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PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

Ilusões jornalísticas na ficção


Por Fernando Molica em 04 de junho de 2023 | Comentários (4)

 

Livros que publiquei há mais de dez anos volta e meia me surpreendem. Como ursos que parecem hibernar, eles costumam reaparecer de maneiras supreendentes. Sexta passada, na antessala de uma clínica onde fui fazer um exame, esbarrei com a dissertação de mestrado do jornalista e escritor Emildo Pereira Coutinho que trata de representações do jornalismo na ficção – entre os oito livros analisados está meu romance ‘O ponto da partida’ (Record, 2008). Estou bem acompanhado, entre os outros autores estão Lima Barreto, João Antonio e Luiz Vilela.

Apresentada na Universidade Federal Tecnológica do Paraná em 2021, a dissertação tem um título autoexplicativo que remete ao clássico ‘Ilusões perdidas’, de Balzac:  ‘Adeus às ilusões: frustração com o jornalismo em alguns romances em português’. É curioso, e muito bom, notar que um livro continua a caminhar por aí, a despertar o interesse de leitores e de estudiosos.

‘O ponto da partida’ trata de Ricardo Menezes, repórter filho de um jornalista,  fã de Nelson Cavaquinho e que, aos 50 anos de idade, trabalha num jornal escandaloso que privilegia a cobertura de crimes. O livro se passa em algumas horas e parte de uma cobertura feita por ele: o encontro, na Praia do Arpoador, de metade do corpo de uma mulher. Obrigado a passar a madrugada naquele canto, Menezes revisita aspectos de sua carreira e de sua pra lá de conturbada vida pessoal.

É engraçado, tanto tempo depois, ler trechos do próprio livro num trabalho acadêmico. Ali, enquanto esperava ser chamado para um exame (o coração vai bem, obrigado), cheguei a ficar surpreso com o que escrevi. Melhor, com as palavras de Menezes e de pai:

“Fazer jornal, meu filho, é brincar um pouco de ser Deus. A gente é que decide o que é importante. Só é importante o que sai no jornal. Não adiantava Deus fazer e acontecer, criar o dia e a noite, o macho e a fêmea, as estrelas, o Himalaia, o Garrincha, o cacete a quatro: se não saísse no jornal, ninguém ficaria sabendo.”

“Você acha que meu sobrenome é Menezes, não acha? Errou. Meu sobrenome é Diário. Meu nome todo é Ricardo Luiz Meneses do Diário. Ou, na forma mais simples, Ricardo Menezes do Diário. É assim que eu me apresento, com meu nome profissional, meu verdadeiro nome de casado. Já fui Ricardo Menezes do JB, Ricardo Menezes do Globo. Agora, sou do Diário. Você está rindo? Acha que é sacanagem? Amigo, jornalistas se apresentam assim, mesmo na praia. “Sou o Fulano, do Dia”; “Esse aqui é o Beltrano, da Folha.”

“Jornalista só é jornalista se estiver casado com um jornal. Nenhuma autoridade ia perder tempo com um Menezes, com um Reis, um Almeida, um Fraga, um Queiroz qualquer se depois destes nomes não tivesse um nome maior, mais importante, imponente, ameaçador. O nome, claro, de um jornal. Acredite, meu caro, é assim. Então, aos 50 anos eu tenho que me preparar para o dia do grande divórcio, o dia em que voltarei a ser Menezes. Talvez seja bom, uma outra libertação, mas talvez seja uma merda ficar mudo quando a secretária do outro lado da linha perguntar: ‘Ricardo Menezes de onde?’”

Resenhas e reportagens sobre o livro podem ser lidas neste meu site . Para conhecer a dissertação, basta clicar  aqui .  E, claro, obrigado, Emildo Coutinho.

 

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Comentários
01 de novembro de 2023

Demorei, mas foi.

Fernando Molica
01 de novembro de 2023

Que bom, Emildo. Abração.

Fernando Molica
25 de outubro de 2023

Espero que tenha conseguido publicar meu comentário!!!

Emildo Pereira Coutinho
25 de outubro de 2023

Obrigado, colega!! Seu livro, para mim, foi uma das mais gostosas experiências de leitura, apesar do aspecto melancólico de minha dissertação.

Emildo Pereira Coutinho