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Pátria minha (e a camisa amarela na gaveta)


Por Fernando Molica em 05 de julho de 2010 | Comentários (4)

Aprendi a torcer pela seleção brasileira antes mesmo de saber ao certo o que era o Brasil. Em 1969, nas eliminatórias, acompanhei pelo rádio – sim, não havia transmissão ao vivo pela TV – jogos disputados em países vizinhos que então me pareciam distantes. Um jogo duro aqui, uma e outra goleada contra a Venezuela (5 a 0 e 6 a 0, se não me engano), a vitória contra o Paraguai, em Assunção, testemunhada pelo meu pai.

Em 1970, aos 9 anos, eu já me sabia alvinegro, comemorara os campeonatos de 1967 e 1968 conquistados pelo Botafogo. Conhecia o Campeonato Carioca, seus jogos, sua lógica. Mas o Brasil era muito grande, muito maior que a distância entre Piedade e o bairro de Botafogo, onde ficava o estádio de General Severiano. O Botafogo era meu, do meu pai, seria também do meu irmão, então um bebê. Já o Brasil – como assim? – era grande demais, superava rivalidades, abarcava todos nós, alvinegros, tricolores, cruzmaltinos, rubro-negros e até paulistas e mineiros. De uma certa forma, o Brasil me foi imposto, uma doce imposição que se transformou em vitória, em tricampeonato.
A partir de 1970, torcer pela seleção brasileira virou rotina. Ao longo de mais de duas décadas esperei a repetição da euforia testemunhada no ano do tri. Em 1974, não entendi a derrota, não imaginava a possibilidade de o Brasil não vencer. Pelo Brasil, superei rivalidades clubísticas, esperei que Zico fizesse pela seleção o que já me acostumava a, com muito sofrimento, ver no Maracanã. Não deu. Em 1978, ele e o time caíram nos buracos do estádio de Mar del Plata, sucumbiram diante do arranjo de peruanos e argentinos.

Em 1982 e 1986, mais decepções. Quatro anos depois saí pelas ruas do Andaraí antes de o jogo contra a Argentina terminar, inconformado pelo gol de Caniggia. Em 1994, enfim, voltei a comemorar uma Copa, um grito ainda mais efetivo, já que compartilhado com meus dois filhos. E vieram o amargo1998 (Quem é que sobe? Zidane!), o penta de 2002 e a nova decepção de 2006 – esta, uma Copa marcada pelo descompromisso, pela irresponsabilidade. Mas, pelo menos, torci, reclamei, procurei culpados.

Há menos de um mês, antes do início do Mundial, escrevi aqui um agradecimento irônico ao Dunga, ressaltei que, pela primeira vez, não me sentia obrigado a torcer pela seleção. Havia um incômodo em compartilhar da histeria, da patriotada, do autoritarismo, da patotagem, do desprezo pelo talento. Aos 49 anos, me sentia livre para não aderir a uma lógica que me feria, atentava contra princípios que, ao longo da vida, aprendera a valorizar.

Para minha surpresa, o sentimento foi verdadeiro. Não fiquei à vontade para torcer pelo Brasil, sequer tirei da gaveta a camisa da seleção que comprara um mês antes da Copa. A grosseria de Dunga depois do jogo contra a Costa do Marfim me afastou ainda mais do time. A corrente-pra-frente pró-técnico esboçada em seguida aumentou meu susto: como assim, transformar aquilo em algo louvável, fazer da covardia uma suposta manifestação de coragem? A tendência autoritária que se mantém na sociedade brasileira é assustadora, perigosa. A perspectiva de vitória da seleção se transformou num risco ao culto à repressão, à incivilidade, à ditadura. Não dá para torcer a favor desta escalação.

Admito que, durante o primeiro tempo do jogo contra a Holanda, a seleção quase me seduziu. Pela primeira vez na Copa eu comemorei com algum prazer um gol brasileiro. Achei que, enfim, minha má vontade seria superada pelos jogadores. Mas não deu: a pisada que aquele sujeito deu no adversário foi definitiva. Mais do que os gols holandeses, o gesto descontrolado do Felipe Melo revigorou minha decisão de manter distância daquele time. Um time que, enfim, assumia a cara de seu comandante – para aqui usar uma palavra tão cara ao hoje ex-técnico. Naquela sexta, voltei a direcionar minha torcida para o Uruguai, para o Loco Abreu, para o Botafogo.

Mas há pouco li na internet um texto de um colega, o Bernardo Pombo. Um texto em que ele narra toda sua tristeza pela derrota da seleção. Conta que machucara a mão ao comemorar o gol de Robinho e complementa: “A ferida na mão vai sarar rapidamente. Mas o coração está partido, destruído, dilacerado.” Engraçado, mas o relato me pegou pelo pé, contribuiu para uma certa melancolia. No fim deste domingo, percebi que o Dunga roubara de mim até mesmo o direito de sofrer pela seleção, de chorar sua derrota. Ele, que tanto arrotou patriotismo, embotou meu carinho e meu respeito por um time responsável por tantas alegrias, que sempre despertou em mim a certeza de que o Brasil viria a ser melhor do que é. Um país que produz tantos talentos não é compatível com a pobreza, com o autoritarismo, com a ignorância. Mas Dunga – invasor de minha pátria, tão diferente da que ele cultiva – conseguira tirar o meu time de campo.

Que Dunga seja feliz, que seja mais tolerante, afável, educado, que retome sua carreira cheia de sucessos. Mas, caramba, acho que vou demorar a perdoar o exílio que me foi imposto nesta Copa, o sequestro da vontade de torcer pela seleção brasileira: um banimento que ele me impôs. Nunca imaginei que não fosse ter o desejo infantil de vestir a camisa amarela.

Pátria Minha

Vinicius de Moraes

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu…

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda…
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão…
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
“Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes.”

Texto extraído do livro “Vinicius de Moraes – Poesia Completa e Prosa”, Editora Nova Aguilar – Rio de Janeiro, 1998, pág. 383.

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Comentários
05 de julho de 2010

Excelente, meu caro.

Marcelo Moutinho
05 de julho de 2010

Gosto muito de seus textos. A comparação Dunga x Salieri foi perfeita. Repassei para vários amigos. O "apoio" que Dunga recebeu veio de quem quer explicar aquele comportamento irascível como uma reação heróica ao império do mal representado pela rede Globo. Só esquecem que ele brigou com a imprensa inteira! Enfim, o melhor é esquecer esta era e partir para outra. Abs, Vera

vera
05 de julho de 2010

Obrigado, meu caro. abs.

Fernando Molica
05 de julho de 2010

Que beleza, Molica.

Carlos Andreazza