilha. Valia tudo para chamar a atenção daquele pai, prendê-lo em casa, mantê-lo a seu lado.
O filme me fez lembrar de uma amiga recente, filha de um dos próceres da guerrilha, um homem admirado por toda a esquerda. Um homem cuja militância transformou a vida da mulher e da filha em um inferno. Ao engajar-se na luta armada, ele buscou saciar a fome de milhões de criancinhas. Nem que para isso sua filha tivesse que passar pelo sufoco da comida racionada. Ossos do ofício, a Revolução obrigava. Um dia, ela entenderia – esse dia ainda não chegou. Acho que ela deveria ver o filme.
Lembrei também de Cristina Perera, filha de Antônio Expedito Carvalho Perera, o errático personagem de meu livro O homem que morreu três vezes. Em 1971, aos 13 anos, ela se despediu do pai, que iria embarcar para o exílio, era um dos 70 presos trocados pela libertação de um embaixador seqüestrado oor guerrilheiros. Ela nunca mais veria o pai – em 2002, encontraria seu túmulo numa cidadezinha da Itália. Na ocasião, ela me diria (eu então gravava uma reportagem para o ‘Fantástico’): “Foi um encontro. Eu encontrei a história, encontrei o final.” Naquele momento, a filha abandonada se reencontrava com o pai e equacionava suas mágoas.
Nunca fomos… consegue expor, com uma delicadeza brutal, nuances dessa dificuldade de encontros. Revela um encontro que, patético e surpreendente como o de Cristina diante da sepultura do pai, se realiza no fim da história. Um encontro imprevisível, estranho e doloroso. Como ocorrera em 1994, fiquei muito comovido ao rever o filme. Afinal, filho e pai que sou, continuo tateando guitarras imaginárias e insisto na busca de novos e melhores encontros, por mais impossíveis que, volta e meia, eles pareçam ser.
.