‘Uma selfie com Lenin’ no ‘Rascunho’
Por Fernando Molica em 23 de abril de 2017 | Comentários (0)
Aqui, a resenha de ‘Uma selfie com Lenin’ publicada no ‘Rascunho’, o mais importante jornal sobre literatura do país. O texo é de Carla Bessa.
Jogo sujo
Como sugere o título, Uma selfie com Lenin, de Fernando Molica, é o instantâneo de uma história individual contra o pano de fundo do contexto histórico mundial. Ao passar em revista os últimos anos de sua vida, o protagonista constrói pontes entre o seu caos pessoal e a crise global, fazendo um balanço do seu tempo, um acerto de contas com ideologias e paixões deixadas para trás, em busca de um retorno ou recomeço.
Na superfície, o romance é uma longa carta à ex-namorada e ex-chefe, Eloísa, com a qual o protagonista trabalhara como assessor de políticos. Redigida no avião, durante um voo pela Europa, a missiva é a tentativa literal de ver as coisas de cima e traçar um mapa dos desencontros amorosos e profissionais vividos em um passado não muito distante. E faz, de rebarba, uma análise contundente e mordaz dos assim chamados “bastidores do poder” e das inquietações políticas dos últimos anos no Brasil e no mundo.
Olhando mais a fundo, o texto é uma crítica incisiva à manipulação de informações pelas mídias modernas. Movimentando-se com presteza estilística e embasamento histórico entre as linguagens jornalística e ficcional, Molica nos mostra o quanto somos manipuláveis. E que é exatamente desta falta de escrúpulos da qual se aproveitam tanto os assessores de políticos como os meios de comunicação em geral. Por exemplo, o cinema e a televisão, como ilustra no final do livro. As últimas lembranças são contadas em forma de um filme imaginário, numa narrativa com cortes rápidos como numa cena de perseguição, revelando exatamente a instrumentalização da nossa empatia: Torcemos pelo ladrão porque ele nos é simpático, mas também porque o furtado é um cafajeste ainda maior.
Arrumadeiras de motel
Sem perder o humor, o protagonista nos conta sobre sua frustração de ter deixado o trabalho na redação de um jornal para, por meio de Eloísa, se deixar seduzir pelas sinuosas perspectivas da assessoria política, mesmo sabendo que a maioria de seus clientes teria reputações mais do que duvidosas. O relato é denúncia e autodenúncia, a confissão de alguém que se reconhece culpado por conivência.
E não deixa de ser engraçado quando falo neles, nos nossos clientes, como se eu e você não tivéssemos nada a ver com isso… Éramos — eu não sou mais — como arrumadeiras de motel, que permitem que a sacanagem alheia seja feita em ambiente limpo, asséptico, sem risco de contaminação. …Não participávamos do grosso da safadeza, mas, sem nossa ajuda, ela não se realizaria.
Desde o começo fica claro que a carta-conversa com Eloísa não passa de um pretexto para uma reflexão sobre a sua época e a sua própria história. Ao deixar o protagonista descrever a ascensão da namorada, Molica esboça o perfil de toda uma classe de redatores e assessores de imprensa. Com sua selfie, ele retrata uma classe jornalística resiliente, que se deixa gratificar por sua cumplicidade e ainda o faz não somente pela segurança financeira, mas por uma espécie de arrivismo que, no fim literal das contas, torna seus profissionais mais culpados do que os corruptos que o fazem por dinheiro:
Não era só pela grana, eu sei. Você jamais se prestaria a tanto por conta de algumas dezenas de milhares de reais. O importante era a briga, a disputa, a causa impossível.
O não-lugar da narrativa
Imprescindível para esta purgação por meio da escrita é o ambiente sem saída do avião que propicia a perspectiva claustrofóbico-reflexiva necessária para a fuga no relato. É ali de cima, literalmente “no ar”, que o autor encontra o “não-lugar” ideal da narrativa, o enclausuramento que procurará uma válvula de escape na narração.
“Estou numa cápsula metálica a não sei quantos quilômetros de altura, num não território, sentado numa poltrona ao lado do corredor, sem acesso sequer a uma janelinha… Isso deve ter despertado esta minha vontade de lhe escrever — talvez por estar no ar, sem referências, sem saber para que lado está o norte ou o sul…”
É neste limbo geográfico e temporal que ele se sente livre para deixar cair máscaras e faces. Entre uma revelação e outra sobre si, levanta o tapete da assessoria política no Brasil e deixa exposta a sujeira de um cotidiano entre políticos corruptos.
Mas a metáfora do “não-lugar” é ainda maior. Nela caberá também a falta de espaço da memória na agilidade do mundo digital de hoje, onde se torna obsoleta qualquer fixação de lembranças, já que o avanço tecnológico é mais rápido do que a nossa compreensão de seus meios: fotos, filmes, escritos. Isso porque, com o permanente desenvolvimento dos programas, “em pouco tempo não haverá como abrir aqueles velhos arquivos”.
Assim, perderemos sutil e paulatinamente o senso de compromisso, de obrigações, já que nem as fotos nos confrontam mais com nossos rostos, simplesmente porque não são vistas, só tiradas.
“Criamos a foto sem memória, veja só, a foto que não cobra, que não apresenta qualquer fatura. Uma não foto, incapaz de nos encarar, de jogar na nossa cara o que fizemos de nossas vidas. Inventou-se — tem certeza de que você não participou disso? Seria ideal para limpar o currículo/folha corrida de seus assessorados — um passado que não retorna, que fica confinado numa ausência de memória, um desafio à psicanálise, eu, eu, eu, doutor Freud sifudeu.”
Por falar em memória
Aproveitando a deixa da memória (ou da sua ausência), como demarcação do eu no contexto global, o protagonista guarnece seu relato com protocolos de visitas a museus, essas instituições que são, per se, os baluartes da conservação da memória. Ao defrontar-se com os resquícios da história dos povos europeus, o autor aproveita o ensejo para um passeio reflexivo pelos anais das colonizações. E nos apresenta um verdadeiro catálogo das falcatruas dos colonizadores europeus, como, por exemplo, o hábito dos franceses de levarem de suas colônias papagaios, frutos e índios brasileiros para a Europa, como evidências do exótico. Ou as máscaras fabricadas pelos holandeses a partir de um molde de gesso tomado dos rostos de homens e mulheres de suas colônias. Em outro momento, denuncia a incrível cara de pau de um embaixador do Reino Unido que, depois de se apropriar de objetos culturais valiosíssimos de uma de suas colônias, sob o pretexto de salvaguardá-los da destruição, simplesmente os vende (!) em seu país.
“Eles e colonizadores de outros países salvaram as peças da mesma forma que se diziam interessados em salvar almas de africanos, orientais e americanos, todos invadidos, mortos, espoliados. Dá para imaginá-los dizendo algo como viemos aqui para salvá-los de vocês mesmos, para proteger as lindas obras de arte dos povos que as criaram.”
Mensagem na garrafa
O final do romance traz uma confissão, um mascarado pedido de desculpas e uma apologia à cultura da lembrança. O protagonista recorda uma visita ao parlamento alemão, em Berlim, onde a memória do Nacional-Socialismo é perpetuada por uma obra de arte que lembra os horrores da Segunda Guerra, bem no centro do poder. Houve protestos por parte da população, as pessoas chegaram a danificar a peça, mas sua permanência foi garantida por lei. Ali, a lembrança é mantida viva e fica sujeita a joelhadas e chutes, mas também à reflexão.
Como se quisesse nos convencer de que é no centro da memória que se encontra a semente do perdão, o protagonista volta, no final do livro, à reflexão feita no início, de que é só assumindo o personagem no qual se transformou que poderá se livrar dele.
O que fica é a catarse pelo relato enquanto mensagem numa garrafa.