Vivan de Moraes
Por Fernando Molica em 17 de janeiro de 2022 | Comentários (0)
Em resenha sobre ‘Elefantes no céu de Piedade’ publicada em seu blog, Vivian de Moraes afirma que o “contraste entre a fase sombria da política brasileira e a vida de gente simples, morando em um subúrbio carioca, é o lance de mestre de Fernando Molica nesta obra, muito recomendada”.
“O mais recente lançamento de Fernando Molica é um romance que apresenta uma deliciosa reconstrução histórica do início dos anos setenta em contraponto ao difícil momento político da época. O longo período, conhecido como ditadura militar brasileira, foi constituído por sucessivos governos que se alternaram no comando do poder Executivo, por meio dos generais: Castello Branco (1964-67), Costa e Silva (1967-69), Garrastazu Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João Figueiredo (1979-85). O livro tem a sua ação focada durante o governo Médici, quando a repressão aos movimentos de esquerda se intensificou, assim como a propaganda institucional representada por slogans como o “Brasil Ame-o ou Deixe-o!”.
O autor procura recontar esse período histórico de uma forma diferente, pelo ponto de vista ingênuo de uma criança de dez anos, um protagonista que tenta compreender o que está acontecendo à sua volta e é influenciado pela postura dos pais, familiares e amigos. De fato, o distanciamento político era característico nas famílias brasileiras. De um lado o sequestro a diplomatas e assaltos a banco pelos movimentos de esquerda e, do outro, pessoas sendo torturadas e mortas nos porões da ditadura. Neste ambiente, a recomendação dos pais era para que os filhos não se envolvessem com política, assunto evitado e proibido, portanto.
Um fato que contribuiu muito para a apatia política generalizada foi a exaltação do “milagre econômico” brasileiro com grandes obras de infraestrutura e o aumento da taxa do PIB o que, juntamente com a propaganda ufanista de direita, criou na população a expectativa de crescimento econômico e oportunidades. O lançamento do Opala, antes da crise do petróleo, é um símbolo desta fase, destaque no capítulo inicial do romance, quando a compra do novo carro, em substituição ao tradicional Fusquinha, é uma demonstração do progresso do país.
“O que mais me impressionou foi o tamanho do banco dianteiro. Imenso, contínuo, sem aquela divisão de onde, no Fusca, brotava a alavanca usada para a troca de marchas. Era bem diferente, a haste do câmbio ficava presa ao volante, liberava espaço, fazia com que na frente do carro houvesse quase uma cama. Haveria espaço também para mim, entre meu pai e minha mãe, talvez fosse preciso revezar com Fátima, minha irmã; um dia ela, no outro, eu. Mas, na estreia, na primeira volta, o lugar seria meu, claro que seria. Não daria pra ficar triste quando tivesse que ir para o banco traseiro, também espaçoso e confortável, em nada parecido com o do Fusquinha: duro, apertado, de lá era difícil até ver o que se passava do lado de fora. Para chegar aos meus olhos, o mundo precisava se espremer e só então penetrar por janelinhas esquisitas, triângulos de pontas arredondadas, vidros que só podiam ser abertos um pouquinho, e no sentido oposto ao da entrada do ar. Para que algum vento chegasse aos passageiros seria preciso que o veículo rodasse em marcha ré. No Opala, a conversa seria outra, havia janelas amplas também no banco traseiro, eu receberia na cara o ar quente do Rio, vento que jogaria meus cabelos para trás.” (pp. 7-8)
A vida da famíla de classe média, narrada em primeira pessoa por Francisco, incluindo sua irmã Fátima de treze anos e os pais, transcorre tranquilamente no bairro de Piedade, no Rio de Janeiro, mas uma série de eventos irá afetar radicalmente o cotidiano de todos, iniciando com a chegada de um misterioso primo do Espírito Santo para um pretenso tratamento de saúde e, também, da suspeita do envolvimento de um outro parente em um assalto a banco para financiamento de ações de movimentos políticos de esquerda.
“Estava certo, sim, fazer o quê? Lembrei da música do Caetano que Roberto Carlos tinha acabado de lançar. Tudo estava certo como dois e dois são cinco. A soma dos fatos narrados pelo meu pai fazia tanto sentido quanto o resultado da conta citada na canção. Receberíamos a visita de um parente que seria mantida em segredo, ninguém deveria saber de sua presença em nossa casa. Um rapaz que tinha uma doença que poderia e, ao mesmo tempo, não poderia ser passada para outras pessoas. As explicações tortas provaram que, sim, o resultado de dois mais dois poderia ser cinco. Como aprenderia anos depois na faculdade, números também podem ser torturados, constrangidos a expressar a verdade que interesse ao seu algoz. Meu pai elaborara uma equação torta, violência matemática que traria consequências sérias para nossa família, episódios que em muito superariam a brincadeira formulada pelo autor da música. […]” (pp. 38-9)
Aos poucos, fica evidente para o jovem protagonista que o primo Carlos Alberto não está doente de fato, mas fugiu de seu Estado por ser procurado pelas autoridades de repressão política locais. A situação de manter um foragido político escondido na própria casa altera toda a organização da família e o convívio com amigos e vizinhos, provocando diversos conflitos e a constatação do que realmente está ocorrendo no país, fatos, até então, de pouca relevância para todos. Este contraste entre a fase sombria da política brasileira e a vida de gente simples, morando em um subúrbio carioca, é o lance de mestre de Fernando Molica nesta obra, muito recomendada. Ah, sim! o curioso título ficará claro ao longo da leitura do romance, deixarei o prazer da descoberta com vocês, mais um dos méritos do autor nesta saborosa narrativa.
“Depois do futebol, a conversa com os amigos se revelaria estranha para mim. Os assuntos de sempre haviam se tornado dispensáveis, pouco interessantes, banais. Não disputei o direito de dar palpites sobre a menina de 13 anos, idade da Fátima, moradora da parte alta da rua e que, todo mundo sabia, deixava os garotos passarem a mão na sua bunda e pegar nos seus peitinhos. Isso não era para nós, meninos de 10, 11 anos, mas para os caras mais velhos, de 14, 15 anos, quase adultos. Um dos integrantes da roda garantiu que vira a tal menina trocar de roupa com a janela aberta, reparou nos seus peitos, no tufo de cabelo entre as pernas, Muito gostosa, cara! E, ó, quer saber?, ela me viu olhando, e nem deu bola, ainda abriu mais a janela – Piranha! – proclamou um dos meninos, para a concordância geral.” (pp. 92-3)”