WWW.FERNANDOMOLICA.COM.BR

Blog

PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

Protesto


Por Fernando Molica em 27 de março de 2009 | Comentários (1)

O enterro acabou de forma quase tranqüila. Após os sepultamentos, de volta para os ônibus, moradores do morro não resistiram e vaiaram os policiais. Alguns, ao perceberem as câmeras de TV, chegaram a fazer com os dedos a sigla de uma facção criminosa, uma das três ou quatro que, de acordo com a imprensa, dominavam o comércio de drogas na cidade. Grupos de existência meio amorfa, comandos sem comandantes, de muitos comandantes, de hierarquia confusa, de composição sempre mutante – as mortes, as prisões, as guerras obrigavam a uma constante modificação nos organogramas. Quadrilhas promotoras de uma violência que se superava, que se reinventava, que acordava a cada dia mais cruel, integradas por jovens muito parecidos no tipo físico, na cor, no jeito de falar, de andar. Jovens que se diziam inimigos, que se eliminavam, que disputavam entre si o direito de torturar, matar, retalhar, queimar. O gesto com os dedos, sabiam, faria tremer quem assistisse aos noticiários da TV. Isso era bom, era legal meter medo naqueles babacas, tomara mesmo que eles se caguem, que digam que tudo tá perdido, onde é que nós viemos parar.
O uso de símbolos de facções, gestos, lemas, roupas desta ou daquela marca, desta ou daquela cor, ultrapassara os limites das próprias quadrilhas. Até crianças eram obrigadas a respeitar aqueles códigos difusos, leis vindas sabe-se lá de quem. Quem é daqui não usa isso, quem mora aqui não vai pra lá. Os de lá são inimigo, alemão. Com o tempo, ordens foram acatadas, viraram costume, até motivo de orgulho. Gestos, vogais e consoantes esculpidas nos dedos, pintadas nos muros, siglas, roupas, cores serviam para amedrontar, angariar algum respeito, chamar a atenção, nós existe porra!, para botar marra para os das outras cores. Os símbolos ajudavam a manter a tensão, a criar um sentido, a dar um pouco de ordem, alguma ordem tem que existir. Serviam também para desafiar e encarar aqueles que julgam ser donos de todas as cores, de todas as possíveis combinações de letras do alfabeto, que se acham acima das brigas. Serviam para impor respeito, caralho. Se eu sou daqui é porque sou de algum lugar, eu tenho um lugar, o lugar é uma merda, mas é meu, e o meu lugar não pára de se espichar, de crescer para cima do de vocês. O lugar de vocês, seus filhos da puta, o lugar de vocês só diminui, vocês têm mais é que morrer de medo da gente, de se trancar em casa. Isso aqui é a guerra, é que nem time, tem amigo, tem alemão. AK, AR, Sig Sauer. Eu sou do comando e não sou comandado, mete a mão no fuzil ou na metralha, vou dar porrada eu vou, e ninguém vai me segurar.

Vladimir foi do cemitério para o trabalho, não daria tempo de ir ao Borel, nem ao Núcleo. Elaine ligara: pelo jeito, grávida de novo. “Tenho um probleminha, preciso de sua ajuda, irmãozinho, só você que pode me dar uma mãozinha.” Os diminutivos indicavam mais uma gravidez, um segundo aborto. Aos 19 anos, seria a terceira gravidez da irmã, mãe aos 14 anos – Thesla era filha de um motoboy, “meu maridinho”, dizia Elaine. Um mês depois do parto, o maridinho se mudou para Ricardo de Albuquerque, deixou mulher e a filha em Guadalupe.

(Trecho de “Bandeira negra, amor”, Objetiva, 2005)

DEIXE SEU COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Comentários
27 de março de 2009

Não ia comentar por aqui. Isso fazer isso por e-mail. Não queria passar vergonha. Estou terminando o Texaco, do Patrick Chamoiseau, para iniciar O ponto de partida (que tá queimando ao meu lado) e você me lança o último post. Gostei pacas. Sempre fico meio envergonhado quando conheço alguém que publicou um livro e eu não li. Um horror. O lance fica pior ainda quando o livro me parece bom. Então tá combinado. Quando acabar o Texaco, travo o contato com o O ponto de partida e parto para o Bandeira... Mas calma, tô meio ferrado tendo que ler duas dissertações para a pesquisa, tentar elaborar um projeto em parceria com uma amiga para uma publicação sobre os 20 anos do ECA e fazer um trabalho de revisão de uma tese que vai virar livro sobre Lit. Angolana. Um saco quando não podemos ler o que bem entendemos. Ah, sobre o trecho do Bandeira: fora as qualidades do texto, com um domínio peculiar da técnica, gostei muito do mergulho na cultura dos caras. Pena ser uma verdade ver que muitos utilizam essas marcas da violência para ser alguém. E você soube captar isso com grande habilidade. Utilizam até uma linguagem própria. Soube de um caso de um cara em um morro que foi espancado por insistir em falar "é nois", enquanto que o morro era dominada por uma facção que utilizava o "é a gente". Inacreditável! Por questões teóricas não falo muito em exclusão social. Mas, ao nos depararmos com essa realidade qual o melhor conceito/termo para denominar isso? É o símbolo de total exclusão!

Paulo