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Sem beijo na boca


Por Fernando Molica em 13 de junho de 2023 | Comentários (0)

A possibilidade de entrega do Ministério da Saúde para o Centrão faz lembrar uma antiga crônica de Luis Fernando Verissimo. Ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), diante de rumores sobre a possibilidade de privatização da Petrobras, o escritor escreveu que para tudo havia limite.

Ressaltou que prostitutas conservavam a interdição ao beijo na boca, um tipo de intimidade que só deveria ser compartilhada por amantes, não poderia ser incluída no rol de prazeres comprados. Em seguida, elencou a estatal de petróleo nesta lista de proibições, algo como “A Petrobras, não”.

Não há espaço para inocência no jogo político. Os seus atores — dos protagonistas aos figurantes — desempenham papeis bem determinados, representam interesses, claros ou obscuros, seguem algum script. Ou, pelo menos, ficam na entrada do teatro se oferecendo para, desde que recompensados, desempenharem este ou aquele personagem.

Mas todos no Congresso Nacional foram eleitos, têm o direito de defender essa ou aquela posição. O fato de a grande maioria dos partidos brasileiros não representar ou defender qualquer tipo de ideologia favorece o mercado de compra e venda de votos e, mesmo, a chantagem. Mas quem não gosta desse tipo de brincadeira não deve descer pro play.

Nosso sistema eleitoral foi criado para dar errado; melhor, para dar certo para os que dele participam. Senadores e deputados sabem ser quase impossível que um presidente garanta, nas urnas, maioria parlamentar. Para governar, precisará negociar com o legislativo. Para dar um exemplo oposto: na França as eleições para a Assembleia Nacional ocorrem semanas depois da escolha do presidente da República. Isso evidencia para o eleitor a importância de seu voto, ele vai à urna consciente que sua opção será importante para facilitar ou para dificultar a vida do presidente.

Não estamos na França, o jeito é encarar a vida como ela é. Presidentes têm que fazer concessões, liberar verbas para parlamentares, entregar ministérios a partidos adversários ou interessados apenas nos cofres públicos. No limite, acata a vontade do eleitor que, de um jeito ou de outro, resolveu dividir o poder.

E volto ao Verissimo. Escolhida para o Ministério da Saúde, a socióloga e cientista política Nísia Trindade ganhou o cargo não por indicação partidária, mas por sua atuação na presidência da Fiocruz, em especial, durante a pandemia. Apesar da aversão de Jair Bolsonaro à ciência, ela conseguiu bancar, por exemplo, a importação e fabricação de vacinas.

Sua ida para o governo não representa garantia de competência nem de honestidade, a história brasileira já desmoralizou muita gente. Mas depois de tantos escândalos, da negação de valores básicos da saúde pública e até mesmo da péssima fama de alguns setores da política, seria muito ruim que a saúde e seu imenso orçamento se tornem as próximas vítimas do toma lá-dá cá.

Como presidente, Lula pode nomear e demitir e precisa construir maioria no Congresso, mas tem que ter cuidado para não naufragar ao buscar viabilizar o próprio mandato. Nossos 700 mil mortos pela covid foram vítimas do vírus, da incompetência, da insensibilidade e do negacionismo, mas também daqueles que viam na crise a oportunidade para fazer grandes negócios. Parafraseando Verissimo: com a saúde, não.

*Artigo para o Correio da Manhã, 13/6/23

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