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PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

Vitória na primeira rodada


Por Fernando Molica em 05 de novembro de 2009 | Comentários (2)

Depois de perder para o Cerro Porteño, não deixa de ser reconfortante ganhar do João Gilberto Noll. Enfim, uma vitória – meio suada, como costumam ser as vitórias alvinegras, mas uma vitória. A partida foi pela primeira fase da versão 2009 da Copa de Literatura Brasileira, um – digamos – torneio que reúne 16 livros e os coloca para – digamos, de novo – jogar um mata-mata. A vitória é definida por um juiz, um leitor que analisa os romances em disputa. No caso, meu O ponto da partida entrou em campo para enfrentar Acenos e afagos, do Noll.

Como eu disse aqui, em julho passado, a Copa é bem divertida, é séria sem ser chata – ainda que volta e meia ocorra uma confusão no meio do gramado (é um jogo, né?). As resenhas, de um modo geral muito interessantes, costumam ser arejadas, amadoras no melhor sentido da palavra, feitas por pessoas que gostam de literatura. Fundamental: os juízes leem os livros, são obrigados a justificar seus votos. Isso é um grande avanço. A existência desta justificativa dá maior responsabilidade ao julgador, não se trata apenas de apontar que A é melhor que B. É preciso dizer por que A é melhor que B. Ou seja, quem julga também é julgado, o que é bem democrático.

Talvez a ideia da Copa represente algo que gostaríamos ver mais: livros tratados com seriedade e graça, como numa boa conversa de bar. E, claro, com a sempre presente possibilidade de se xingar o juiz. No caso desta Copa, o jogo é mais interessante do que seu resultado. Até porque o placar nunca pode ser visto como definitivo, como verdade absoluta.

Bem, aí vai o comentário de Fabio Silvestre Cardoso que decidiu o sexto jogo. Vale dar uma passada no site da Copa, as discussões pós-jogos costumam ser bem interessantes. Ah, nas quartas de final, meu O ponto da partida enfrenta Flores azuis, de Carola Saavedra.

No sexto jogo da Copa da Literatura Brasileira, Acenos e afagos, de João Gilberto Noll, e O ponto da partida, de Fernando Molica, travaram um duelo bastante disputado, pois ambos os livros apresentaram virtudes que sobrepuseram seus eventuais vícios. A princípio, a obra de João Gilberto Noll levava certa vantagem, sobretudo porque o autor é daqueles que se pode considerar adepto de uma literatura vistosa, dessas que conseguem encantar o leitor e o amante dos romances tanto pelo lirismo como pelo estilo bem acabado, extremamente calculado, que sabe exatamente onde quer chegar. De sua parte, Fernando Molica é um autor com repertório literário mais modesto, sem esbanjar tantos recursos estilísticos; em contrapartida, é detentor de uma narrativa bastante envolvente, dessas que conquistam o leitor já no primeiro parágrafo. É como se fossem escolas diferentes, o que só poderia produzir um grande jogo. E nessa disputa, contrariando os prognósticos, O ponto da partida, de Fernando Molica, foi o vencedor.

A chave para a vitória, para utilizar o jargão dos comentaristas de futebol, está justamente na maneira como Molica conduziu sua história, tratando de um tema aparentemente banal: a crise de meia-idade de um jornalista carioca, apaixonado por Nelson Cavaquinho, que durante um plantão na madrugada revisita sua trajetória profissional, sua vida afetiva e seu relacionamento com os filhos. Nessa jornada rígida e ordinária, o protagonista Ricardo Menezes consegue cativar o leitor porque, homem desprovido de qualidades, mostra-se demasiadamente humano. Assim, mesmo sendo um personagem um tanto amargurado e vivendo (a suspeita é deste juiz) uma espécie de depressão silenciosa, escondida apenas pelos picos de euforia, Menezes não deixa de encarar seus problemas, numa postura divertidamente iconoclasta.

Até aí, alguém pode dizer, isso não sustenta a supremacia de um livro. De fato, não. Todavia, é necessário ressaltar que o autor constrói uma galeria de personagens à altura do protagonista. O sucesso da caracterização é tamanho que em determinado momento o leitor pode crer que as histórias do livro são desses casos fortuitos do cotidiano, algo como uma seleção do que não coube nos jornais. Que fique claro: a despeito da verossimilhança, trata-se de uma obra de ficção, obviamente arrematada por um autor experiente no ofício de articular boas histórias e que não deixa o leitor perder o interesse pela sequência dos acontecimentos. Assim, seja nos diálogos, seja no encadeamento dos capítulos, Fernando Molica é hábil em construir um relato bastante conciso e objetivo, mas, principalmente, um romance que cumpre seu papel de fazer o leitor desfrutar o texto. Assim, se é verdade que em determinados momentos o autor faz com que o leitor reflita sobre as escolhas que os homens, e mulheres, fazem em sua vida para ter mais status, qualidade de vida e dinheiro, também é verdade que ele propõe isso de forma suave e lúdica, deixando sedimentadas as impressões para o leitor. É nesse quesito de, digamos, cumprimento de proposta autoral que o livro de Molica bate o de João Gilberto Noll.

Para quem não sabe, João Gilberto Noll é um dos grandes romancistas brasileiros, mencionado em antologias da literatura brasileira, e um dos autores de prosa vivos mais traduzidos para fora do país. A celebração em torno de João Gilberto Noll se dá porque ele é um autor que se propõe a elaborar uma literatura decididamente mais sofisticada, com um projeto literário a ser seguido. No caso da obra em questão, Acenos e afagos se destaca (a começar pelo título) por ser um romance dotado de uma voz poética bastante peculiar, que pode ser identificada já na maneira como o narrador se dispõe a contar sua história para o leitor.

Esse narrador, protagonista de inúmeras aventuras e desventuras eróticas, a todos relata sobre seus desejos, sua volúpia e sua busca quase incessante pelo prazer carnal. Para ele, nada é mais importante do que agradar seu parceiro: ao mesmo tempo em que se torna a mulher de um engenheiro cuja conduta é misteriosa, ele também assume o papel de homem na intimidade homoerótica. Essa ambivalência causa um nó na cabeça do protagonista, que se vê envolto em inúmeros dilemas morais e existenciais, a ponto de sua fala ser absolutamente errática, caótica, muito embora a organização das ideias seja absolutamente bem feita.

Nessa perspectiva, há de se notar um elemento, a meu ver desnecessário, que compõe a obra de Noll. Trata-se do apelo ao grotesco, um recurso utilizado em demasia pelo autor, que, de forma consciente, arremata o estilo desse livro com uma linguagem chula que usa e abusa dos palavrões para dar cor ao personagem. A mensagem é clara. Experiente no domínio da palavra, JGN tem como objetivo chocar e causar espécie junto ao leitor. A esse respeito, não é descabido lembrar de que Nelson Rodrigues qualificava tal estratagema como a doença infantil do palavrão. Eis um ponto bastante curioso: em Acenos e afagos a verve poética é apimentada por um memorial erótico que em dados momentos, pela riqueza de detalhes, se assemelha aos blogs de garotas de programa que tanto fizeram sucesso na internet neste início de século XXI. Ora, se é verdade que a boa literatura não se faz com bons sentimentos, também é certo que nem tudo é literatura. Assim, quando o narrador revela que, torturado, tinha seu desejo sexual fora de controle, a ponto de deixar a companhia do filho para buscar prazeres proibidos, o leitor tem a impressão de que esse tipo de enredo está mais para filmes de gosto duvidoso nas altas horas da madrugada do que para narrativa ficcional de qualidade.

Esse elemento, no entanto, é acessório. Em verdade, o ponto que faz de Acenos e afagos um livro inferior em relação à obra de Molica é precisamente a condução da narrativa, que no caso da obra de JGN se assume como sofisticada, mas não consegue trazer o leitor comum para seu livro. Quer dizer, o autor até tenta isso com as descrições sexuais em série, mas logo essa arte de causar efeito torna-se estéril. Em outras palavras, Noll acaba por estimular, aguçar e apimentar a imaginação do público, mas, comparado ao texto de Molica, suas inventivas são inócuas e sem sentido.

Se se comparar os textos, há de se notar que ambos os protagonistas passam por experiências extenuantes em sua trajetória. Sim, leitor, são argumentos e histórias totalmente distintos um do outro. Todavia, constata-se que tanto o narrador-protagonista de JGN quanto o herói de Fernando Molica atravessam momentos de tensão ao resgatar suas escolhas, tomar novas decisões e enfrentar novos desafios. Como num jogo em que as duas equipes têm atletas de alto rendimento em ótimas condições, a peleja fica bem interessante ao leitor. Mesmo nesse ponto, contudo, a vantagem é para a obra de Molica, porque a distribuição das personagens ajuda a compor um painel mais rico para a história, enquanto o protagonista de JGN torna-se um contínuo de si mesmo, enredado em suas próprias angústias, e o livro parece claramente tomar a opção da parte em detrimento do todo. No conjunto, o romance de Molica é mais coeso e, sim, mais elaborado.

Entre o estilo vistoso de Noll e a prosa objetiva de Molica, neste embate, O ponto da partida vence Acenos e afagos. De um modo geral, é evidente que nem todos os confrontos entre essas duas escolas teriam esse mesmo resultado. Mas num jogo como esse os detalhes importam mais do que o favoritismo inicial.

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Comentários
06 de novembro de 2009

Obrigado, Luiz. Espero que você goste do livro. Abração.

Fernando Molica
06 de novembro de 2009

parabéns pela vitória, molica. como já disse lá no blog da copa: gostei da resenha, mas senti falta de citações q fundamentassem melhor os argumentos. seu livro está na minha lista ainda para este ano. grande abraço e sucesso nos próximos jogos!

luizgusma