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PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

Trecho de ‘O inventário de Julio Reis’


Por Fernando Molica em 18 de dezembro de 2012 | Comentários (0)

No trajeto até o Centro, observei com atenção cada detalhe do bonde, das pessoas que nele estavam ou que passavam pelas ruas – o chapéu branco decorado com flores da senhora, a bengala do cavalheiro com bigode engomado à la hongroise ou posto a ferro pelo barbeiro, a menina de vestido rodado e laço de fita nos cabelos, o mascate que, numa calçada, vestido com paletó listrado e surrado, carregava nas costas seu baú repleto de tecidos,o garoto com roupas de marinheiro, o garrafeiro descalço com o cesto à cabeça, a preta baiana de cabeça envolta em pano e tabuleiro lotado de doces deitado à rua. Naquela tarde, todos aqueles personagens me pareceram mais velhos, condenados ao desaparecimento, não resistiriam a tantas mudanças. Por quanto tempo ainda haveria bengalas, bigodes encerados e meninos com roupas de marinheiro? Muitos dos burros que puxavam os bondes haviam sido aposentados. De imprescindíveis, tornaram-se obsoletos, desprovidos de qualquer serventia, como os escravos que, passados mais de 20 anos da Abolição, ficam perambulando pelas ruas, dormindo nas praças, imploravam por comida, por um lugar para dormir. De súbito, haviam perdido a função, a utilidade. Foi-se a ignomínia da escravidão, veio a indignidade do ócio, da falta do que fazer. Os quiosques tinham sido eliminados, tantos e tantos casarões do Centro foram postos abaixo, de residências de luxo haviam passado a condição de casas de cômodos, abrigos de miseráveis e de desocupados; depois, virariam um amontoado de pedras. O progresso se impunha com pressa, era violento, inconteste, arrasador. Em breve, como as ondas que chegavam aos pés do Outeiro, arrastaria profissões, modas, hábitos, costumes. Ao apear do bonde, olhei de relance para o meu próprio rosto refletido no espelho do motorneiro. Por um breve instante, também me achei idoso, ultrapassado. Encharcados pelo suor, fios de cabelo teimavam em escapar do chapéu e grudavam na minha testa, o calor fazia meus óculos deslizarem pelo nariz e deixava ainda mais evidente o anacronismo do colete com que eu tentava resguardar alguma elegância. A claridade ressaltava o puído dos meus trajes, meu rosto parecia ainda mais encovado; embutida no meu colarinho duro, a gravata plastron se assemelhava a um estandarte de algum exército derrotado, que acenava apenas para o passado. Percebia o quanto envelhecera naqueles cinquenta minutos de viagem. Na Avenida, apressei o passo em direção ao Lyrico, precisava de refúgio, de um ambiente seguro, um local onde pudesse me reconhecer e admitir que ainda estava vivo.

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