Para um amigo rubro-negro
Por Fernando Molica em 07 de abril de 2009 | Comentários (9)
“Qual foi o grande ídolo do Botafogo nos últimos 30 anos?”. Ontem à noite, um amigo rubro-negro retomou a pergunta-provocação que me apresentara havia mais ou menos um mês. Uma insistência enfática, agressiva, até. Ontem, como da primeira vez, a pergunta foi refeita várias vezes. Claro que ele não estava interessado na resposta. Meu amigo rubro-negro, que deve ter uns 35 anos, queria apenas que eu me visse forçado a admitir que seu time tivera, no espaço de tempo que ele definira, jogadores bem superiores aos do Botafogo.
Os tais 30 anos não eram de graça: até mais ou menos o fim dos anos 80, o Flamengo apresentou uma ótima equipe, que contava com jogadores como Zico, Andrade, Junior e Leandro. Era, de longe, o melhor time do Brasil. Um time que hoje nenhum clube brasileiro teria condições de montar: a maioria daqueles jogadores iria para o exterior ainda muito jovem. Tentei falar algo sobre isso, mas meu amigo rubro-negro não deixava. Interrogava-me, interrogava-me, como um delegado que, altas horas, busca uma confissão. Ele tinha uma certeza incontestável, a pergunta fora forjada apenas para confirmar isso.
Eu também tentei provocá-lo, falar do fracasso daqueles rubro-negros na seleção brasileira, exaltar os grandes times do Botafogo. Times de Garrincha, de Didi, de Nilton Santos. Do time que vi em 67/68, com Gérson, Rogério, Roberto, Jairzinho e Paulo César – todos convocados para a Copa de 70. Mas nada: meu amigo rubro-negro insistia em desqualificar meus argumentos, com a fúria de um pastor pentecostal tentava arrancar de mim aquele diabo alvinegro que tentava amenizar aquela discussão meio tola. Uma discussão por ele restrita a dados objetivos, presos a um determinado período histórico.
Bem, vamos lá, amigo rubro-negro (que, justiça seja feita, pouco depois me ligou para dizer algo como “foi mal, não leve aquilo a sério”). Você erra ao restringir uma discussão futebolística a fatos objetivos – melhor time, melhor jogador. Paixão é mais, muito mais do que isso. Um time de futebol é muito maior que suas vitórias. Meu Botafogo é ainda maior que Garrincha, Didi, Nilton Santos e Jairzinho. Meu Botafogo, amigo rubro-negro, é a ida a General Severiano em 1967, no fusca do meu pai. Um jogo contra o Madureira, que vencemos: meu primeiro jogo do Botafogo, o Manga, veja só, ainda era nosso goleiro. Meu Botafogo é meu pai, levado ao Botafogo pelos dribles de Garrincha. Meu Botafogo é meu avô, pai do meu pai, que se tornou Botafogo ao ver Didi jogar em Viçosa, ainda pelo Madureira. O Botafogo são meus filhos, assim como o Botafogo sou eu.
Meu Botafogo é o rádio meio feioso e que me trazia os jogos, resultados que eram passados para um caderno onde anotava vitórias, empates e derrotas. Foi este rádio que me contou, em 1968, da derrota de seu time diante do Bonsucesso. O resultado fez que o Botafogo voltasse de uma excursão pela América do Sul para decidir a Taça Guanabara. Ganhamos de vocês, 4 a 1. Botafogo é a primeira camisa alvinegra que ganhei, com o escudo da estrela costurado na altura do peito, o bicampeonato que comemorei em 67/68.
Mas meu Botafogo é também o dia do título roubado em 1971, um dos momentos mais tristes de toda a minha vida. Até hoje não pronuncio o nome do juiz responsável pelo crime de me deixar tão triste. Meu Botafogo está nos 6 a 0 que aplicamos em vocês, em 1972, no dia em que vocês comemoravam aniversário (dizem que vocês devolveram a goleada, ignoro esse fato, nunca vi os eventuais gols do suposto jogo). Meu Botafogo são os anos de seca, o time de Cremilson e Puruca, a esperança depositada nos pés de Mendonça, nosso camisa 10.
Parafraseando o alvinegro Vinicius de Moraes, amigo rubro-negro: você não sabe o que é ficar quase 21 anos sem título. Bom pra você? Talvez. Mas é possível também que você tenha deixado de aprender algo sobre a frustração e a dor, sobre a impossibilidade de vencer sempre. Meu Botafogo é o dia 21 de junho de 1989, nossa Páscoa, nossa ressurreição. Noite em que o time de Ricardo Cruz, Josimar, Mazolinha, Paulinho Criciúma e, claro, Maurício, ganhou do time de Jorginho, Leonardo, Bebeto, Zinho e… ZIco.
Meu Botafogo é o campeão de 95, Túlio Maravilha faz mais um pra gente ver – tomamos essa música de vocês. Meu Botafogo é também o que foi roubado dois anos seguidos em campeonatos que acabariam a vocês. Chororô? Talvez. Um choro de quem foi injustiçado e que não temeu ser ridículo. Choramos por amor, amigo rubro-negro.
Enfim, meu caro amigo: entenda que as glórias e os amores são contraditórios, muitas vezes incompreensíveis. Lembre que, pouco antes dos tais 30 anos que você definiu, no seu time jogavam esforçados como Liminha, Onça, Fio e Silva. Eram jogadores limitados, mas que também procuraram honrar a camisa de seu time. Não os esqueça, não os mate. Eles também fazem parte da história de seu time, uma história que não pode ser limitada a três dezenas de anos. Sou obrigado a admitir que o Flamengo é maior que um ridículo intervalo de tempo.
Mas, enfim, fique com seus trinta anos, com sua calculada e segura nostalgia. Eu fico com a minha história, com o tal amor que ninguém cala, com a certeza de que o Botafogo é muito mais que futebol. Paulo Mendes Campos: “O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas-secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais Botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também.”
Como disse um dos meus filhos: “Não gosto de futebol, gosto é do Botafogo.”
Abraços,
Molica
O Botafogo é o time com mais jogadores na Seleção. Não foi ajudado pela ditadura, ao contrário, deixamos de ganhar para ajudar a seleção e protestar internamente. Pode fazer uma seleção dos melhores do mundo, em tempos idos e vividos do futebol. Lá estará: Nilton Santos, Didi e Garrincha. O Túlio foi melhor que os "artilheiros" dos últimos tempos da Gávea. Botafogo. Não é apenas diferente. É glorioso! Tedesco
jose carlos tedescoO Tiago, o amigo rubro-negro que inspirou o post, me mandou uma resposta por e-mail. Aí vai ela: Meu amigo alvinegro, Não sei se deveria sair do anonimato, já que sou o chato da história, mas resolvi fazê-lo porque não nego uma boa discussão sobre futebol. Sei que tem gente que se ofende, mas acho que todo rubro-negro é assim. “Somos marrentos mesmo”, diz um outro amigo que defende as mesmas cores que eu. Além de seu amigo, sou fã do seu trabalho como escritor e jornalista. E vejo que, quando quiser se aventurar pela poesia, seu caminho também será fecundo. Mas voltemos à nossa discussão de segunda-feira. E ao jornalismo – já que ao menos uma paixão nós compartilhamos! –, para reconstituir os fatos. Acho que tudo começou quando eu elogiei a camisa rubro-negra sem patrocínio, depois de 25 anos. O outro rubro-negro presente à mesa (mas alheio à discussão) concordou, mas você aproveitou a deixa para falar de como aquele time cujo nome você não pronuncia é mal administrado, como é que pode?, tantos ladrões etc e tal. Todos concordamos, mas aproveitamos para lembrar que essa não era uma exclusividade nossa. Foi nessa hora que sua canela começou a doer. Lembrei do triste fim da sede de General Severiano, trocada por três andares de um prédio na Praia de Botafogo, que anos depois pegaram... fogo!; de como o Botafogo foi beneficiado por sucessivas prefeituras alvinegras, que não só restituíram General Severiano, como permitiram a construção de um shopping no local; de como liberaram o gabarito da área do Mourisco para a construção de outro empreendimento; de como os dirigentes alvinegros são parecidos com os rubro-negros em caráter, em pequeneza, em falta de visão do bem comum. Antes disso, você discursava sobre o fato de o Engenhão estar às moscas, por culpa da dificuldade de acesso. “Deveriam fazer uma estação lá”, você sugeriu. Intimamente, concordo. Mas é lógico que, no calor de uma discussão, discordei. Disse que, diante de tanta mamata na concessão do estádio (o Botafogo paga por mês menos do que paga por jogo no Maraca), eu mesmo cederia minha Kombi 86 para levar toda a torcida alvinegra ao estádio. Num dos cutucões como resposta, você minimizou a conquista do Mundial Interclubes pelo Flamengo, que chamou de “aquela taça patrocinada pela Toyota, ganha num jogo só”. De todos os pecados capitais, a inveja é o único que me agride... Luxúria, gula, orgulho, e preguiça nem são mais pecados. E a avareza (em tempos de crise) e a ira (em discussões de bar) ainda se justificam. Mas a inveja... Ah, essa não tem desculpa. E, a propósito: não invejo seus 21 anos de fila. Por isso, te perguntei: num jogo hipotético entre o Botafogo e a Seleção, por quem você torceria? Como sei que sua resposta, que não me foi dada, apesar da insistência chata que você relatou, é a mesma do seu filho (“não gosto de futebol, gosto é do Botafogo!”), concluo que você prefere, como eu, ver seu time campeão do mundo do que a nossa Seleção. Aí veio aquele desfile de craques que não vimos jogar (nem eu, nos meus 35 anos, nem você, nos seus 46): Nilton Santos, Garrincha (que era rubro-negro), Didi e tantos outros, que fizeram o Botafogo receber o apelido de Glorioso e deram dois títulos mundiais ao Brasil. Nem você nem eu vimos isso, mas entendo seu orgulho. Só não tenho saudade do que não vivi, nem sou leitor do Fernando Calazans, que sofre a cada jogo que é obrigado a assistir, depois que o bom futebol acabou. Repito aqui a frase que disse por telefone: Molica, não me leve tão a sério! Mas quando quiser um bom bate-boca que não nos levará a lugar algum, estou às ordens. Nós, rubro-negros, somos marrentos mesmo. Afinal, não é qualquer time que teve tantos craques nos últimos 30 anos! Abração, Tiago
Fernando MolicaBem, aqui em casa, meus dois filhos adotaram a estrela solitária. Claro que sem qualquer pressão paterna... Abração!
Fernando MolicaBonito o texto, malandro. Eu, rubro-negro, não preciso esquecer de Dequinha, Pavão e Rubens pra lembrar de Zico, Leandro e Andrade. Eu sou o Flamengo, meus pais e meus avós também são o Flamengo. Meu filho também será o Flamengo. Abraço, querido!
Diego MoreiraModerno, eu? Quanto ao resto, sou um torcedor absolutamente desorganizado... Abraços.
Fernando MolicaO cara te provoca, fica insisttindo, depois vai pra casa pensando em você, não consegue dormir, te liga para pedir perdão. Você, carinhoso, fica com lágrimas nos olhos. Isso só confirma minha tese: em toda torcida organizada, há uma legião de gays desesperados porque não conseguem sair do armário. Inda bem que você é um cara moderno.
SLeotem muita verdade neste texto aí. saudações tricolores.
MarceloClaro que pode. Desde que seus netos venham a ser alvinegros. Parabéns pela postura democrática! abs.
Fernando MolicaSou Tricolor, minha mulher rubro-negra e o nosso filho Fogão. Pode? Pode, sim. Depois vou imprimir o post e guardar, um dia, quando ele já for grandinho, vou mostrar para ele. Afinal, podia ser muito pior, e se o pequeno fosse cruzmaltino...Acho mais prudente ficar nutrindo o sentimento dele pela Estrela Solitária.
Beto