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Unidade de Pacificação Literária


Por Fernando Molica em 27 de agosto de 2010 | Comentários (2)

Foi lá por volta do terceiro chope que o Gabi Martínez, espanhol que veio ao Rio lançar seu romance Sudd (Rocco), fez uma pergunta que insinuava uma resposta positiva:

– Os brasileiros (ou cariocas, não me lembro mais) devem escrever muito sobre favelas, não?

A maioria da mesa gritou “sim”; eu puxei um solitário “não”. Uma amiga – escritora, jornalista e roteirista – tentou contemporizar. Disse que o tema favela chegara a ser predominante na literatura, mas que isso havia passado. Fez uma ressalva em tom meio de lamento: no cinema, aquele mundo outrora de zinco continuava a ser hegemônico.

Discordei de novo. É o oposto: a literatura e o cinema contemporâneos tendem a focar cada vez mais o universo da classe média urbana (meus últimos dois romances vão nesta linha, por sinal). Vale conferir as listas de maiores bilheterias e, no caso dos livros, de premiações. Não se trata, claro, de pedir cota para pobres na ficção, cada um que escreva sobre o que bem entender. Mas é curioso o estigma em relação a livros ou filmes que, de alguma forma, abordam aspectos relacionados às favelas (sei, já tratei do tema aqui, mas agora já comecei a escrever de novo, dane-se). Fala-se no suposto gênero livros sobre favela & violência como não se fala em livros sobre a classe média e suas angústias. É como se tratar disto seja o normal, o esperado; tratar daquilo seria um desvio. Pior: livros que, de alguma forma, abordem favelas, pobres e violência seriam todos iguais, teriam as mesmas preocupações, tratariam dos mesmos aspectos.

O grave é se diferenciar obras não por sua qualidade, mas pela renda per capita de seus personagens. Não existe literatura de favela ou literatura de classe média ou literatura de milionários. Existem bons e maus livros. Arrisco um palpite: depois de desejar o fim ou a remoção das favelas, setores da sociedade brasileira querem eliminar a favela de seu imaginário. Uma remoção simbólica, algo como um “tirem esses pobres da minha biblioteca”. Não deixa de ser uma forma de se livrar de um problema – pelo menos, enquanto estivermos trancados dentro de casa.

Se não é possível fazer a favela sumir fisicamente, é necessário eliminar sua presença no imaginário, dar uma solução final para os sonhos, desejos, frustrações e ambições de seus habitantes: feios, sujos e malvados, como naquele velho filme italiano. No máximo podemos admiti-los quietos, comportados – pacificados, como se tornou corrente dizer. Na prática, busca-se uma UPL, Unidade Pacificadora Literária, uma tropa de elite que trate de colocar os pobres em seu suposto devido lugar, bem longe das melhores páginas do ramo. Livro sobre pobre só pode subir pelo elevador de serviço e entrar apenas pela porta de serviço.

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Comentários
31 de agosto de 2010

Talvez, Moutinho, talvez. Mas tenho uma resistência em pensar na lógica de ciclos. Claro que cada autor está sujeito às influências de seu período histórico, mas cada história é uma história, tem sua própria pegada, seu viés particular. O que acho complicado é o rótulo, como se a simples ambientação de um livro em uma favela o tornasse integrante de um ciclo, de um movimento, de uma determinada lógica literária. As favelas - as físicas e as ficcionais - são diferentes entre si, abrigam moradores diferentes entre si. Até os bandidos são diferentes. Discordo da crítica genérica, que não consegue ver particularidades nos livros que, de alguma forma, abordam esses universos. É como se eles livros tratassem de favelas antes de tratar de pessoas. Não vejo esta mesma abordagem crítica em livros que tratem de outros universos. Tratar da classe média seria normal, tratar de pobres seria diferente. Não sei se é mais fácil tratar de personagens que vivam num universo semelhante ao meu ou daqueles que habitam outras praias (ou morros). Acho que ambas as tentativas são delicadas. Como autor, me esforço para tentar fugir do lugar-comum, da visão mais óbvia desta ou aquela pessoa (seja ela um jornalista, um advogado, um revolucionário ou um bandido). Acho que este esforço - bem ou mal sucedido, cada leitor que trate de fazer sua avaliação - merece também uma leitura particular. Enfim, só um de meus livros tem uma favela como cenário privilegiado, não quero me tornar em defensor de um suposto gênero - até porque faço questão de negá-lo como tal. Ah, concordo com uma certa ausência da classe média baixa das páginas.

Fernando Molica
31 de agosto de 2010

Caro, acho um exagero afirmar isso. O que talvez haja, agora, é o outro capítulo de um ciclo natural. Primeiro, se falou da favela sob o viés da violência, tema que começou se esgotar. Agora, buscam-se outros aspectos. Não enxergo, sinceramente, uma tentativa deliberada de "apagar" a favela dos livros. E mais: mais "apagada" que a favela é a classe média baixa, essa sim sumida da literatura brasileira, possivelmente porque não tem o "glamour marginal" da favela, nem o charme dos estamentos mais altos

Marcelo Moutinho