Realismo literário
Por Fernando Molica em 13 de setembro de 2008 | Comentários (0)
Perguntas enviadas pelo repórter Marcio Orsolini, da revista “Bravo!”, me obrigaram a tentar sistematizar algumas questões que me incomodam há algum tempo. Temas que têm a ver com as tentativas de classificação e, mesmo, de valoração da literatura brasileira contemporânea. Algo que ficou mais ou menos explícito quando o caderno Prosa & Verso, de “O Globo”, publicou uma reportagem sobre “poéticas da delicadeza”, expressão criada pelo professor Denilson Lopes.
A reportagem de Orsolini, que pode ser lida aqui, trata da eventual influência de Rubem Fonseca entre os autores mais novos. As perguntas que ele me enviou permitem uma abordagem um pouco mais ampla.Tomo a liberdade de reproduzir perguntas e respostas aqui no blog, uma tentativa de insistir um pouco mais nesta prosa.
1) O espectro de Rubem Fonseca está sumindo da Literatura Brasileira?
É razoável dizer que sim. RF marcou demais uma geração de autores. Até mais de uma geração. O impacto que ele causou na literatura brasileira justifica a influência que ele exerceu, o tal espectro. É natural que, com o tempo, essa sombra diminua. Até porque a produção atual do RF também não justifica tanto barulho. Mas a influência não foi apenas sobre os autores, mas também na crítica, que, em alguns casos, exagerou sobre a presença da marca RF na produção contemporânea. A simples existência de um homicídio passou a ser vista como fruto de influência fonsequiana.
2) Quais os traços comuns entre a literatura de hoje e a da geração passada que conta com escritores como Marçal Aquino e Paulo Lins? 3) Quais as diferenças?
É muito complicado generalizar, até porque a pergunta acaba induzindo a uma análise preferencial de estilos, temas e abordagens. Acho que o mais interessante seria falar na qualidade da produção. O fato de “Cidade de Deus” tratar de bandidos e de moradores de favelas não gera, necessariamente, uma aproximação com outros autores que abordem cenários e temas semelhantes. As favelas e os bandidos de um autor não são as favelas e os bandidos de outro. A grosso modo: como se o sertão de Guimarães Rosa fosse o mesmo de Graciliano Ramos. Seria como jogar num mesmo saco autores que abordem o universo da classe média urbana paulista ou carioca. A periferia do Luiz Ruffato é muito diferente da que é contada pelo Ferréz.
O panorama, que era muito diversificado, ficou ainda mais. Conseqüência mais ou menos natural de dois fatores: as diferenças em um país imenso como o Brasil e, principalmente, a proliferação de livros e autores. É muito mais fácil publicar hoje do que há 30 anos, isso ajuda explicar tantas diferenças.
4) É possível separar a literatura por gerações? Quais são os problemas dessa classificação temporal?
Como disse acima. Claro que daqui a uns 50 anos será mais fácil se traçar divisões, marcos, se falar em gerações. Mesmo assim isso não será tão simples já que o número de livros e autores é muito grande e tende a aumentar. Mas a seleção quase-natural proporcionada pelo tempo vai permitir distanciamento e a análise dos, digamos, sobreviventes – e isso é apenas um palpite baseado em experiências anteriores. Por enquanto, acho essa tentativa de classificação muito complicada, funciona quase como uma camisa-de-força, que tenta encaixar autores e modelos, um quebra-cabeça que tem a obrigação de ser montado, mesmo que as peças não sejam muito compatíveis. Acho difícil traçar uma linha divisória que tenha como referência o critério da data de nascimento do autor. O Marçal e o Lins são de 1958; o Bernardo Carvalho, de 1960 – são todos da mesma geração, por exemplo. E a produção dos três é bem distinta. Por este critério, eu sou da mesma geração, por exemplo, de todos eles (nasci em 1961), mas comecei a publicar muito tempo depois, em 2002, já aos 41 anos. Sou um autor novo ou veterano? Vale o critério do ano de nascimento ou o da estréia em livro?
5) O que você acha da idéia da literatura brasileira estar muito submissa à realidade?
Em primeiro lugar seria interessante saber o que seria esta tal de realidade. Qual delas? A realidade de uma favela? De que favela? A dos escritórios da Avenida Paulista? De que escritório, de qual executivo? Ou se trata aí da realidade que se manifesta na solidão, na dor-de-corno, na tristeza, na desesperança? Será que uma realidade se opõe à outra? Todos – até mesmo autores de ficção científica – partimos de alguma realidade, nem que seja a realidade que se manifesta no uso da língua portuguesa. A questão é saber como trabalhar essas realidades de forma literária e isso vai depender do talento do autor, de sua capacidade de enxergar além do óbvio, do que é mais visível, palpável. Isso vale para todas as tentativas de abordagem da realidade: em “O filho eterno”, o Cristovão Tezza tratou de uma realidade, ou não? Uma realidade que tem a ver com sua própria biografia. Mas ele tratou do tema de uma maneira inovadora, não-óbvia, e fez um livro espetacular. Sinto hoje até uma espécie de preconceito contra autores que, de alguma forma, situem seus personagens em universos mais próximos, mais “reais” – como se eles ficassem presos demais à tal “realidade”. Insisto: isso não pode ser algo necessariamente bom ou ruim, vai depender do livro. Pode ser um ótimo livro ou apenas uma espécie de transposição literária de uma realidade jornalística, carregada de chavões e de lugares-comuns. A violência que tanto nos assusta pode ser matéria prima de excelentes livros e também de panfletos horrorosos. Isso vale para tudo, para qualquer tema, do tratamento literário, da linguagem utilizada, da maneira escolhida para se contar uma histórica. Fico com medo de uma estigmatização de temas, de assuntos. Não podemos cair na tentação de criar uma espécie de neoregionalismo, que jogaria num mesmo saco todos os autores que, de alguma forma, sentem necessidade de trabalhar com elementos que se evidenciam no cotidiano das grandes cidades. Nem todos serão filhos ou netos de Rubem Fonseca ou primos do Paulo Lins. Da mesma forma que nem todos os autores que o senso mais ou menos comum chama de intimistas podem ser classificados de órfãos de Clarice Lispector. A mão do autor é que vai definir o resultado daquela abordagem. Insisto: a realidade de um livro é que está impressa nas páginas, vale o escrito.
6) De que maneira o crescimento do mercado editorial influencia – caso influencie – o conteúdo escrito pela nova geração?
A produção que se manifesta na internet reforça a ligação entre os dois pontos. Não sei se o crescimento do mercado (de todos os mercados) influencia de forma decisiva conteúdos, mas certamente permite que mais conteúdos apareçam. Mas o processo é contínuo, uma linguagem mais comum na internet acaba indo parar em livros. Mas, de qualquer forma, é interessante se falar em mercado quando tratamos de literatura brasileira contemporânea. Talvez um dos seus maiores problemas seja a não existência de um mercado proriamente dito, de um público leitor que consuma tantos e tantos livros, que dialogue com eles, que ajude a romper consensos estabelecidos muitas vezes em círculos muito pequenos, de leitores não-comuns: editores, críticos, agentes e os próprios autores.