Resenha
Por Fernando Molica em 12 de abril de 2008 | Comentários (5)
A brutalidade tratada com humor
Ao som do violão de Nelson Cavaquinho, Fernando Molica narra desencanto de repórter
Jornal do Brasil, Caderno Idéias&Livros, 12/04/2008
Felipe Moura BrasilJornalista e escritor
Jornalista experiente, de muitas redações, Fernando Molica é também um desses escritores que complicam o trabalho do resenhista. O ponto da partida, seu terceiro romance, é tão enxuto e amarrado, tão belo e verossímil, tão melancólico e engraçado, que, quando se vê, o livro já tomou as rédeas de qualquer discernimento literário mais específico, qualquer atenção aos truques narrativos, qualquer atino sobre forma e conteúdo capaz de guiar uma análise mais detalhada. E aí é preciso voltar.
É preciso voltar para saber como Ricardo Menezes – repórter cinqüentão, ex-militante de esquerda, antirubro-negro, chegado numa ronda pelos botecos do Rio e fã do samba sofrido de Nelson Cavaquinho – repensa sua carreira, sua cidade e sua família, enquanto apura mais um crime carioca, ali mesmo entre um corpo feminino esquartejado no Arpoador, metido num saco preto, de madrugada, e um viúvo incrédulo, sentado num banquinho, à beira da praia.
Sim, é diante da brutalidade que ele aciona seu mecanismo favorito de defesa (no caso, de fuga): relembrar os casos cômicos do antigo colega João Carniça – do tempo em que repórter não precisava escrever. Mas daí para o ódio à ex-mulher, aquela “deslumbrada” e “consumista”, uma advogada que levou – e “estragou” – seus filhos, como foi mesmo que Molica passou?
A narração em terceira pessoa, sorrateira e freqüentemente desviada à primeira para revelar os pensamentos de Ricardo, somada à linguagem de desabafo em mesa de bar (às vezes, literalmente, como no Jobi) e ao manejo de situações e tempos intercalados, impõe ao texto um ritmo leve e inescapável.
Diálogos hilariantes
O que poderia resultar numa nostalgia para lá de macambúzia se converte, através do humor crítico do personagem, num divertido desencanto profissional e pessoal – ao qual a experiência do autor no ambiente jornalístico empresta a devida veracidade. Dele, não escapam os jovens editores dos cadernos de cultura – que não conhecem Guilherme de Brito, o maior parceiro de Nelson! – a filha gatinha do Leblon – que quer se embrenhar na Índia, numa “viagem profunda” com um tal de Hamiltinho – o filho “chato, conservador, careta, competente” – que escolhe sempre um candidato político oposto ao de Ricardo – e, claro, a “porca reacionária” da ex-mulher. Com cada um desses, ao longo da história, ele trava ao menos um diálogo explosivo, franco e, por isso mesmo, hilariante.
E é justamente ao culpar os outros pelas suas angústias que Ricardo vai revelando e sentindo suas fragilidades e omissões, e Molica vai traçando um paralelo entre as tragédias do personagem e as do Rio, desde a ditadura até o domínio do narcotráfico – temas familiares a seus dois primeiros romances, Notícias do Mirandão e Bandeira negra, amor. Isto sem jamais se eximir do enfoque humano e da capacidade de olhar as coisas de fora, escapando a qualquer caricatura, gênero ou reducionismo semelhante. Tudo que Ricardo tem de óbvio, teimoso e estereotipado é devidamente alfinetado pelos demais, levando-o também, ainda que aos solavancos, na direção de romper suas crisálidas.
Universo próprio
Quem espera do crime uma investigação à la Luiz Alfredo Garcia-Roza (transposta de Copacabana para Ipanema); da crueza urbana e narrativa uma volúpia à la Rubem Fonseca; ou do desencanto familiar um certo lirismo à la Cristóvão Tezza (do belíssimo O filho eterno) seguirá apenas pistas falsas rumo ao universo próprio de Fernando Molica, em que tudo (“ficção e realidade, comédia e tragédia, humor e dor”, como apresenta Antônio Torres) se mistura em doses homeopáticas.
Quiçá, diga-se, como nos filmes argentinos de Juan José Campanella (de O filho da noiva), em especial O mesmo amor, a mesma chuva, que também acompanha, com ternura e graça – e com jovens editores igualmente arrogantes – o drama de um jornalista deslocado, em meio à crise da imprensa e do país.
Talvez agora, aliás, os cineastas brasileiros já tenham (com o perdão do trocadilho) O ponto da partida – e a trilha sonora, sem dúvida – para a versão brasileira. Um livro que, como um lindo samba de Nelson Cavaquinho ou uma boa história de João Carniça, será sempre gostoso de lembrar.
É o personagem, é o personagem. Não tenho nada a ver com isso... beijos, obrigado. Molica
Fernando MolicaPô Molica, personagem antirubro-negro? Que pecado!!! Infelizmente não pude ir ao lançamento, mas pedi ao Nando que lhe transmitisse meu desejo de sucesso. Beijinhos e parabéns!!!
IzabelaComeçou com o pé direito: bela resenha. Saudações tricolores!
MarceloObrigado, meu caro. Nos vemos na quarta, na DaConde... Abração.
Fernando MolicaMerecidos elogios. Parabéns, Molica. (aliás, que semana para vc...)
Flávio I.