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Pelo direito de espernear


Por Fernando Molica em 16 de março de 2011 | Comentários (0)

Coluna ‘Estação Carioca’, jornal O Dia, 16/3/11

Um direito fundamental do ser humano corre risco. De uns tempos pra cá, qualquer um que reclame de algo — arbitragem de um jogo, resultado de desfile de escola de samba ou critérios da Justiça Eleitoral — recebe, na lata, a reposta pronta: é ironizado e convocado a deixar “de chororô”. Não importa se o sujeito tem ou não tem razão, se o juiz roubou, se o deputado X comprou votos ou se a comissão de frente da campeã do Carnaval não merecia ganhar aquela sucessão de notas 10. Basta protestar para ser chorão.

Pior se o queixoso for, como eu, torcedor do Botafogo. Aí, não tem jeito. Antes de terminar de falar, perceberá um sorriso no rosto do interlocutor: dali a instantes, o tal sujeito relembrará o lamentável dia em que o técnico Cuca e alguns jogadores alvinegros protestaram, ao prantos, contra a arbitragem da final da Taça Guanabara de 2008. Depois daquele episódio, botafoguenses não podem reclamar de nada. É como se nossa cota tivesse se esgotado no vestiário do Maracanã.

A repressão é mais ampla. Parece ter havido uma atualização do princípio cínico que, há algumas décadas, foi consagrado com o nome de ‘Lei de Gérson’ (num comercial de cigarro, o ex-jogador disse que o importante era levar vantagem em tudo. Ele apenas leu a frase, mas pagou o pato). Ao constranger quem reclama, o repressor, no fundo, diz que o importante é vencer, não importa como. Assim, quem reclama não passaria de um derrotado. Que tivesse sido mais esperto e vencido, que usasse as armas, por mais espúrias que fossem, do vencedor. O pecado não seria roubar, mas perder.

Mas é engraçado. A mesma sociedade que ironiza quem chia é a mesma que, pelo menos nas aparências, se diz escandalizada com políticos desonestos ou que usam o cargo público para empregar parentes, amigos e amantes. Quem condena o direito de reclamar não deveria se queixar dos tais políticos. Afinal, de alguma forma, eles são vencedores: roubaram, enriqueceram e continuam soltos. Ironizar derrotados também é típico de ditadores — o egípcio Mubarak e o líbio Kadhafi andaram fazendo isso. Os militares que tomaram o poder em 1964 aqui no Brasil não se cansavam de classificar a oposição de “derrotista”. Claro que nem sempre a reclamação é justa, mas, em nome da democracia, não dá para desrespeitar o sagrado direito de espernear.

Ah, vale o registro: o episódio no vestiário foi constrangedor, mas o Botafogo foi mesmo garfado naquele jogo.

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