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Selfie em Berlim


Por Fernando Molica em 31 de outubro de 2016 | Comentários (0)

Participar de leituras e conversas em Berlim sobre ‘Uma selfie com Lenin’ terá uma característica especial. A capital alemã está entre as cidades citadas pelo narrador do livro, o autor da longa carta/romance. Aí vai um dos trechos em que a cidade é citada:

“Memórias doem, né? É óbvio dizer isto, mas nem sempre nos damos conta do tamanho de nossa dor. Há uns meses, em Berlim, consegui visitar o Reichstag. Eu sabia vagamente da história, do incêndio atribuído a um comunista desvairado que se tornou pretexto para que os nazistas fechassem o parlamento, meus conhecimentos não iam além do enciclopédico. Assim, tomei um susto quando a guia do meu grupo começou a destacar as inscrições em paredes internas do prédio deixadas pelos soldados soviéticos nos momentos finais da Segunda Guerra. Muitas e muitas paredes foram pichadas com ofensas aos alemães, palavrões que só não se tornavam explícitos porque escritos no alfabeto cirílico. Mas era possível imaginar as considerações dos invasores — libertadores — em relação às mães dos nazistas, dos caras que haviam provocado uma das maiores tragédias da humanidade. Para minha surpresa, as reformas ocorridas depois da guerra não apagaram todos os xingamentos. Durante algumas décadas, as inscrições ficaram atrás de divisórias, protegidas dos olhos do público. Com a reunificação alemã, houve nova reforma para que o Reichstag voltasse a sediar o parlamento — e foi aí que os caras decidiram expor as ofensas. Nem todas ficaram, mas há muitas, por todos os lados, algumas bem próximas à sala ocupada pelo chanceler federal, a Angela Merkel é obrigada a vê-las sempre que vai para seu gabinete. Lembrei de uma professora da faculdade, ela sempre dizia que, depois da expulsão dos ingleses, chineses discutiram o que fazer com uma enorme estátua de São Jorge plantada em Pequim. “Foi derrubada?”, perguntei. “Não, ganhou iluminação especial, feérica, para que ninguém se esquecesse do invasor, da ocupação”, respondeu. Os alemães fizeram mais ou menos isso. Ao expor os xingamentos soviéticos em seu próprio parlamento, na sede de seu poder, lembram aos cidadãos o tamanho da merda feita por seus antepassados, os crimes, o genocídio. Ressaltam que, por conta das cagadas pretéritas, todos são obrigados a conviver com as palavras para lá de duras pichadas pelos soldados soviéticos, os mesmos que comandariam o estupro de não sei quantos milhões de mulheres alemãs. Melhor conviver com dores pretéritas do que correr o risco de revivê-las, é importante lembrar para não repetir.

Talvez por isso eu lembre tanto, Eloísa. Talvez por isso eu precise escrever para você, necessite, depois de tanto tempo de viagem, deixar, nestas folhas de papel, meus garranchos, meus desabafos, minhas ofensas. Embarquei com a ideia de
esquecer, de deixar para trás você, a agência, nossos clientes, a Amanda, minha vida de jornalista. E, no entanto, não consigo parar de lembrar, de me torturar. É como se vocês todos estivessem ao meu lado, falando, cantando, cobrando,
pichando minhas paredes.”

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