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Uma vitória que não deveria ter ocorrido


Por Fernando Molica em 15 de fevereiro de 2018 | Comentários (0)

Vamos lá, com um pouco mais de calma. Adoraria, como fez o querido e competentíssimo Leonardo Bruno hoje, no Globo, enxergar na vitória da (grande) Beija-Flor um triunfo da emoção sobre a frieza dos critérios técnicos que balizam o julgamento do desfile. Mas não consigo: a história do Carnaval revela o poder institucional da escola e a dificuldade que julgadores têm para puni-la. Duvido que o mesmo desfile seria vencedor caso fosse apresentado por qualquer outra agremiação.

Seria absurdo tirar pontos da Beija-Flor em quesitos como evolução, harmonia, mestre-sala e porta-bandeira, samba enredo – seu ‘chão’ é espetacular, nunca deixei de reconhecer. Mas foi absurdo que muitos pontos não tenham sido tirados em fantasias, alegorias e enredo (a própria- sinopse é confusa, fala num Frankestein vítima de preconceito – pelo que entendi, nós, povo brasileiro, é que seríamos o monstro repudiado e discriminado. Mas a realização do enredo foi ainda pior, indecifrável, uma mera colagem de mazelas não carnavalizadas, não interpretadas, o Frankestein não deve ter entendido nada).

Vi o desfile da entrada da pista, fiquei espantado com as alegorias (feias, nada criativas) e com as fantasias, óbvias, baseadas em lugares-comuns como ratos, gatunos, políticos engravatados com dinheiro saindo dos bolsos. A fantasia de barril de petróleo era constrangedoramente feia; a de dirigentes de futebol (figurantes que levavam símbolos de times em suas cartolas), patética de tão rasteira. E, como frisei em outro texto, não dá para levar caixão de estudante em alegoria. Não dá.

E há também uma questão fundamental: desfile de escola de samba, como qualquer outra criação artística, não é passeata. Arte é criação, interpretação, apresentação de leituras diferenciadas sobre diferentes temas. A Beija-Flor não fez nada disso, apenas enfileirou problemas, fez uma retrospectiva jornalística de fim de ano. O camarada Anderson Baltar desenvolveu muito bem o tema em artigo publicado antes da apuração.

Como frisou a amiga e pesquisadora de Carnaval Rachel Valença, a euforia despertada pelos desfiles da Beija-Flor e da Tuiuti revela também uma falta de canais de expressão política. As grandes manifestações que abriram caminho para o impeachment de Dilma Rousseff minguaram, os desmandos e escândalos do governo Temer não geraram protestos semelhantes.

OK, artes também podem ser canais de protesto (vale lembrar o papel da MPB durante a ditadura), mas é estranho que, no caso das escolas de samba, isso ocorra num regime democrático, que, com raras exceções, preserva o direito de manifestação. O furor causado pela Beija-Flor revela inconformismo de boa parte da população, mas também sua paralisia e incapacidade de organização, de protesto.

E, insisto, a escola apresentou um enredo conservador, que atribui todos os nossos males a um grupo de políticos ladrões: nós, que os elegemos, que eventualmente os derrubamos, não temos nada a ver com isso. Nós somos todos limpos, puros, nenhum de nós suborna guardas, nenhum de nós sonega impostos, nenhum de nós vende voto, nenhum de nós apoia polícia corrupta e violenta, nenhum de nós discursa contra os direitos humanos, nenhum de nós reclama de cotas, nenhum de nós ficou irritado ao ver negros em aviões, ninguém comparou aeroporto a rodoviária. Nenhum de nós apoia candidato à presidência que propõe bombardear favelas. A culpa é sempre dos outros – neste sentido, a Beija-Flor lavou a alma de muita gente, perdoou todos os seus pecados.

(Ah, achei justo a Mangueira, minha escola, perder pontos em comissão de frente e em bateria. Mereceria até ser punida pela alegoria que passou apagada. Mas queria apenas que tivesse havido o mesmo rigor com a escola declarada campeã).

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