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Surras que tomei de mulheres escritoras


Por Fernando Molica em 11 de maio de 2023 | Comentários (0)
Admito que andei levando surras de algumas mulheres. Pancadas simbólicas, literárias – mas nem por isso menos dolorosas, todas recebidas durante a leitura mais ou menos recente de livros de escritoras contemporâneas. Histórias que muito me balançaram e encantaram.
É complicado deliminar campos na arte, criar teses a partir de determinadas características de um grupo de autores – mulheres, negros, cariocas, gaúchos, gays. Classificações vindas de olhares externos são interessantes para ressaltar este ou aquele movimento mas também podem pecar pelo esquematismo ou reducionismo. Criadores são sempre maiores que definições que tentam enquadrá-los.
Daí que evito falar em literatura feminina contemporânea, até por ter lido apenas uma pequeníssima parte desta produção. Mas nada me impede de registrar alguns pontos em comum nos tais livros, responsáveis pelas tais bordoadas. Assim, de cara, ressaltaria algo meio superficial e, talvez. apressado. As pancadas distribuídas nos tais livros não provocam ferimentos visíveis, fraturas expostas.
Diferentemente de uma violência mais presente em livros de autores homens, são mais capazes de criar hemorragias internas e complexas. Um tipo de dor presente também em personagens masculinos, como o menino Mateus, protagonista do doloroso conto ‘Um giz’, que abre ‘Quem tá vivo levanta a mão’ (Patuá), de Maria Fernanda Elias Maglio.
Ainda conservo algumas marcas roxas advindas da leitura de ‘Nem sinal de asas’ (Patuá), de Marcela Dantés. Escrito a partir de um caso real, o da mulher encontrada em casa cinco anos depois de sua morte, o romance é preciso, duro e lírico ao tratar de uma personagem, Anja, que carrega no corpo testemunhos do racismo.
Sua mãe, branca, assustada com cor escura da filha, tentou clarear a filha aplicando suco de limão em sua pele – uma agressão que deixaria marcas permanentes naquela futura enfermeira e que seriam decisivas na formação de sua personalidade e de suas relações com o mundo. Uma Anja de vida tímida, assim-assim; uma anja Macabéa.
Do romance emerge também algo que fica evidente em outros deste pequeno grupo – a forte presença de mulheres que antecederam as protagonistas, de um modo geral, suas mães. Mulheres criticadas pela omissão ou por práticas repressivas, mas que, mesmo assim, não deixam de ser compreendidas. Há raiva e manifestações de discordâncias, mas também busca de entendimento.
Anja faz como a personagem-título de ‘Eva’ (Todavia), de Nara Vidal. Assim como no caso do livro de Dantés, o embate entre mãe e filha começa na escolha do nome da menina. Um embate que se prolonga e cresce ao longo da narrativa e da vida de Eva. Uma luta ferrenha, que desfila mágoas, desabafos e cobranças.
Mas, outra vez, temos uma generosa dose de compreensão. Eva demonstra entender a mãe e suas limitações. Assim como Anja, fala de si, mas fala também daquelas mulheres que vieram antes, e que não conseguiram falar, escrever, contar e que acabaram se expressando ao impor barreiras e limites às filhas. As mães de Anja e de Eva não são megeras, são mulheres que fizeram o que achavam que podiam e deviam fazer.
Os livros registram as queixas das filhas, mas dão voz às suas mães, impossibilitadas de falar, de impedir a violência sexual narrada por Morgana Krestzmann em ‘Ao pó’ (Patuá). Aquelas hemorragias foram construídas ao longo de gerações, mães eventualmente omissas ou cúmplices também foram vítimas.
E são mulheres reprimidas, abusadas, torturadas e, mesmo, assassinadas que se unem em ‘A cabeça cortada de Dona Justa’ (Rocco), de Rosa Amanda Strausz. Ligadas por uma espécie de pacto solidário que atravessa gerações, não lhes sobra outro caminho para tentar virar um jogo em que, de cara, são condenadas.
Por último, destaco a leitura de ‘O regresso de Júlia Mann a Paraty’ (Oficina Raquel), da portuguesa Teolinda Gersão. O romance – curto e denso – é dividido em três partes. Na primeira estão reflexões de Freud sobre Thomas Mann; a segunda mostra o escritor falando do médico criador da psicanálise – um é o duplo do outro. Há elogios, críticas, reflexões, puxões de orelha e alguma inveja. Considerações masculinas formuladas por dois personagens geniais.
Só a terceira parte é dedicada a Júlia Mann, a brasileira mãe do escritor que, com os irmãos, é levada pelo pai para viver na Alemanha. Desterrada, sem apoio da mãe (que morrera em Paraty) e da ama-escravizada, Júlia é uma peça incapaz de ser encaixada num tabuleiro autoritário, machista, excludente e racista.
Órfã de mãe desde muito pequena, é obrigada a construir uma história a partir de poucas referências. Seu retorno a Paraty, onde nascera, é um fluxo que encharca a narrativa, aponta para a liberdade, afoga grilhões e ajuda a iluminar as histórias de Anja, Eva, Sofia, Justa e de outras tantas mulheres.
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