Volta do normal*
Por Fernando Molica em 03 de julho de 2023 | Comentários (0)
Elaborado pelo ministro Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral, o inventário dos absurdos cometidos por Jair Bolsonaro na Presidência reforça a que talvez seja a maior qualidade do novo governo Lula, a retomada de uma normalidade institucional.
Noves fora as batalhas com o Banco Central, houve uma necessária baixada de bola, os chutões para a arquibancada e os carrinhos por trás foram substituídos por um jogo mais estruturado, ainda que o novo time esteja desentrosado, troque muitos passes errados.
O país ficou quatro anos refém do comportamento de um presidente que procurava impor as próprias leis, estimulava o confronto e o ódio, desafiava princípios básicos da ciência e que chegou ao ponto de dizer que não cumpriria decisões do Supremo Tribunal Federal.
Um governante que estimulou garimpos ilegais, destruição da floresta, desrespeito a terras indígenas, boicotou medidas que salvariam milhares de brasileiros, liberou armas, fez campanha contra as urnas eletrônicas que moralizaram as nossas eleições, relacionou vacina a casos de aids, que espalhou mentiras inaceitáveis até no universo pouco fidedigno e confiável da política.
Bolsonaro teve, porém, o mérito de anunciar o que iria fazer, foi o presidente mais parecido com o candidato que tivemos. Ainda deputado, atacou indígenas, elogiou ditadores como Alberto Fujimori (Peru) e Augusto Pinochet (Chile), combateu direitos de minorias, defendeu a tortura e disse que daria um golpe caso chegasse à Presidência. Ninguém pode dizer que ele não avisou.
Lula 3 ainda demonstra estar meio perdido diante de uma realidade bem diferente que do país que presidiu no passado. Muitos jovens e trabalhadores pobres sonham mais em empreender do que em conquistar a carteira assinada, a indústria deixou de ter um papel tão decisivo, ter um carro novo não é mais o sonho de tanta gente – o petista conseguiu o mérito de ter desagradado quase todo mundo ao conceder subsídios para a compra de veículos.
O processo de compra e venda de votos no Congresso Nacional mudou, o impeachment de Dilma Rousseff e a decisão de Bolsonaro de terceirizar o governo para o Centrão alteraram o peso dos poderes — como frisou outro dia o colega Rudolfo Lago, aqui do Correio, o Executivo hoje tem menos força que o Legislativo e o Judiciário.
Bispos e padres católicos de esquerda que tanto apoiaram os primeiros passos do PT minguaram, a própria Igreja romana perdeu muito de sua influência. A lógica distribuitiva foi substituída por busca de crescimento pessoal, de enriquecimento, algo tão caro à doutrina protestante e que foi radicalizado pelos neopentecostais. O MST passou a ser rejeitado por muita gente que, embalada por canções sertanejas, sonha com a prosperidade do agronegócio.
Lula conseguiu superar a intentona de 8 de Janeiro, comemora a queda da inflação e um crescimento econômico, tem como exibir a volta do Mais Médicos, do Minha Casa Minha Vida, do Farmácia Popular. Mas apresenta dificuldades para ler a nova partitura do poder e encontrar o compasso certo para conduzir sua orquestra. De qualquer forma, tem o mérito de ter reconduzir o país a um padrão mínimo de tranquilidade que permite ao cidadão exercer um direito básico e inalienável, o de falar mal do presidente sem se arriscar a ser xingado ou agredido.
*Publicado no Correio da Manhã, 29/6/23.