Esta é a história: um homem em busca de uma história. Eis o homem: um jornalista de faro apurado pelo cotidiano de uma cidade com uma pauta de histórias de alta voltagem, das quais os profissionais que as escrevem são também personagens, ora cômicos, ora patéticos, graças a erros constrangedores em seus envolvimentos nas ocorrências. E isso desde o tempo em que nem todo repórter precisava escrever, como um tal de João Carniça que, no entanto, sabia apurar histórias escabrosas mais do que qualquer um de seus colegas letrados, que tanto se divertiam à custa dele quanto mal conseguiam disfarçar o componente invejoso de seus deboches.
Assim o evoca o escolado Ricardo Menezes, diante de uma cena brutal, que o faz sentir-se saturado do seu repertório de tragédias, as da cidade e as pessoais, quando ele “precisava de um João Carniça ali, do seu lado, de alguém para lhe contar novas histórias, para fazê-lo rir, para, de alguma forma, tirá-lo dali”.
A cidade: bonita por natureza — sem exagero, uma das mais belas do planeta, cheia de encantos mil, coração do Brasil etc, a viver em festa ou em guerra. Nesse cenário, onde o glamour faz esquina com o terror, e a sedução rima com corrupção – e todo dia é o dia do Apocalipse -, ficção e realidade, comédia e tragédia, humor e dor se confundem. É o que parece nos dizer Fernando Molica, neste seu terceiro romance, com o qual ele compõe uma suíte carioca, ou simplesmente dá novos (e fortes) tons a uma aquarela do Rio de Janeiro do século 21, iniciada com Notícias do Mirandão e prosseguida com Bandeira negra, amor.
Em O PONTO DA PARTIDA, o jornalista em busca de uma história que o alivie das tensões da cidade, e das suas próprias, agarra-se à voz grave de Nélson Cavaquinho como uma recordação, digna de nota, de um Rio que passou em sua vida, para lembrar Paulinho da Viola, outro santo de seus ouvidos. Mas esse Rio, que já foi mais carioca, ficou para trás, na fronteira da nostalgia, como as velhas máquinas de escrever e as histórias engraçadas das redações cariocas.
No entanto, acredite: esta história só dói quando você pára de rir. Pois, como já atestou Joaquim Ferreira dos Santos, a ficção fluente de Fernando Molica “provoca aquele risinho de lado das claques inteligentes”.
Antônio Torres
Existe uma cidade, uma cidade belíssima, que está indo para as cucuias. Mas, coisa curiosa, a literatura que nela se produz não parece muito interessada em refletir isso. Consciência do próprio caráter de artifício, alergia a temas que possam ser considerados políticos, esteticismo, cinismo ou apenas vocação para outros tipos de olhar, o fato é que a maioria dos escritores do Rio (e eu me incluo aí) tem adotado um certo ar blasê enquanto o velho espírito carioca estrebucha na calçada. Como se, sei lá, precisássemos fingir que é dor a dor que deveras sentimos.
Fernando Molica é uma exceção. Sendo também jornalista, e dos bons, há anos se ocupa de traduzir os signos mais vistosos dessa queda, que na imprensa são rasos e febris, ruído puro, para a linguagem saturada de sentido da literatura. Correndo os riscos embutidos em seu projeto – inclusive o de ser visto como herdeiro do populismo literário de um José Louzeiro, coisa que não é -, divide sua fé em doses iguais entre realidade e ficção, sem fazer caso excessivo da desconfiança que nossa época devota a ambas. A sobriedade desse olhar realista mas bem-humorado, que repudia esquemas absolutos e tramas mirabolantes, é uma proeza e tanto, especialmente para um botafoguense.
“O ponto da partida” (Record, 192 páginas, R$ 32), uma esperta – e negra, e melancólica – crônica de costumes carioca, é o novo romance de Molica. “Notícias do Mirandão” (2002) ainda é seu livro de que mais gosto, mas este chega perto de ameaçar essa liderança. O Rio já pode ir para as cucuias em paz: pelo menos um de seus cronistas não deixará tudo terminar em pós-moderna algaravia.
SÉRGIO RODRIGUES
Ao som do violão de Nelson Cavaquinho, Fernando Molica narra desencanto de repórter
Jornalista e escritor
Jornalista experiente, de muitas redações, Fernando Molica é também um desses escritores que complicam o trabalho do resenhista. O ponto da partida, seu terceiro romance, é tão enxuto e amarrado, tão belo e verossímil, tão melancólico e engraçado, que, quando se vê, o livro já tomou as rédeas de qualquer discernimento literário mais específico, qualquer atenção aos truques narrativos, qualquer atino sobre forma e conteúdo capaz de guiar uma análise mais detalhada. E aí é preciso voltar.
É preciso voltar para saber como Ricardo Menezes – repórter cinqüentão, ex-militante de esquerda, antirubro-negro, chegado numa ronda pelos botecos do Rio e fã do samba sofrido de Nelson Cavaquinho – repensa sua carreira, sua cidade e sua família, enquanto apura mais um crime carioca, ali mesmo entre um corpo feminino esquartejado no Arpoador, metido num saco preto, de madrugada, e um viúvo incrédulo, sentado num banquinho, à beira da praia.
Sim, é diante da brutalidade que ele aciona seu mecanismo favorito de defesa (no caso, de fuga): relembrar os casos cômicos do antigo colega João Carniça – do tempo em que repórter não precisava escrever. Mas daí para o ódio à ex-mulher, aquela “deslumbrada” e “consumista”, uma advogada que levou – e “estragou” – seus filhos, como foi mesmo que Molica passou?
A narração em terceira pessoa, sorrateira e freqüentemente desviada à primeira para revelar os pensamentos de Ricardo, somada à linguagem de desabafo em mesa de bar (às vezes, literalmente, como no Jobi) e ao manejo de situações e tempos intercalados, impõe ao texto um ritmo leve e inescapável.
Diálogos hilariantes
O que poderia resultar numa nostalgia para lá de macambúzia se converte, através do humor crítico do personagem, num divertido desencanto profissional e pessoal – ao qual a experiência do autor no ambiente jornalístico empresta a devida veracidade. Dele, não escapam os jovens editores dos cadernos de cultura – que não conhecem Guilherme de Brito, o maior parceiro de Nelson! – a filha gatinha do Leblon – que quer se embrenhar na Índia, numa “viagem profunda” com um tal de Hamiltinho – o filho “chato, conservador, careta, competente” – que escolhe sempre um candidato político oposto ao de Ricardo – e, claro, a “porca reacionária” da ex-mulher. Com cada um desses, ao longo da história, ele trava ao menos um diálogo explosivo, franco e, por isso mesmo, hilariante.
E é justamente ao culpar os outros pelas suas angústias que Ricardo vai revelando e sentindo suas fragilidades e omissões, e Molica vai traçando um paralelo entre as tragédias do personagem e as do Rio, desde a ditadura até o domínio do narcotráfico – temas familiares a seus dois primeiros romances, Notícias do Mirandão e Bandeira negra, amor. Isto sem jamais se eximir do enfoque humano e da capacidade de olhar as coisas de fora, escapando a qualquer caricatura, gênero ou reducionismo semelhante. Tudo que Ricardo tem de óbvio, teimoso e estereotipado é devidamente alfinetado pelos demais, levando-o também, ainda que aos solavancos, na direção de romper suas crisálidas.
Universo próprio
Quem espera do crime uma investigação à la Luiz Alfredo Garcia-Roza (transposta de Copacabana para Ipanema); da crueza urbana e narrativa uma volúpia à la Rubem Fonseca; ou do desencanto familiar um certo lirismo à la Cristóvão Tezza (do belíssimo O filho eterno) seguirá apenas pistas falsas rumo ao universo próprio de Fernando Molica, em que tudo (“ficção e realidade, comédia e tragédia, humor e dor”, como apresenta Antônio Torres) se mistura em doses homeopáticas.
Quiçá, diga-se, como nos filmes argentinos de Juan José Campanella (de O filho da noiva), em especial O mesmo amor, a mesma chuva, que também acompanha, com ternura e graça – e com jovens editores igualmente arrogantes – o drama de um jornalista deslocado, em meio à crise da imprensa e do país.
Talvez agora, aliás, os cineastas brasileiros já tenham (com o perdão do trocadilho) O ponto da partida – e a trilha sonora, sem dúvida – para a versão brasileira. Um livro que, como um lindo samba de Nelson Cavaquinho ou uma boa história de João Carniça, será sempre gostoso de lembrar.
FELIPE MOURA BRASIL
Muitos jornalistas de imprensa diária comem mal, bebem demais, fumam muito, têm vida familiar errática e mesmo assim só vão tentar a sorte em outro emprego quando forçados por uma demissão. Entender por que tanta gente de imprensa se dedica a esse vício no limite da autodestruição é difícil para quem não é do ramo, e é exatamente isso que diminui como realização final o bom romance O Ponto de Partida, do jornalista carioca Fernando Molica, repórter especial do Fantástico com passagens anteriores por Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo. Como muitas histórias escritas sobre um determinado meio por alguém “de dentro”, o livro cede freqüentemente a um saudosismo romântico que compromete a narrativa bem estruturada e de ritmo ágil, um eficiente retrato urbano.
O Ponto de Partida conta a história de Ricardo Menezes, jornalista cinqüentão que corresponde perfeitamente ao perfil estereotipado do primeiro parágrafo. Separado de uma advogada de sucesso, pai de dois filhos que cresceram revoltados com sua ausência, sempre comprometido com o jornal. Quando o romance começa, ele está de plantão nos limites entre as praias do Arpoador e do Diabo, no Rio, acompanhando a história de uma mulher encontrada esquartejada dentro de um saco plástico. Ordenado a esperar a retirada do corpo pela perícia, ele, para driblar o tédio, recorda histórias antigas de jornalistas que conheceu no passado, fazendo uma história informal do próprio ofício de reportagem. Entremeadas a essas lembranças, que evoca para disfarçar seu verdadeiro mal-estar, emergem constantemente as lembranças de sua vida até aquele ponto: a militância política dos anos 1970, a relação mal encaminhada com os filhos, o fracasso do casamento. Molica tem um texto solto, ágil, e embora os causos de antigos repórteres sejam narrados com verve e graça, a abordagem particular do personagem Ricardo é bem mais interessante, pelo mergulho na psique ao mesmo tempo orgulhosa e derrotada do protagonista.
O romance O Ponto de Partida funciona quase como espelho ficcional de outro livro que recentemente trouxe a assinatura de Molica, a coletânea 50 Anos de Crimes, recolha de 19 reportagens policiais lançada no ano passado compilando textos sobre grandes casos policiais dos anos 1950 até hoje. Curiosamente, a leitura da antologia oferece um panorama mais rico das mudanças da reportagem policial no Brasil do que a versão ficcional.
CARLOS ANDRÉ MOREIRA
Diante da morte, passamos a vida a limpo, esmiuçamos escolhas e caminhos e é nesse ponto que vemos como o destino – isto é, tudo aquilo que está além do alcance e compreensão – dá as mãos ao nosso livre-arbítrio. Em geral, acredita-se que fazemos isso diante de nossa própria morte, mas às vezes pegamos emprestada a morte alheia para fazermos o mesmo balanço.
Ricardo Menezes, jornalista de meia-idade, pára sua vida diante de um corpo esquartejado que escorre sangue de um saco preto no Arpoador e, no banco do calçadão, encontra algumas horas para acertar contas com seu passado.
Lembra-se mais dos erros do que propriamente dos acertos e, melancólico, depara-se com uma vida que não era exatamente aquela com que sonhava, mas era a sua, vida que também ia terminando à sua frente.
Na sua atitude quase infantil, numa adolescência interminável, Ricardo afasta de si erros e vicissitudes, ao tempo em que distribui a culpa de suas misérias a todos aqueles que, de alguma forma, o decepcionaram.
Não escolhemos tempo ou lugar para o amadurecimento. Ele se dá aos trancos e ocorre com mais visibilidade quando nossos desejos são contrariados, quando nossos horizontes finalmente se perdem.
Ricardo queria uma vida perfeita, uma mulher incansavelmente sorridente, uma ideologia que não o abandonasse, filhos dos quais pudesse se orgulhar ou que, de alguma forma, professassem suas convicções e reproduzissem suas crenças. Queria um trabalho que o enaltecesse com o passar do tempo, colegas que fossem eternos e insubstituíveis.
Queria, na inocência do ‘para sempre’, beber nos bares do Leblon e acreditar num futuro para sua cidade, para seu país, ou ao menos um bom futuro para si mesmo.
A vida, no entanto, não se pauta. Não se pauta, ainda mais especialmente, por ordem nossa. Ela apenas acontece à revelia, nos esquarteja pouco a pouco, no ideal que se dilui, na possibilidade que se esvai e, enquanto não acordarmos, talvez sejamos, nós mesmos, com o tempo, mais um corpo inerte, despedaçado e sem sangue no alvorecer do Arpoador.
O livro de Fernando Molica, longe da galhardia, nos chama a acordar do torpor, ver com os olhos da verdade em que nos tornamos 20 anos após a instauração do almejado regime democrático, 20 anos após o novo pacto que prometia a felicidade, a panacéia para todos os males, o fim da miséria e da pobreza, da perseguição, da censura e da segregação do povo. O que temos feito de nossa vida, dentro de casa, e o que temos feito da vida de nosso bairro, de nossa cidade, de nosso país? Talvez fosse melhor parar de distribuir culpas para finalmente crescer e ver que somos nós os responsáveis por tanto fracasso e infelicidade. Não há outro autor para nossas vidas.
A felicidade não anda de braços dados, seja com a democracia, seja com a social-democracia. Não chega automaticamente com o casamento, não se restaura com a separação, não nasce junto com os filhos. A felicidade se constrói com determinação, coragem e, sobretudo, com humildade.
Quais valores precisamos buscar para encontrá-la, então, essa famosa felicidade, aquilo que perseguimos com a fé dos nossos próprios 20 anos?
Fernando Molica, autor experiente e premiado, sabe nos dar a resposta, que vai se delineando, se insinuando numa interpretação a contrario sensu, num sentimento de incômodo que emerge do texto e informa toda a história, uma história que conclama a se render, a amadurecer, a parar com a pirraça e, porque ainda estamos vivos, a tentar de novo.
Toda segunda-feira, o blog publica uma entrevista com um escritor, editor ou qualquer outro personagem do universo literário. Esta semana, o jornalista Fernando Molica (abaixo, em foto de Bruno Veiga), autor de livros de ficção e de reportagem, comenta a literatura brasileira contemporânea e seu recém-lançado romance ‘O ponto da partida’ (Record). Observando seus pares e a si próprio, Molica hesita em identificar afinidades coletivas, mas acaba apontando o surgimento entre nós de uma ‘literatura do desencanto’.
Seu livro foi descrito como realista. Você concorda com a qualificação? O que esse termo quer dizer, para você?
Como jornalista, compreendo a classificação. Até porque todos os meus três romances se passam na atualidade, no Rio de Janeiro, os personagens transitam por cenários mais ou menos conhecidos; alguns de seus problemas – violência, racismo – são comuns a outros moradores da cidade. Mas, como autor, implico um pouco com o rótulo, porque tende, como qualquer outro, a limitar os horizontes do livro. O livro, afinal, é uma ficção, uma, digamos, mentira – a história não aconteceu, é uma invenção. O compromisso de um livro de ficção é com ele mesmo, com sua história, sua trama. Um enredo, por mais eventualmente absurdo que seja, pode ser, digamos, realista. Tanto que volta e meia nos identificamos e nos emocionamos com histórias passadas em um improvável futuro. Mesmo o chamado realismo mágico é realista, na medida em que o autor trabalha com um determinado real – e nos convence de sua existência. Acho que, no meu caso, o realista é mais uma tentativa de classificação com base numa oposição entre o livro e outras tendências da literatura brasileira contemporânea. Mas isso não representa necessariamente mérito pra nenhum dos supostos lados.
Você lê outros autores brasileiros contemporâneos? Que afinidades e diferenças percebe entre sua escrita e as diversas correntes da nossa literatura atual?
Acho fundamental acompanhar, pelo menos, uma parcela desta produção contemporânea, já que é impossível ler tudo. Não sei se dá para se falar em correntes, talvez seja mais razoável se fazer isso no futuro, com certo distanciamento crítico. O que vejo hoje são propostas diferenciadas, baseadas nas concepções de cada autor. Os temas, os estilos, as abordagens são muito específicos, temos quase um conjunto de blocos do ‘eu sozinho’. Talvez – insisto na dúvida – seja possível se detectar em parte desta produção algo como uma literatura do desencanto. Acho que este sentimento está presente nos meus livros, especialmente em ‘O ponto da partida’, e pode ser encontrado em diversos outros autores, como Antônio Torres, Bernardo Carvalho, Marçal Aquino, Marcelo Moutinho, Sérgio Rodrigues, João Paulo Cuenca, Luiz Ruffato, Ivana Arruda Leite, Cony e mesmo no estreante Flávio Izhaki. Todos, de alguma forma, de diferentes maneiras, deixam (deixamos) transparecer um traço de amargor, de desesperança, ou mesmo certa postura irônica e cáustica. Acho que estamos todos muito desconfiados e céticos.
Que desejo, se for possível identificá-lo, leva um jornalista experiente a deixar de lado a reportagem e escrever ficção?
Acho que há vários desejos, alguns que ainda não descobri. São desejos, creio, comuns a escritores que exercem outras profissões. Mas já que você falou no jornalismo: acho que tanto tempo nesta profissão me permite perceber suas qualidades, que são muitas, e suas limitações, em igual número, talvez. Como diz um verso de um velho samba: ‘A dor da gente não sai no jornal.’ O jornalismo procura ser objetivo, busca descrever os fatos da forma mais direta e menos parcial possível. A literatura nos permite ao menos tentar ver e ressaltar o não-evidente. Dá para se buscar o detalhe, as pequenas dores, frustrações. Muitas vezes, o importante não é o que um personagem diz, mas o que deixa de dizer. Acho que isso fica bem claro em ‘O ponto da partida’: o fundamental não é o crime que é apresentado ao leitor, mas o que a situação gera no personagem principal. Na literatura podemos tentar buscar compreender sentimentos desprezados no jornalismo, investir num lado mais cruel e obscuro do ser humano. De qualquer forma, escrever ficção pra mim não é algo que seja um complemento ou um contraponto ao jornalismo. São atividades diferentes, com propósitos bem distintos e dá pra exercer as duas.
Jornalista e escritor Fernando Molica apresenta em “O Ponto da Partida” personagem ambíguo que tenta recompor sua vida
Em uma madrugada brumosa de fim de setembro, o corpo despedaçado de uma mulher jaz em um saco, junto à pedra que liga as praias do Arpoador e do Diabo, no Rio de Janeiro. Observam-no cinco pessoas: o viúvo, dois policiais, um fotógrafo e o repórter Ricardo Menezes, protagonista de “O Ponto da Partida”, novo romance do jornalista e escritor Fernando Molica.
Enquanto espera a remoção do cadáver, Ricardo lembra histórias de outra época, aparentemente mais amena, quando “repórter não precisava escrever”. Com a lembrança desses casos folclóricos, ele procura amenizar a barbaridade do crime atual. Mas o refrigério não chega. Talvez porque a causa não esteja tanto na grotesca visão do corpo esquartejado nem na proximidade do viúvo tomado pela dor. A bruma que descera sobre a paisagem carioca expressa menos o estado de descompasso social, cujos resultados explodem no fim do romance do que a ambigüidade essencial do protagonista.
Com efeito o assassinato, em sua violência, não tem ligação aparente com crimes oriundos de uma idéia de conflito social.
Por que uma mulher de 50 e poucos anos, com três filhos e um neto, moradora do Botafogo, seria morta e retalhada com extremo de crueldade? Por que nenhum dos filhos foi velá-la?
Por que o cadáver se mostra acéfalo -o que fez o viúvo reconhecer a esposa pelas roupas que ela vestia?
O significado latente dessas perguntas está em Ricardo. Separado da mulher, uma advogada corrupta, há cerca de 15 anos, ele nunca recompôs a vida. Não permite laços afetivos de nenhuma ordem. Encontra-se relutantemente com os filhos (descritos como estragados pela mãe) uma vez por mês, em reuniões que terminam em briga. Tem o hábito de esconjurar a influência da ex-mulher por meio de mandingas pueris.
Se Ricardo não é o assassino do Arpoador, liga-se a ele por elos profundos, inconscientes.
Como ele mesmo diz, “livrar-se da Adélia estava na ordem do dia”; um banimento que ele classifica como “cruel” e que naturalmente constituía em “cortar” os laços com a ex-mulher. Ricardo é um monstro de egoísmo, e seu isolacionismo bairrista reflete sua incapacidade de admitir o outro. Escritor hábil, Molica infelizmente não explora a fundo essas ambigüidades. Redime de certo modo seu personagem ao sublinhar sua devoção a antigos ícones da MPB (deuses intocáveis) e ao esboçar uma tentativa de redenção final que não digere as contradições.
Trata-se de uma contradição que só se exacerba pelo fato de ele buscar reconciliar-se com os filhos justamente quando, com o sol dissipando as névoas, o Rio mergulha no que parece ser o prelúdio da temida e não esconjurável guerra civil.
MARCELO PEN. CRÍTICO DA FOLHA
Protagonista de O ponto da partida reflete sobre a existência e elabora observações ácidas a respeito da profissão de jornalista
Um aparente beco sem saída. É essa a situação que se insinua para Ricardo Luiz Menezes no romance O ponto da partida, de Fernando Molica. Ricardo é o personagem central, tem 50 anos e está em crise: sem perspectivas de futuro, a recordar o passado e a maldizer o presente. Ele é jornalista, trabalha em jornal diário e não encontra mais sentido na profissão. Separado, tem dois filhos e mora sozinho em um pequeno apartamento no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Apesar de ser apontado como um competente profissional de comunicação, não consegue se comunicar com os integrantes de sua família:
Há trinta anos que não faço outra coisa que não seja contar histórias, relatar fatos, costurar episódios, dar voz a entrevistados. E há trinta anos que vivo disso, só disso. Até por paulista eu sou compreendido, até aqueles sujeitos lêem minhas matérias, me elogiam, mandam cartas simpáticas para os jornais. Meus amigos gostam do que eu produzo, pelo menos dizem que gostam. Filhos de meus amigos falam o mesmo, que sou legal, que tenho uma maneira legal de ver os fatos, de contar uma história. Um deles disse que deve ser bom ser meu filho. Coitado. Pois é. Só não sou lido por quem me interessa. Que merda.
O calendário do protagonista é marcado pelo almoço semanal com os filhos, Carlos e Caroline. Cada encontro é praticamente igual: troca de monólogos e nenhuma interlocução – batalhas verbais. Ao final de cada um dessas refeições sociais, Ricardo começa a fazer a contagem regressiva rumo à próxima inevitável, indesejável e constrangedora reunião familiar. Entre um encontro desses e o seguinte, ele vive a sua rotina de jornalista. E, talvez devido a esse mal-estar, o personagem reflete sobre a existência e elabora observações ácidas a respeito da profissão. Da mesma maneira que em Dom Casmurro a imagem de Capitu é construída pelo olhar desiludido e amargurado de Bentinho, em O ponto da partida as constatações a respeito do jornalismo, e dos jornalistas, surgem a partir do ponto de vista de um desesperançado Ricardo. Não se trata de um monumental painel sobre o jornalismo, como fez Balzac em Ilusões perdidas, nem de furioso acerto de contas com os desafetos como fizeram Lima Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha, e Mino Carta, em O castelo de âmbar. No romance de Fernando Molica a crítica ao jornalismo é diferente.
O jornalista Ricardo Luiz Menezes, que foi jovem durante o período da ditadura militar, não aceita os jovens jornalistas que atualmente trabalham nas redações. Ele é de uma geração tida como politizada e leitora, que gerou jornalistas que exerciam a profissão muitas vezes sem ter o diploma, diferente do que acontece hoje. O protagonista, fã de Nelson Cavaquinho e de outros compositores, fica indignado quando avisa ao jovem editor do caderno de cultura que Guilherme de Brito morreu e, como resposta, é informado de que o jornal vai publicar apenas uma notinha sobre o fato. Ricardo dá a entender que os jornalistas de hoje são, por exemplo, mais superficiais, conformados e medíocres que os de ontem.
Em um primeiro momento, o ponto de vista do protagonista se aproxima do de veteranos que idealizam o passado, e continuamente repetem que antes tudo era melhor, quando na maioria das vezes o que acontece é apenas nostalgia da própria juventude. Afinal, hoje o jornalismo é mais profissional, investigativo e bem escrito do que em todo o passado da imprensa brasileira. (Há quatro anos, entrevistei uma jornalista veterana aqui da província – um medalhão de saias – que sentenciava que o jornalismo havia acabado, quando na realidade o que havia terminado era a juventude dela, nada mais que isso).
Mas, ao invés de idealizar o jornalismo de sua juventude, Ricardo tem saudade de algo que não viveu: a imprensa da primeira metade do século 20, traduzida no personagem João Carniça. Carniça representa o anti-herói, um jornalista que sabia apurar fatos mas que não conseguia redigir um texto. Ricardo, então, está na cena de um crime, diante de um cadáver, durante uma madrugada que demora a passar e, para fugir do presente, busca na memória episódios que escutou a respeito do lendário Carniça, o repórter figuraça – personagem de um momento romântico da imprensa brasileira e que, para o protagonista de O ponto da partida, representa aquilo que seria o jornalista ideal.
Ricardo entrou no jornalismo devido à influência de seu pai, Mário Menezes, que morreu súbita e precocemente em cima da máquina de escrever na redação de um jornal. O pai do protagonista era um sujeito que gostava e tinha fé no jornalismo e, entre idéias inusitadas, comparava um editor de jornal a Deus:
Fazer jornal, meu filho, é brincar um pouco de ser Deus. A gente é que decide o que é importante. Só é importante o que sai no jornal. Não adianta Deus fazer e acontecer, criar o dia e a noite, macho e fêmea, as estrelas, o Himalaia, o Garrincha, o cacete a quatro: se não saísse no jornal, ninguém ficaria sabendo. Por isso, Ele também criou a Bíblia, o jornal Dele. A Bíblia é igualzinha a um jornal, é cheia de histórias, a maioria, difícil de ser checada. […] Por isso que eu digo: a Bíblia é igualzinha a um jornal. A diferença, no duro, é que todo editor acha que é Deus; no caso da Bíblia, o cara era Deus mesmo.
O ponto da partida, apesar do texto ágil que entrelaça a trajetória do protagonista com pontos de vista sobre o jornalismo, dá a impressão de que vai terminar como começou: apenas com o olhar de Ricardo (e, se isso acontecesse, o livro poderia ser adjetivado de previsível, talvez frustrante). Mas, nas últimas páginas, a narrativa surpreende. Um incidente (que não pode ser mencionado na resenha para provocar o eventual leitor a, de fato, ler o livro) coloca o protagonista cara a cara com a ex-mulher. E, então, ela relativiza Ricardo. As opiniões do personagem central, por exemplo, a respeito de seus filhos, repetidas ao longo do livro, são desconstruídas. E há outras desconstruções (que, propositalmente, não serão comentadas na resenha).
Aquela madrugada que Ricardo ficou diante de um cadáver se transforma em manhã e ele segue para o seu apartamento. O livro vai terminar. O protagonista se transforma. De pai ausente se tornará avô – a filha está grávida. E, diante da oportunidade de fazer uma grande reportagem, ele pede um dia de folga. Por um dia, ao menos (ou talvez durante todo o porvir), não pretende mais entrevistar ninguém. “A vida, também, está fora das redações”, poderia ter dito João Carniça, e parece ser o que se abre no imaginário do protagonista. Balas perdidas, da Rocinha, ou do Vidigal, ameaçam a vida de quem, como ele, caminha pela zona sul. Mas, apesar do risco, Ricardo caminha: é o ponto da partida.
Ao som dos tiros, dos gritos dos que fugiam, Ricardo descobria que sua própria vida, assim como a da cidade, também não resistira a tantos ataques, frustrações e tensões. O dique se rompera. […] O fim chegara e ele perdera.
O AUTOR
FERNANDO MOLICA é carioca, nascido em 1961. Notícias do Mirandão, o seu romance de estréia, obteve reconhecimento de público e crítica. Molica é jornalista; desde 1996, repórter especial da Rede Globo. Anteriormente, atou como repórter nos diários Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde foi chefe de reportagem. É autor ainda de Bandeira negra, amor e O homem que morreu três vezes.
TRECHO
Ao contrário do corpo de seu pai, aquele ali sequer tinha direito a um velório improvisado. Permanecia envolto no saco preto utilizado pelo assassino para ocultá-lo e transportá-lo. Parecia que nada havia mudado na rotina daquele cantinho vazio da cidade. Uma cidade que demonstrava certa apatia diante de tantos e tantos casos violentos, ignorar a barbárie era uma forma de fingir que ela não existia. Não notar aquele corpo mutilado permitia admitir a possibilidade de que nada daquilo ocorrera.
MARCIO RENATO DOS SANTOS
O jornalismo é a profissão de Fernando Molica há 27 anos. A longa experiência o credenciou a criar um consistente personagem em O ponto da partida – o jornalista Ricardo Menezes, um homem que chega à encruzilhada dos 50 anos a carregar um amontoado de dúvidas, tristezas e tentativas de recomeço. Nesta entrevista por e-mail, Molica fala, entre outros assuntos, da construção de seu terceiro romance, da imprensa brasileira, do realismo em sua obra e do mercado editorial.
Diante das inúmeras dificuldades em que se encontra, o protagonista Ricardo Menezes implora por uma história “que me tire daqui, que imponha o riso, a banalidade e o humor diante de tudo isso que ocupa minha visão, meus sentidos”. Ainda que Menezes se refira ao jornalismo, esta frase poderia se estender à literatura? Esta seria uma das, digamos, funções da ficção?
É possível, isso não pode ser descartado. Mas acho meio complicado falar em “funções da ficção”, isso parece pressupor a existência de deveres ou compromissos de um livro. Talvez seja mais correto falar nas possibilidades de diferentes usos ou apropriações de um texto, de uma obra. Algo que é incontrolável e que vai depender do leitor e do momento pelo qual ele estiver passando.
Mesmo com um crime bárbaro no centro de O ponto da partida, o romance não pode ser caracterizado como um thriller, como é o caso de Notícias do Mirandão e Bandeira negra, amor. Agora, o senhor explora as angústias, dúvidas, problemas de relacionamento que cercam o protagonista. Por que esta opção ficcional?
Bem, nem acho que os dois livros anteriores sejam thrillers clássicos – ainda que a editora alemã de Notícias do Mirandão o tenha classificado de policial. Bandeira negra, amor até pode ter um ritmo que o aproxime deste tipo de narrativa, mas acho que escapa um pouco da classificação de thriller.
Fiz questão de, no Bandeira, apresentar a solução do crime que permeia a narrativa alguns capítulos antes do fim do livro. O, digamos, mistério passa a ser o destino do casal de protagonistas, um homem e uma mulher que têm uma série de dúvidas e angústias sobre sua relação. Acho – e nem sempre autor acha o certo, admito – que o mais importante do livro é a relação entre os dois. Mas concordo que os romances anteriores, principalmente o Mirandão, têm histórias mais evidentes, uma trama mais clássica. Em O ponto da partida, procurei radicalizar o foco no personagem, tudo giraria em torno do protagonista, ele ficaria em cena o tempo inteiro. O que busco é criar expectativas em torno do que poderia ocorrer na vida daquele homem angustiado, de humor meio corrosivo, que revisa boa parte de sua trajetória pessoal, política e profissional quando é obrigado a passar uma noite ao lado do corpo de uma mulher assassinada. É como se, olhando os três livros em perspectiva, eu fosse abandonando planos mais gerais e me concentrando nos closes. Mas não creio que isso seja necessariamente bom ou ruim, uma evolução ou não no jeito de contar uma história. Foram apenas opções que tomei para contar cada uma delas. De certa forma, o livro escolhe o jeito de ser contado.
Pode-se definir a sua literatura como realista. O senhor aceita tal definição? Acredita que a ficção pode fazer um retrato aproximado da realidade? Ou seria preferível que a literatura a distorcesse, a ampliasse?
Cada um tem a liberdade de definir a minha literatura como bem entender, o leitor sempre tem razão. Mas acho a classificação de “realista” um tanto quanto curiosa, até porque mesmo na chamada vida real, o conceito de realidade é bem relativo. Cada um de nós “lê” a tal vida de um jeito, conforme nossos desejos, formações, preconceitos, expectativas. As cartas de leitores de um jornal mostram como um mesmo fato “real” desperta reações diversas. Um mesmo fato também gera diferentes versões e abordagens. Se o real-real não existe como algo concreto e indiscutível, é até engraçado tentar detectá-lo na ficção, local privilegiado do irreal, da fantasia – mesmo que esta fantasia esteja mascarada de “realidade”. Tenho, pelo menos até agora, optado por encenar minha ficção em cenários que se confundem com aquele em que vivo. Meus três romances se passam no Rio, na atualidade. Poderia inventar uma cidade; no caso de O ponto da partida poderia ter criado uma praia, assim como em Notícias do Mirandãoinventei um morro (a favela do Mirandão só existe no livro). Para um leitor de Curitiba, de Boa Vista, de Santarém, a existência “real” da praia do Arpoador – onde se passa parte da ação do novo livro – não deve ser tão importante assim. Eu poderia ter inventado uma praia inteira, tê-la batizado com outro nome, muitos leitores nunca saberiam disso. Achei que seria mais simples aproveitar um cenário já existente. Nesse caso, procuro fazer uma narrativa que respeite características deste cenário, pelo menos, do cenário que vejo (cada um vê o Arpoador de seu jeito). Ao fazer isso, acabo trazendo para o livro, para aquela trama inventada, determinadas características daquele cenário. Não em busca necessariamente de um “realismo”, mas de uma verossimilhança que permita ao leitor entrar na história. Talvez o fato de eu ser jornalista contribua para que alguns apontem o tal do realismo na minha ficção. Mas, aviso: é tudo mentira. Os objetivos de meus romances são bem distintos dos de uma reportagem. No caso da situação deste livro, por exemplo: como repórter, eu teria que me concentrar na solução do crime da mulher assassinada e esquartejada. Como romancista, foquei no personagem que foi cobrir o caso, ele é meu objeto de interesse: sua subjetividade, seus desejos, suas angústias. Ele, o Ricardo Menezes, não é uma notícia, é um personagem de romance. É claro que posso me inspirar em fatos passados em uma determinada realidade, mas, no fundo, é tudo mentira. Uma mentira que tento passar como “real” – que desperte interesse, reflexão, e mesmo emoção. A realidade na literatura se faz a partir da primeira página (ou da capa, sei lá) e termina quando fechamos o livro – ainda que esta “realidade” possa repercutir na cabeça do leitor e que tenha um determinado grau de diálogo com um tempo e um espaço. Não há por que fugir da possibilidade de uma conversa com o tempo, com a cidade e com o país em que vivo. Um diálogo mediado por uma ficção. Temer esta possibilidade também é algo meio absurdo: se somos obrigados a fugir tanto assim do “real”, poderíamos até considerar, no limite, que escrever em português seria uma concessão à realidade. Mas isso é uma opção minha, dos livros que escrevi até agora. Não representa nenhum juízo de valor sobre formas de se fazer literatura. Importante também frisar que a tal da realidade, do real-real, é muito mais rica do que qualquer ficção. Em 2003 lancei um livro-reportagem chamado O homem que morreu três vezes, sobre um ex-banido, o advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera. A vida dele é inacreditável, não sei se sua história se sustentaria como ficção, iria parecer algo inverossímil demais. Você quer algo mais absurdo e mesmo inverossímil que o incidente do Ronaldo com os travestis? Parece ficção barata, de má qualidade. No entanto, aconteceu. E a história de um pai acusado de matar e jogar a filha pela janela? Quanto às premissas para uma boa literatura: marco NRA, Nenhuma das Repostas Anteriores. Não consigo ver um mérito essencial nesta ou naquela opção estilística ou temática. A qualidade de um livro vai depender do seu resultado, de como o autor vai conseguir realizar o que se propôs. Um livro pode ser bom ou ruim, ou mais ou menos. O julgamento não deve partir do estilo ou da temática, mas do resultado que está ali, entre as capas. Como dizem os bicheiros, vale o escrito.
Ricardo Menezes e seu pai (ambos jornalistas) tinham uma fé exacerbada no jornalismo (Se não saiu no jornal, não aconteceu). O senhor compartilha desta opinião? Em que medida o jornalismo brasileiro consegue ser um retrato das imensas diferenças do Brasil?
Bem, a fé do pai do Ricardo no jornalismo era bem maior que a dele. A frase citada na pergunta é relacionada ao pai, o MM. No livro, Ricardo surge, em meio a várias crises, inclusive com a profissão. Logo no início de O ponto da partida, ele demonstra sua decepção com o tratamento que um jornal da empresa em que trabalha deu a uma reportagem que ele fizera. Ricardo, de uma certa forma, encarna quase que um contraponto à fé no jornalismo, esta sim exacerbada, do seu pai. Quanto à outra pergunta: acho que o jornalismo brasileiro retrata tão bem ou tão mal as diferenças brasileiras assim como o jornalismo francês retrata as diferenças francesas, e assim por diante. Isso, claro, com as devidas gradações. Nenhum jornalismo consegue ser um intérprete assim tão completo da sociedade.
Em O ponto da partida, há uma alternância de vozes narrativas. Como o senhor chegou ao equilíbrio narrativo? De que maneira se deu a construção do romance?
Em termos de estrutura, o romance tem apenas uma premissa: desde o início, decidi que em toda a primeira parte do livro (que ocupa, acho, 80% das páginas) haveria capítulos que marcariam três tempos da história. Um tempo presente – Ricardo Menezes na praia, ao lado do cadáver – e dois pretéritos (um recente, onde haveria a narração de fatos daquele mesmo dia, e um mais antigo, em que seriam relembradas situações mais antigas ocorridas na vida do personagem). Essa foi a única definição estrutural. O resto foi sendo decidido na medida em que escrevia. De um modo geral, gosto de alternar a narração: criar um capítulo com predominância de diálogos, um outro na primeira pessoa, e assim por diante. Essa alternância pode ocorrer dentro do próprio capítulo. Acho que isso dá um certo ritmo ao texto, quebra uma eventual monotonia, faz o leitor ficar mais atento. Mas, insisto, decido isso na hora.
A sua longa carreira como jornalista em jornais e na TV o credencia a compor um consistente personagem-jornalista. Mas empreitadas desse tipo sempre acarretam riscos de excessos ou caricaturização. Como a sua experiência profissional ajudou ou atrapalhou na confecção de O ponto da partida?
Ajudou, tenho certeza. O personagem principal não seria, necessariamente, um jornalista. Eu queria um cinqüentão que passasse por um momento especial, de questionamento, que uma sucessão de episódios concentrados em um mesmo dia o empurrasse para um impasse. Poderia ser um médico da emergência de um grande hospital do Rio, perdido em meio a casos de baleados, poderia ser um engenheiro transformado em corruptor oficial de sua empreiteira, um advogado especializado em absolver clientes milionários. Ou então um jornalista. Eu normalmente implico com a caracterização de jornalista na ficção, com o estereótipo que é produzido. Imagino que ao retratar em detalhes a vida de um médico ou de um engenheiro, poderia cometer os mesmos, digamos, erros. No Bandeira negra, amor, criei um advogado e uma oficial da PM – mas não entrei em muitos detalhes de suas vidas profissionais. Desta vez eu precisaria mexer muito com o cara, com a vida dele, com suas memórias. Não me senti seguro para criar um médico – para isso, teria de pesquisar muito, conviver com médicos, entrevistá-los. Para ser “real”? Não: apenas para não cair na caricatura, uma caricatura que prejudicasse a história e o personagem. Diante disso, achei melhor criar um jornalista, achei que, assim, o processo de feitura do livro poderia fluir com mais tranqüilidade, eu me sentiria mais seguro, mais tranqüilo para desenvolver a história.
O protagonista critica de maneira mordaz a composição das novas redações da imprensa brasileira, povoadas em grande parte por jovens recém-formados. O senhor compartilha desta opinião? O excesso de jovens nas redações fragiliza a imprensa brasileira?
É possível, vai depender de cada redação, de cada jornal. Não tenho como saber o que se passa em cada redação. Acredito que, como em quase todas as profissões, é bom se ter profissionais mais experientes e outros mais jovens. O excesso de pessoas mais velhas também pode atrapalhar. O jornalismo se propõe a traduzir uma certa diversidade social, seria bom que as redações fizessem isso, o que nem sempre é possível dentro das realidades e orçamentos de cada veículo.
Que conselhos o senhor daria aos jornalistas que estão buscando um espaço no mercado de trabalho?
Sempre rateio na hora de responder a essa pergunta, temo parecer meio arrogante ou dono de uma suposta fórmula. Até porque a resposta vai variar de acordo com os objetivos de cada um. Mas a pergunta é meio inevitável e mesmo compreensível, volta e meia ela surge quando vou a faculdades de jornalismo: compreendo as angústias de quem tenta entrar em um mercado restrito e cheio de oferta de mão-de-obra. Normalmente, para não frustrar os estudantes, falo o que é mais ou menos óbvio: é preciso gostar de informação, gostar do ser humano, é fundamental ler jornais, estar atento ao que se passa na sua cidade, no seu país, no mundo. Tentar saber um pouco de tudo e, se possível, um pouco mais de alguma coisa específica. Acho também que, em um país como o nosso, é importante ter um grau de inconformismo, de desejo de mudança.
O mercado editorial brasileiro passa, há alguns anos, por uma imensa transformação, com a chegada de grandes grupos editorais estrangeiros e de negociações entre editoras. No entanto, na imprensa assistimos a um notório processo de enfraquecimento dos cadernos especializados em literatura. Como o senhor explica esta situação paradoxal?
É meio paradoxal mesmo. Por um lado, temos um mercado aquecido, atraente para as editoras internacionais. Os índices de leitura no país são baixos mas, se levarmos em conta o tamanho da população, é possível – isto é apenas um palpite – que tenhamos um mercado leitor/comprador do tamanho de pequenos e médios países europeus. Não é pouca coisa. E, como você bem nota, temos esta fragilidade no processo de divulgação/discussão dos livros, a diminuição dos cadernos literários. Talvez – talvez – porque os livros que mais aqueçam este mercado não dependam tanto do papel da crítica, corram por uma outra faixa. Assim como os filmes de grandes bilheterias não dependem tanto da opinião dos críticos. Isso sem falarmos que o grande comprador de livros do país é o governo, que representa um mercado que também não depende muito de cadernos literários e resenhas.
O senhor acaba de lançar um site (www.fernandomolica.com.br). Muito da produção literária da nova geração está on-line. O senhor acredita no poder da internet para disseminar a literatura? A internet vai acabar se transformado no espaço ideal para a crítica literária?
O Sérgio Rodrigues – que você cita na próxima pergunta – acha isso, que a internet pode até salvar a literatura, não como espaço de publicação, mas de divulgação, discussão e crítica. Tendo a concordar. A internet ampliou muito essas possibilidades, aproximou leitores e autores, abriu espaços. Mas o surgimento da internet não precisa gerar a morte de fóruns mais tradicionais, como os cadernos literários de jornais voltados para o público geral. Até para não criarmos guetos.
O escritor Sérgio Rodrigues afirma que o Rio de Janeiro é “uma cidade belíssima indo para as cucuias. Mas, coisa curiosa, a literatura que nela se produz não parece muito interessada em refletir isso”. Ele cita o senhor como uma exceção? O senhor tem a preocupação de manter o Rio de Janeiro como protagonista da sua literatura? Por que a cidade “está indo para as cucuias”?
Não tenho como premissa a preocupação de escrever sobre o Rio. Os temas e personagens de alguma forma relacionados à cidade têm se imposto, certamente porque são assuntos que chamam a minha atenção, me instigam. Nasci e sempre morei no Rio, essa presença da cidade na minha ficção acaba sendo meio natural. Acho que qualquer cidade ou bairro ou esquina pode render bem na literatura, depende, claro, do autor. Mas a cidade que melhor conheço é o Rio, que tem características muito interessantes, aquela história de pobreza e riqueza, de contradições abertas e evidentes, de beleza e barbárie, de ex-capital que perde parte de sua pose. A cidade sempre deu samba, em todos os sentidos. Se está indo para as cucuias? Talvez, mas talvez ir para as cucuias seja uma forma de reinvenção, de reconstrução da cidade a partir de outros parâmetros.
A música perpassa toda a trama de O ponto da partida, com destaque para Nelson Cavaquinho. Qual a importância da música na sua formação intelectual?
Não sou músico, não toco nenhum instrumento. Mas gosto muito de música, de vários tipos. Inclusive de samba, vou muito a rodas de samba aqui no Rio. Todos os meus romances têm uma espécie de trilha sonora, citações de músicas que, de alguma forma, ajudam a marcar um ou mais personagens. No caso deste livro, achei que as músicas e a personalidade de Nelson Cavaquinho se encaixariam bem como complemento para o personagem principal. Algo lírico, melancólico e profundamente trágico.
Na página 75 de O ponto da partida, lê-se: “ignorar a barbárie era uma forma de fingir que ela não existia”. O senhor acha possível ignorar a barbárie que nos engole a todos? Ou a barbárie não é tanta e a culpa é da imprensa que a aumenta, como acontece neste episódio da menina jogada de um apartamento em São Paulo? O senhor considera adequado o tratamento que, principalmente, a TV tem dado ao caso Isabella?
Cada um reage de um jeito à barbárie. Alguns a enfrentam, a discutem. Outros preferem aumentar as grades de seus prédios ou condomínios, comprar carros blindados. É claro que a imprensa volta e meia exagera, carrega nas tintas. O caso Isabella, que é terrível, que mexe com valores muito básicos em todos nós, acabou ganhando uma proporção meio absurda, mas não apenas por responsabilidade da imprensa: os próprios encarregados da apuração do crime estimulam este jogo. É inconcebível que um crime ocorrido tarde da noite seja reconstituído numa manhã de domingo. Isso é um erro básico de investigação. Só que uma reconstituição num domingo pela manhã garante mais público, mais projeção. Mas, repito, o caso é terrível e ajudou a revelar que muitas e muitas crianças são mortas no país. Às vezes exagera-se, são publicadas com destaque notícias banais, como de furtos a turista, como se isso não acontecesse em Paris ou Miami. Mas o Rio tem uma situação muito particular, a de grupos armados – e muito bem armados – dominarem determinadas áreas densamente povoadas. Não sei se isso existe em outro lugar do mundo. É impressionante como isso, que é um escândalo, passou a ser aceitável, foi incorporado ao cotidiano. A imprensa carioca tem uma tradição de não ocultar fatos, não existe por aqui uma lógica de evitar publicar notícias ruins que, de alguma forma, possam prejudicar a imagem da cidade, atrapalhar o turismo. Isso não é muito comum em outras capitais. Talvez isso aumente de forma desproporcional o tamanho do problema carioca quando comparado aos problemas de outras cidades. Mas não podemos negar que a situação é grave.
O protagonista Ricardo Menezes tem um acesso de fúria contra um editor de Cultura porque este não conhecia Guilherme de Brito. O trecho é uma crítica à ignorância da imprensa em determinados setores e também ao apego que, principalmente, os cadernos culturais têm pelo estrangeiro? O senhor teme que O ponto da partida seja ignorado pela imprensa cultural?
O trecho é uma crítica do Ricardo ao editor de Cultura do jornal onde ele trabalha ou trabalhava, não sei se ele continua no emprego… O episódio é baseado em um fato ocorrido com um colega. Achei que seria interessante trazê-lo para a ficção, para a vida do Ricardo, serviria de elemento para uma outra crise de indignação do protagonista. O acesso de fúria contra o editor não é um protesto meu, autor. É um protesto do personagem – muitos leitores podem achar que a indignação do Ricardo é injustificável, que ele fez muito escândalo sem motivo. Muitos leitores podem não conhecer o Guilherme de Brito e nem por isso eu, autor, vou ficar indignado com eles. O episódio foi trazido para o romance para dar mais força à trama, caracterizar melhor o personagem, mostrar suas reações intempestivas. O livro, repito, é uma ficção, não um artigo sobre o que eu acho ou deixo de achar sobre o mundo, sobre as editorias de cultura. Por acaso eu gosto do Nelson Cavaquinho e do Guilherme de Brito, mas poderia não gostar. O mesmo episódio poderia ter outra versão, com a mesma função dramática, só que de maneira inversa: um jovem repórter poderia ficar indignado porque seu velho editor não sabe quem é Alex Kapranos (vocalista do Franz Ferdinand). Minhas opiniões não coincidem necessariamente com as do Ricardo Menezes. Ele não é meu alter ego. Sobre um eventual silêncio em relação ao livro. Ele foi lançado em abril, tem sido bem recebido e comentado. Esta entrevista é uma prova de que o livro não tem sido ignorado pela imprensa cultural.
Como a literatura começou a ocupar a sua vida? Como se deu a sua construção como leitor e quando o senhor decidiu ser escritor?
O começo foi quando deve ser: na infância. Sou leitor desde que me entendo por gente, desde que fui alfabetizado. Li muito Monteiro Lobato e uma coleção de contos dos irmãos Grimm. Daí pra frente, não parei. A vontade de ser escritor surgiu lá pelo meio da adolescência, mas não prosperou. Só voltei a pensar no assunto bem mais tarde, quase aos 40 anos, quando comecei a escrever o que se transformaria no Notícias do Mirandão. Comecei até para ver se conseguia terminar, se aquelas páginas e páginas ganhariam corpo, virariam um romance. Por que levei tanto tempo para me iniciar como escritor? Não sei, mas hoje acho que foi bom ter começado mais tarde que a maioria dos escritores. Não gosto de fazer relações de causa e efeito entre o exercício do jornalismo e o da literatura. Acho que o jornalismo é uma profissão como qualquer outra, não necessariamente ajuda ou atrapalha quem quer ser escritor. Mas é possível que tantos e tantos anos de jornalismo – 27! – tenham contribuído para mostrar os limites deste tipo de atividade e gerado uma certa insatisfação, a necessidade de um outro tipo de abordagem da vida, das relações. O jornalismo vive dos fatos, da objetividade, da busca de provas. Tudo isso é fundamental, mas pode não ser suficiente. O ser humano é maior, mais complexo, tem áreas muito mais sombrias, de difícil acesso. Aí pode entrar a literatura, onde o não-dito pode ser mais importante do que é dito, freqüentemente é. É um campo em que podemos trabalhar detalhes, intenções, suposições. Volta e meia cito um samba que faz parte da trilha sonora do Notícias do Mirandão, chama-se Notícia de jornal, foi gravado há muito tempo pelo Chico Buarque. Um dos versos diz que “a dor da gente não sai no jornal”. Isso é bem interessante, bem provocativo.
Quais autores povoam o seu imaginário como leitor? Quais nunca o abandonam?
São muitos, mas vale citar alguns, todos já consagrados. Uma lista grande e muito variada. O primeiro de todos é Machado de Assis, pela elegância, pela ironia, pela modernidade, pela extrema capacidade de contar bem uma história, pelo jeito de enganar e envolver o leitor. Entre outros brasileiros, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Antônio Torres, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Raduan Nassar, Rubem Fonseca. Entre os estrangeiros, Eça de Queiróz, Dostoiévski, García Márquez (Crônica de uma morte anunciada é espetacular), Vargas Llosa, Saramago, o fantástico Ian McEwan. A relação é ainda maior, incluiria também vários outros clássicos e outros contemporâneos.
Que tipo de leitor a sua ficção busca? O senhor imagina um leitor ideal para seus livros?
Acho que seria muita pretensão tentar escolher um leitor. Todos são bem-vindos, todos, de alguma forma, colaboram, acrescentam informações e leituras – como disse antes, a internet é ótima para isso. Não dá pra imaginar o leitor, ele é que se impõe: algumas resenhas publicadas na Alemanha sobre o Notícias no Mirandão são muito interessantes, estabelecem um diálogo bem original com o livro. Lá sou completamente desconhecido, como romancista e como jornalista, não há referências anteriores sobre mim. O livro foi obrigado a se virar sozinho – o que acabou sendo muito bom.
Caso tivesse de optar entre o jornalismo e a ficção, qual o senhor escolheria? Por quê?
Essa dúvida só se faria presente caso a venda dos meus livros fosse suficiente para gerar uma renda capaz de me manter. Isso, hoje, não é algo que eu possa vislumbrar. De qualquer forma, não vejo contradição no exercício das duas profissões. Dá para separar bem, da mesma forma que funcionários públicos, professores universitários, fazendeiros, médicos, publicitários conseguem e conseguiram escrever e exercer suas profissões. A dedicação exclusiva à literatura no Brasil é exceção.
Formar um bom leitor requer paciência, oportunidade e uma boa dose de sorte. Quais caminhos o senhor indicaria para a formação de um leitor num país tão desigual como o Brasil?
Acho que a receita mais óbvia é bem conhecida, testada e reproduzida em outros países. A formação do leitor tem a ver com uma educação pública de qualidade, com a disseminação de bibliotecas, com o maior preparo dos professores. O trabalho é lento, mas costuma dar certo. O problema é que vivemos em um país em que 53,8% das crianças não completam o ensino fundamental, de acordo com uma pesquisa bem recente. É muito difícil falar em formação de leitor diante de uma realidade como essa.
COLABOROU MARCIO RENATO DOS SANTOS.
Fernando Molica escreve um romance que mostra a estudantes de jornalismo uma visão crua da profissão. Os jornalistas no batente se reconhecerão em muitas passagens
Depois de tê-lo comprado em Belo Horizonte, li O Ponto da Partida no vôo entre a capital mineira e Fortaleza. Fernando Molica usa e brinca com as técnicas jornalísticas para escrever o romance. Frases curtas, limpidez no texto, um lide para abrir cada capítulo. Não se pense que é um texto burocrático. Neste caso, a técnica está a serviço da criatividade, para contar a história de Ricardo Menezes – jornalista como o autor – que continua palmilhando as ruas em busca de notícias, ao 50 anos, idade em que a maioria de seus colegas de geração virou chefe ou partiu para alguma lucrativa assessoria de imprensa.
Acossado pelo ódio que devota à ex-mulher e pelo desprezo que dedica aos filhos – uma moça fútil e promíscua e um rapaz que lhe confronta as tendências “progressistas” – o atormentado Ricardo conduz sua vida de modo caótico. Com a mulher, a quem atribui todas as suas desgraças, ele não fala nunca. Terá com ela um único e redentor encontro.
Molica pontua o livro com histórias de redação. Algumas delas ele deve ouvido falar, outras, certamente, deve ter presenciado ou vivido, nas várias redações pelas quais passou. Toda redação tem uma coleção de histórias, contadas e recontadas nas rodas de jornalistas. Ao contrário das matérias, que têm de ter compromisso com a realidade, nesses casos, quem conta aumenta um ponto – e mesmo as muito conhecidas sempre provocam gargalhadas. É a vingança da ficção. O autor consegue transpô-las com graça e frescor para o papel.
Ricardo Menezes é um personagem de transição. É jornalista “formado”, mas iniciou-se no batente pegando a fase final do “jornalismo romântico”. Ele vê as velhas e barulhentas Remingtons e Olivettis serem substituídas pelo teclado silencioso dos computadores com suas telas brilhantes. A redação bárbara que ele conhece sofre uma invasão inversa de “uma molecada de faculdade (…) principalmente umas mocinhas de calça jeans, de camiseta, sem sutiã”.
Uma das passagens mais hilárias do livro é quando Ricardo tenta emplacar com o editor do caderno de cultura matéria sobre a morte de Guilherme de Brito, parceiro de Nelson Cavaquinho (a quem ele cultua, e que serve de “fundo musical” para o texto). O “jovem editor”, de “camiseta vermelha de mangas curtas sobre outra azul, de mangas compridas” e “óculos de armação pesada”, não dá bola a seus argumentos. Ricardo insiste e reivindica “uma cota para matérias sobre heterossexuais”, que “deve ter aí” (no caderno de cultura). A propósito, Ricardo Menezes é um personagem pra lá de politicamente incorreto.
A ação de O Ponto da Partida se passa no bairro carioca do Leblon, fora da “ilha” Ricardo sente-se um “exilado”, ainda que esteja em Ipanema, a quem ele chama de “república amiga”.
Mas o livro não tem apenas passagens engraçadas. Há tragédias ligeiras, outras mais profundas e um pouco de suspense. O pano de fundo é o Rio conflagrado. E boa parte desenrola-se com o personagem esperando – plantado na calçada de uma madrugada fria – que o rabecão venha recolher o corpo de uma mulher esquartejada. (Para quem pensa vida de repórter é sinônimo de aventura, Ricardo Mnezes resmunga: “Devo ter mais horas de calçada que muita puta”.)
Como se dizia antigamente, O Ponto da Partida é um livro para todos os públicos: os estudantes de jornalismo terão uma visão bastante realista da profissão (a vida como ela é, outro jornalista), de quebra, boas lições de como se constrói um texto, longe das prescrições burocráticas dos “manuais”. Os jornalistas, com certeza, se identificarão com muitas passagens. E o público em geral terá o prazer de ler uma história bem contada.
PLÍNIO BORTOLOTTI
Clique aqui e veja no site do jornal
Fernando Molica alega motivo de ordem prática para colocar um jornalista como protagonista do seu novo romance
O novo romance do escritor carioca Fernando Molica, “O ponto da partida” (Record, 192 páginas, R$ 32), começa com um repórter que chega ao Arpoador, madrugada alta, para apurar uma matéria sobre um corpo encontrado esquartejado na areia da praia. Mas o desenrolar do livro não poderia estar mais longe de uma trama policialesca. Enquanto Ricardo Menezes espera a chegada do rabecão e apura sua matéria, coloca em xeque sua relação com a família, a profissão e a cidade. Jornalista consagrado, repórter da TV Globo, Molica admite que o mote que dá partida ao romance saiu de um fato real que ele presenciou: “Ando muito pelo Rio, inclusive como jornalista – como repórter fui a um local, há uns dois anos, em que havia um corpo esquartejado. Isso me toca com jornalista e como cidadão, como autor. Tanto que a situação acabou servindo de mote para o livro.”
Na orelha do romance, Antônio Torres escreve que “esta história só dói quando você pára de rir”. A maneira como você conduz o romance, entre o riso e o siso, é proposital?
Engraçado, não havia pensado nisso. Acabo sendo surpreendido também. O que procuro fazer é alternar, ao longo do livro, maneiras de contar a história. Há capítulos em terceira pessoa, outros em forma de diálogo. Procuro ter uma certa alternância de vozes – mesmo num livro como este, que é todo focado num personagem. Mas acho que nunca pensei em alternar momentos mais dramáticos com outros irônicos, ou, vá lá, engraçados. Isso acaba surgindo enquanto escrevo. Talvez eu, como autor – e primeiro leitor -, tenha a necessidade de variar um pouco, de dar uma respirada. É algo que surge no momento em que escrevo.
Este é seu quarto livro. Dois foram romances e um terceiro um livro-reportagem. Desta vez você optou por usar exatamente um jornalista como protagonista, sua profissão do dia-a-dia. Foi mais difícil encarar esse ponto de inflexão entre duas paixões?
O Ricardo, o protagonista, poderia ser um médico decepcionado com os plantões marcados por vítimas de balas perdidas, ou um advogado frustrado com a profissão, algo assim. Alguém que tivesse vivenciado muitos sonhos, se decepcionado com os rumos de sua vida. Um sujeito cuja vida profissional estivesse muito ligada à pessoal. Mas ele virou jornalista por uma questão prática. Não sou tão íntimo assim de detalhes do cotidiano de advogados ou médicos ou engenheiros. Teria que pesquisar muito, conversar muito com profissionais de uma dessas áreas para conseguir criar um personagem minimamente convincente. De um modo geral, acho que jornalistas são muito estereotipados em livros e, principalmente, em filmes e novelas. Somos sempre retratados de uma maneira meio caricatural, no limite da histeria. Não queria criar um médico ou um advogado assim. No meu romance anterior, o Bandeira negra, amor, o personagem principal é um advogado. Mas eu não precisei dar tantos detalhes de sua vida profissional como neste novo livro. A relação entre vida e profissão é bem mais forte em O ponto da partida.
Como fazer para não cair no clichê do personagem jornalista, especialmente nesse caso em que Ricardo Menezes é aquele tipo de jornalista full time que coloca o trabalho à frente de qualquer outra coisa?
Sempre procurei ter cuidado com isso, desde o meu primeiro romance, Notícias do Mirandão, que também tinha um jornalista, o Fontoura, no centro das ações. Evitei, na época, caracterizá-lo como um super-herói, fui até meio cruel com ele, coitado. Acho que, agora, em O ponto da partida, o momento da vida do personagem é que impede o tal clichê. O romance foca sua vida em um momento de uma crise profunda – com a ex-mulher, com os filhos, com o país e com o trabalho. Nas 24 horas em que se passa a trama, Ricardo é obrigado a questionar tudo, inclusive a profissão. Questiona até momentos em que ele permitiu que o trabalho ocupasse um papel excessivamente dominante na sua vida. Acho que isso quebra com aquela visão do trabalho/missão muito associada aos jornalistas. Fora isso, ele tomou, ao longo da vida, algumas atitudes que não o credenciariam ao título de repórter-padrão.
Como jornalista, você diariamente é confrontado com a necessidade de contar uma história, a maioria delas depois de o fato ocorrido. Como é parir uma história sem o fato estar lá te guiando?
Em Notícias do Mirandão procurei socorro em uma certa lógica jornalística: a história, fictícia, não tinha acontecido, claro. Mas procurei tratá-la com verossimilhança, algo que poderia ter acontecido. Uma história que eu poderia contá-la num jornal. Acho que agora, no terceiro romance, a preocupação mudou de característica. De uma certa forma, procuro definir os personagens e colocá-los para brincar, para jogar. Isto, dentro de um determinado cenário, dentro de algumas condições. Mas o resultado é sempre meio surpreendente. Volta e meia percebo que determinado personagem tem que seguir numa direção bem diferente daquela que eu tinha pensado. Isso é muito engraçado, admito. Talvez a maior lição eu tenha recebido sobre desenvolvimento de personagem tenha ocorrido quando escrevi um livro de não-ficção, O homem que morreu três vezes. O livro era sobre um sujeito – o advogado Antonio Expedito Carvalho Perera – que, ao longo de sua vida, mudou várias vezes de rumo e, mesmo, de personagem. Você, na pergunta, fala em parir uma história – mas talvez seja um pouco mais complicado, há uma permanente negociação entre “mãe” , “feto” e processo de nascimento. O mais interessante talvez é perceber como, na ficção, consigo – ou, pelo menos, acho que consigo – chegar mais perto de personagens que no jornalismo.
SOBRE O AUTOR
Fernando Molica nasceu em 1961 no Rio de Janeiro. Jornalista formado pela UFRJ, foi repórter nas sucursais cariocas da Folha de S. Paulo e de O Estado de S. Paulo e chefe de reportagem de O Globo. Em 1996 tornou-se repórter especial da TV Globo. Seu primeiro romance, Notícias do Mirandão, foi um grande sucesso de crítica e vendas. É autor, ainda, de O homem que morreu três vezes e Bandeira negra, amor (Ed. Objetiva), além de organizador de 10 reportagens que abalaram a ditadura e 50 anos de crimes.
Romance é uma narrativa em prosa com começo, meio e fim, mas a arte romanesca consiste na estruturação desses elementos não na ordem lógica mas em perspectivas psicológicas, tudo, bem entendido, tratado em estilo de alta qualidade literária. E, justamente, o que antes de mais nada caracteriza o bom romance é que o começo, o meio e o fim raramente se encontram nos lugares convencionais porque o desenvolvimento arquitetônico de cada narrativa tem suas regras próprias, instintivas em romancistas como Edgard Telles Ribeiro (Um livro em fuga. Rio: Record, 2008), escritor que se define por um estilo ao mesmo tempo refinado e de impecável espontaneidade, tanto mais sensível quanto o protagonista é romancista: “À noite, no quarto vizinho ao dela, continuo trabalhando meus personagens pela madrugada afora, no ensaio permanente que sempre fazemos antes de sua entrada definitiva em cena. Corto, aparo, recomeço, redefino um momento aqui, outro acolá, rasgo inúmeras folhas de papel, acrescento diálogos onde predominam insinuações, ou silencio quem fala demais. As personagens femininas reclamam se enveredo por um caminho que ameaça descaracterizá-las, pois isso representaria uma traição. (Os masculinos se importam menos com esses deslizes, pois parece ser de sua natureza não reparar)”.
Aí está, numa casca de noz como se dizia em latim antigamente, o esquema de estruturação romanesca. A cena se passa no Rio de Janeiro, onde o narrador se encontra em visita à mãe, gravemente enferma (é ela que está no quarto vizinho). Tomo essa passagem porque um escritor inexperiente ou pouco talentoso teria obedecido ao impulso instintivo de situá-lo no começo da narrativa, enquanto Edgard Telles Ribeiro muito sabiamente (ou respondendo ao instinto profundo de romancista) incluiu-a como parte integrante da história em desenvolvimento, pois os episódios do Rio (como o reencontro amistoso com a primeira mulher, a participação numa banca de concurso na Universidade de Brasília etc) intercalam-se com os de Samarkan, onde o narrador está residindo em missão diplomática.
E, sendo transitória ou efêmera essa residência, trata-se de momentos essenciais de sua própria história, vividos por “deformação profissional” como se a realidade exterior fosse também um romance: “Para comemorar meu aniversário, ofereci ontem um jantar em casa. E convidei meus personagens. Um perigo, misturar ficção e realidade. (…) Já me aconteceu de quase ser esbofeteado por uma mulher com quem vivera uma intensa paixão no emaranhado de linhas e entrelinhas (e que, na vida real, mal conhecia)”. Há, também, em projeção inversa, a página da vida real de Nguon, que, aos 8 anos de idade, denunciou o pai à polícia política, com remorsos que o perseguiram para sempre, resolvendo superá-los pelo método psicanalítico de confissão, escrevendo um romance (cujos originais submete à leitura do narrador).
Narrador que, por sua vez, acaba por encontrar a misteriosa Clea das últimas páginas, escritas, como as demais, no estilo refinado que é a sua marca natural, diferente de outro estilo e de outro realismo, os de Fernando Molica (O ponto de partida. Rio: Record, 2008), num romance em que a vida do diplomata é substituída pela do jornalista, agitada em mais de um sentido, a começar pelo conjugal. O estilo de Fernando Molica é nervoso e rápido, condimentado pelo espírito de humor, mesmo em episódios conflituais como as discussões com a mulher ou os desagradáveis encontros com os filhos, com os quais o protagonista tem o dever de almoçar uma vez por mês, penitência e castigo que o aterrorizam: “Sabe-se lá como terminaria aquele almoço. Precisaria talvez de um período de recuperação pós-encontro com Carlos e Caroline. O rito fora semanal, passara a quinzenal e, agora, tivera o intervalo esticado para 30 dias. (…) Mais uma vez se prepararia, repetiria o compromisso de não iniciar os ataques, de exercitar a tolerância, de não revidar cobranças”. Espiritualmente avançadíssima, a filha está planejando uma viagem profunda à Índia, cedendo à influência do namorado, que acaba por engravidá-la. Ao que o pai reage como seria de esperar: “Bem, filha, você sabe como eu resisto a esses lugares. Eu, que sempre me considerei de esquerda, tenho uma profunda dificuldade em me imaginar em países de miséria crônica (…)”.
Na cena dramática com que o livro se encerra, o narrador abandona o corpo do pai, morto na redação com fulminante ataque cardíaco: “Agora, pai, agora tenho que ir visitar minha filha, tenho que cuidar das minhas crianças. Crianças… Há quanto tempo não usava essa palavra para pensar nos filhos, eles, que havia muito deixaram de ser crianças. Enquanto caminhava na direção da Lagoa, Ricardo se fixava nos filhos, no neto, na sua vida (…)”. Tudo se resolvia numa tragédia carioca: “O fim chegara e ele perdera”. Enquanto isso, o cadáver mutilado do Arpoador continua à espera da ambulância.
O corpo esquartejado de uma mulher é encontrado junto às pedras do Arpoador, os pedaços acondicionados em sacos pretos de plástico. Ricardo Menezes, boêmio repórter de um jornal carioca, morador do vizinho Leblon, passa a noite ao lado do macabro achado, em companhia do viúvo da vítima e de policiais, em mais um infindável plantão. Durante aquelas horas mortas, balizadas pela lembrança de versos de Nelson Cavaquinho, rememora fatos de seu passado recente ou remoto, sobretudo as incompatibilidades viscerais com a ex-mulher e com o filho e a filha, e reavalia o seu trabalho, o papel social que desempenha.
Com esses elementos simples, o experiente jornalista Fernando Molica constrói o romance “O ponto de partida”, recentemente lançado pela Record. Embora a visão que o personagem-narrador tenha da vida e da profissão seja amargurada, o enxuto romance é de leitura fácil e agradável, temperado com algumas pitadas de humor e farta ironia.
São muito poucas, salvo engano, as obras de ficção brasileiras que têm um jornalista como protagonista ou as redações como ambiente. Isso deve ser um motivo a mais para que a nossa categoria se debruce sobre a reflexão que o livro traz, propiciadora de um bom debate. Ainda que seja obra capaz de prender sem dificuldade também os leitores não-jornalistas.
Não li os romances anteriores de Molica, “Notícias do Mirandão”, que está prestes a virar filme, e “Bandeira negra, amor”, de modo que não posso traçar um paralelo entre eles. Mas a sensação que este “O ponto de partida” me deixa é a de um ficcionista vocacionado em processo de crescimento, que cria uma justa expectativa em relação às suas próximas obras.
Personagem de Molica não consegue mais enxergar beleza
Não se sabe que tipo de fascínio o Rio de Janeiro exerce sobre os escritores, compositores, autores de novelas, atores, cantores e nós, público devoto, que amamos a natureza carioca porque ela nos é familiar (a TV, a música e as revistas de celebridades são nossos anfitriões). Até o grotesco, o violento, o aberrativo – e aberrações são constantes no Rio – parecem hiperdimensionados pelo simples fato de tomarem lugar na cidade que deveria ser maravilhosa. É como se a violência lá fosse muito mais violenta, porque, afinal de contas, o feio não cabe ali. Mas até assassinato acontece em pleno cartão-postal do Rio, a praia de Ipanema, com corpo sendo jogado em uma daquelas pedras bonitas que marcam o começo do Arpoador. Esse é o início do romance “O ponto da partida”, de Fernando Molica, cujo personagem principal, Ricardo Menezes, é um repórter entediado e em crise. Em crise porque constata, de uma vez, que nenhuma beleza mais o cerca. Tudo aquilo (o Rio, a praia, a vizinhança, o casamento, os filhos, o Leblon) parece, de repente, feio, frágil e sem graça.
Claro que “O ponto da partida” não fala, diretamente, do Rio de Janeiro e suas distorções, e sim de uma vida distorcida. Menezes é um jornalista que não busca somente mais uma notícia – ele procura sentido. Com passagens engraçadas (são impagáveis as histórias de João Carniça, um repórter que não sabia escrever, mas apurava como ninguém) e leveza narrativa, Fernando Molica conta o drama do personagem sem se prender a choradeiras. Deixou fácil de entender a solidão, angústia, desilusão que permeiam a história, porém mais fácil ainda entender como aquele personagem chegou até ali, e como aquele sofrimento parece coerente. Molica é autor também dos elogiados “Notícias sobre o Mirandão” e “Bandeira negra, amor”, ambos finalistas do Prêmio Jabuti.
NATALY COSTA
Pode-se ter a idéia de que, para um repórter policial, a violência é uma rotina vista com indiferença, como se a cobertura diária dos crimes tivesse um efeito anestésico. Mas até jornalistas experientes e velhos de guerra podem ter dificuldade para suportar o horror da brutalidade que cerca ruas e esquinas dos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro.
Em meio ao belo cenário carioca, Ricardo Menezes, um repórter de meia-idade, busca no passado uma válvula de escape que lhe dê forças para lidar com mais um assassinato. Saudosista, ele se agarra aos versos de Nelson Cavaquinho e às lembranças de um jornalismo “romântico” que não viveu, com seus personagens folclóricos, a exemplo de um certo João Carniça – que não sabia escrever, mas “apurava pacas”.
Uma daquelas velhas histórias curiosas e engraçadas, que o faça rir, é tudo o que deseja Ricardo, o protagonista de “O Ponto da Partida”. Lançado recentemente pela editora Record, é o terceiro romance do jornalista e escritor Fernando Molica, autor de “Notícias do Mirandão” (2002), “O Homem que Morreu Três Vezes” (2003) e “Bandeira Negra, Amor” (2005).
Por meio de uma narrativa não-linear, intercalando primeira e terceira pessoas, Molica apresenta um personagem em crise de meia-idade, dividido e preso ao passado, incapaz de compreender e conviver com a nova geração – aqui representada por seus próprios filhos e pelos jovens jornalistas que enchem as redações de hoje.
Passado
A estrutura se alterna em três tempos: o momento presente, em que Ricardo está de plantão diante de um cadáver na praia do Arpoador; um passado recente, com cenas ocorridas naquele mesmo dia; e outro mais antigo, que revê toda a trajetória pessoal e profissional do protagonista.
Enquanto aguarda, durante toda uma madrugada, que a polícia recolha o corpo esquartejado de uma mulher, Ricardo revira os arquivos de sua memória, em busca de mais uma história do saudoso João Carniça. Desejando encontrar conforto, acaba tendo de enfrentar seus próprios demônios, como as lembranças do fracasso como pai de família e do desprezo dos filhos.
O homicídio, que serve de mote para o livro e foi tirado de uma situação real vivida pelo autor, é apenas pano de fundo para a história. Em vez de se concentrar na solução do crime, como nos romances policiais, Fernando Molica fecha o foco no personagem – sua subjetividade, seus desejos, suas angústias.
O protagonista, boêmio confesso, interfere na história de tempo em tempo. A narrativa em primeira pessoa assume o tom coloquial de uma conversa de botequim. Ricardo despeja seu desabafo, recheado de nostalgia e desencanto, profissional e pessoal. O tom de sua voz, no entanto, em vez de melancolia, revela um senso de humor cáustico.
Divorciado de Adélia, uma advogada bem-sucedida e corrupta, ele manifesta seu ódio pela ex-mulher e não poupa críticas aos próprios filhos: a fútil e consumista Caroline e Carlos, que faz questão de ser o oposto de tudo aquilo que o pai representa. Apesar disso, Ricardo reconhece que não é totalmente inocente pelo casamento frustrado e o abismo afetivo que o separa dos filhos.
Ao final, com o dia já clareando, o corpo abandonado na praia é recolhido, e Fernando reserva uma virada surpreendente para o seu desiludido protagonista. De duas outras derrotas pessoais, surge a perspectiva de uma nova vida e um recomeço. Caminhando pelas ruas do Rio, Ricardo alimenta a esperança de que “o sol há de brilhar mais uma vez”.
Conhecido do grande público pelas reportagens apresentadas na televisão, o jornalista carioquíssimo Fernando Molica é também um narrador seguro e com um ponto de vista particular. A segurança está na maneira como constrói cenas de forma visual e numa linguagem que lembra um João Antonio (o autor de Malagueta, Perus e Bacanaço) da Cidade Maravilhosa. Prosa viva, elástica e com ouvido para a fala das ruas. O ponto de vista é especial: trata-se de contar as dores do Rio de Janeiro de hoje, cidade em que a gentileza foi metralhada pela violência. Isso transparece também nesse O ponto da partida. Mostra a brutalidade, mas também sua busca por uma delicadeza perdida. Talvez para sempre.
A literatura brasileira contemporânea tem poucos autores dispostos a contar uma boa história. Para a felicidade dos leitores, Fernando Molica é um deles. Diferentemente da maioria de seus jovens colegas escritores, cujo estilo pretensioso e elitista é pautado pela crítica acadêmica, Molica evita os jogos de linguagem pós-modernos que produzem livros chatos e bestas. Sua escrita é sofisticada, mas não é hermética. Uma prova de que o texto fácil não tem qualquer relação com a superficialidade.
O Ponto da Partida é o terceiro romance do jornalista. É também seu romance da maturidade, resultado das experiências anteriores. O autor tem uma prosa fina, ambienta seus personagens em um Rio de Janeiro originalmente descrito e passa pelos diversos planos narrativos com muito talento, em cortes temporais sutis e bem elaborados. Tudo isso com simplicidade e elegância, características que garantem uma leitura agradável e fluente.
Sinceridade constrangedora
No enredo, um repórter repassa sua história de vida, repleta de frustrações amorosas e conflitos com os filhos, enquanto vela um cadáver na praia de Ipanema durante a madrugada, à espera de uma outra história, também familiar. Mas o romance não é uma crônica da violência no Rio de Janeiro, muito menos uma “vida como ela é” no estilo rodriguiano. Como muito bem observa o escritor Antonio Torres, na orelha do livro, “esta história só dói quando você pára de rir”.
O humor recorta o drama: “O tal do Moisés era uma espécie de repórter especial. O sujeito entrevistava Deus em on, veja só! Deus não pedia off.” Molica também não pede. A narrativa ironiza a religião, o jornalismo e até a sexualidade: “Troque a capa desse teu caderno, deve ter aí uma cota para matérias sobre heterossexuais, não? Sei que esse negócio de hetero é mal visto por aqui. É meio antigo né?”
Além dos leitores de boas histórias, é possível que alguns doutores em Letras também apreciem o livro. Para surpresa dos academicistas, a prosa envolvente não inviabiliza a discussão metalingüística. Mas o autor faz isso com naturalidade, sem a arrogância dos experimentalismos vazios, aqueles que produzem textos sem parágrafos, vírgulas ou coerência. Molica escreve com uma sinceridade constrangedora: “Não faça essa cara, sei que a frase não é das melhores. Mas é assim mesmo.”
Uma reflexão metalingüística
As transições para os flashbacks são feitas com leveza. Não há a sensação de que a narrativa pula de repente para o passado, nem o mal-estar da sobreposição de tempos verbais. Como a preocupação é com a história, o tom do romance é ditado pelo enredo, não pela linguagem. Graças ao bom Deus semântico, sabedor de que no princípio era, e ainda é, o verbo.
Fernando Molica produz uma ficção que não é erudita nem simplista. Sua narrativa percorre uma espécie de caminho do meio, tão importante para a formação de leitores assíduos e freqüentes no país. O “meio” nos vários sentidos do termo: aquele que está entre a linguagem hermética e o simplismo bestializante, entre o clássico e o inovador, entre o cânon e o marginal, entre o consagrado e o estreante. Algo que cative o leitor e o leve a novas leituras. Na melhor tradução do termo, uma história bem contada.
Assim, vale evocar o drama de um personagem secundário do romance, o João Carniça, um velho repórter que não sabia escrever, mas apurava histórias como ninguém. Carniça era do tempo em que o repórter não precisava colocar o enredo no papel, mas precisava saber contar o que vira. Até que chegou uma molecada na redação com o talento exatamente inverso e ele ficou obsoleto.
Estou enganado ou o autor deixou no ar mais uma reflexão metalingüística sobre nossa literatura? Alguém viu o João Carniça por aí?
Por Felipe Pena
Professor da UFF, Doutor em Literatura pela PUC-Rio, Pós-Doutor pela Université de Paris / Sorbonne III, jornalista e escritor. Autor do romance “O analfabeto que passou no vestibular” e de oito livros sobre comunicação e linguagem.
Pode parecer engraçado, mas, naquela época, repórter não precisava escrever. Sério. O João Carniça era um que não conseguia juntar duas palavras. Mas apurava pacas, era complicado correr com ele, muito garoto novo penou, tomou furo do João. Ele, coitado, nem tentava escrever. Só que começou a chegar nas redações uma molecada de faculdade, uns cabeludos de livro debaixo do braço, de bolsa de couro, e, principalmente, umas menininhas de calças jeans, de camiseta, sem sutiã, umas gracinhas. Todos sabiam escrever, iam pra máquina e disparavam, igual a metralhadora. E o João ficava cabreiro, meio envergonhado com aquela história de chegar da rua e ir direto até a mesa do seu redator, é, havia um redator que cuidava dele, um personal writer: não era todo mundo que conseguia transformar em matéria a apuração dele, aquelas anotações complicadas, rabiscadas num bloco seboso, meio nojento. Mas o João chegava, ia pra frente do redator e começava a contar a história. Engraçadíssimo, tinha gente que parava de trabalhar só pra ver. O João quase se perfilava diante do cara, punha os óculos de leitura, dava uma lambida no indicador, virava uma página do bloco e começava a recitar. Ele tinha uma voz forte, assim meio de barítono; não ditava, declamava a ocorrência. O começo era quase sempre o mesmo: “Uma viatura comandada pelo sargento Fulano de Tal, da Polícia Militar…” Ou então: “Como decorrência” — ele adorava o “como decorrência” — “das investigações conduzidas pelo delegado Melquíades Peixoto, do 25º Distrito, a polícia logrou êxito ao prender o marginal Carlinhos do Cabuçu, que desde ontem deixou de se constituir em um perigo para a sociedade.” O tal do delegado Peixoto era compadre do João, estava sempre naqueles ditados que ele fazia para o redator. O sujeito ficava ali, ouvindo a lengalenga, e ia transformando aquilo em matéria, em texto publicável. Mas o João foi se chateando, se sentindo meio humilhado, era um dos poucos que não escreviam matéria. Ficava assim meio triste quando via aquelas mocinhas bonitas, novinhas, redigindo o próprio texto. E pediu pra começar a escrever. Conversou com o redator, tomou algumas lições, faça isso, aquilo, evite os adjetivos, não precisa dar sempre o nome do delegado, do sargento, do soldado, cuidado com as acusações. E, claro, não repita palavras, isso empobrece o texto, cansa o leitor. O João ouvia, anotava, arrumava aquelas coisas todas na cabeça. Ficou impressionado com aquela história de não repetir palavras: “Ah, é assim, é?” E num belo dia foi fazer uma matéria sobre o assassinato de um pescador, o cara, sei lá, morava em Niterói, parece que tinha sido esfaqueado pela mulher, um negócio desses. Tinha bebido demais, o de sempre. Como diria o João, consta que — ele também gostava muito do “consta que” — a dona Maria, a mulher do pescador, estava meio puta naquele dia, cansada de trabalhar, de cuidar das crianças, de aturar ordem de marido bêbado. O sujeito chegou em casa tarde, trocando perna, falando enrolado, com aquela penca de peixe fedorento nas mãos, mandando a mulher ir pra cozinha cuidar do jantar. E, ainda por cima, ameaçando encher a coitada de porrada. Foi o limite. Baixou um caboclo nela, que perdeu a paciência, pegou um facão e, vupt!, abriu um rasgo deste tamanho na barriga do velho homem do mar. O João Carniça foi lá, enrolou os policiais, conseguiu conversar com a mulher, falou com os filhos, apurou tudo, todos os detalhes. Chegou na redação orgulhoso, nariz meio empinado. Aproveitou que era um plantão, tinha menos gente trabalhando, o seu redator estava de folga. Resolveu escrever o texto. E ia pensando, nada de enfileirar nomes de policiais, nada de adjetivos e, principalmente, nada de repetir palavras. Sentou-se diante da máquina e taquitiquicati, pá-pápá, tuc-tuc-tuc, pow, pow. Saiu catando milho, dando porrada na Remington. O cara chegava a suar, coitado, de tão nervoso. Sabia que a redação estava de olho nele, todo mundo dava um jeito de levantar, ir no café, passar por ali pra ver como o João se virava naquele trabalho de parto. Depois de quase duas horas, ele tirou a última lauda da máquina e se levantou. A lata do lixo estava cheia de laudas amassadas, rasgadas. Mas ele, coitado, sorria orgulhoso, aquele sorrisão bonito, que mostrava o canino de ouro. Foi então ao editor, acho que era o Magalhães, e entregou as duas laudas, dobradinhas. “Taí, chefe, é só dar uma lida e mandar pra oficina.” E o Magalhães, tenho quase certeza que era ele, começou a ler. O lide, o início da matéria, estava até correto, o problema foi na hora em que ele descreveu o momento do crime, a porra da preocupação de não repetir as palavras. Ficou mais ou menos assim: “O pescador entrou na cozinha com os peixes nas mãos e disse para a esposa: — Mulher, frite os mesmos!” Pra não repetir a palavra peixes, o João Carniça disse que o pescador tinha mandado a mulher fritar “os mesmos”! O Magalhães ficou vermelho, começou a rir, tentava segurar o riso e não conseguia, não queria humilhar o João, todo mundo gostava muito dele, mas não deu, o sujeito foi ficando sufocado de tanto prender o riso. “Frite os mesmos!” A lauda circulou de mão em mão, bateu todos os recordes internos de leitura. Claro que aquele absurdo não foi publicado, um redator deu um jeito. Mas a história ficou, né? Pior é que, no dia seguinte, o dono do boteco que fica ali embaixo do jornal colocou no cardápio do almoço, naquele quadro-negro, bem na entrada do bar: “Prato do dia: Mesmos fritos com feijão, arroz e salada.” Todo mundo comeu peixe naquele dia, uma sacanagem. Neguinho ria e comia, ria e comia. Coitado do João.
Ricardo deixa escapar um sorriso ao recordar a história do João Carniça, que lhe foi contada, recontada, dias antes na varanda do apartamento do Luiz. Frite os mesmos… Antes lembrara de outro caso, mais um episódio protagonizado pelo João Carniça. Um fato também relacionado a uma cobertura policial, a um crime sangrento. Um episódio que, pelo cômico, pelo inusitado, se impusera ali, diante da tragédia, do corpo ensacado, jogado naquele canto escuro da praia. Não havia como Ricardo sair dali, abandonar o local do crime que lhe cabia naquela noite. Bem que tentara não ir, insistiu para derrubar a pauta. “Este tipo de crime, violento assim, é coisa de bandido que mata bandido, uma vingança. Vai que a mulher deu um banho em algum traficante, pegou as drogas, vendeu, cheirou, e não pagou. Os caras, você sabe, não perdoam, passam a régua. No caso, passaram a faca, o serrote, picotaram a mulher. Briga de bandido, pra que correr pra isso?” Os argumentos — equivocados, agora admitia — foram em vão. Tivera que ir, testemunhar a barbárie, contaria aquela história no jornal. Pior, recebera ordens para ficar até que o corpo fosse removido. Passaria a madrugada enevoada, esquisita, fria demais para um fim de setembro, diante daqueles pedaços de corpo jogados dentro de um saco preto. A bruma diminuía o tamanho do céu, como se apertasse uma tela na vertical. Os prédios da orla pareciam desfocados, mais distantes, quase abstratos. A pouca distância, o efeito se diluía, mas não desaparecia de todo — havia uma névoa que, brigando com a iluminação de um poste alto, estabelecia limites para aquele espaço, uma espécie de palco difuso, mal-iluminado. Em um canto, uma luz amarela se impunha, revelava a pedra, o calçamento; no outro, escuro, emergia o corpo, pedaços de corpo envolvidos no saco plástico. Cena que o fizera lembrar de Carniça, de sua relação mais fria e amistosa com as tragédias. De alguma forma, Ricardo gostaria de, naquele momento, poder ser um pouco como ele.
Tinha havido um crime, um assassinato de uma família, uma história boa, vítimas de classe média, moradores de Copacabana, um luxo para a época. Era um daqueles dias em que o jornal fugiria da lógica PPP que caracterizava suas manchetes sangrentas. PPP — Presunto, Preto e Pobre. Haveria presuntos, três presuntos!, mas presuntos brancos, ricos, grã-finos. Nada de crioulo sem dentes encontrado no meio do mato. Crime bom, alto nível. E lá se fora o João Carniça. Tinha nascido o terceiro filho dele, o cara trabalhava que nem um cachorro. De manhã ia pra repartição, um deputado tinha arrumado um bico pra ele, estava começando aquele negócio de todo mundo ter assessor de imprensa, acabou sobrando uma vaga pro João, que passava uma parte da manhã atendendo telefone: “Secretaria Es-ta-du-al de Obras, bom-dia!” Depois, ia pro jornal, naquela época era normal acumular emprego público com emprego em jornal. Ele saía da redação umas nove, dez da noite e ainda passava pela rádio, ficava até uma da manhã na escuta. Trabalhava muito. E, claro, vivia com sono. Dormia no carro de reportagem, dormia na repartição, dormia onde dava. Naquele dia ele foi o primeiro repórter a chegar na cena do crime. Falou com os policiais, vai ver que o delegado Peixoto estava por lá…, conversou com um, com outro, e conseguiu autorização pra subir no apartamento antes da perícia. Uma, duas horas depois, chegaram os peritos. Os caras subiram, fotografaram, mediram — crime de rico, tinham que fazer a perícia direito. Ficaram lá um tempão. Quando desceram, falaram com o delegado: “Já fizemos tudo o que tinha pra fazer, pode liberar o local, recolher os quatro corpos.” “Quatro corpos, como assim?”, o delegado arregalou os olhos. “Os quatro corpos”, respondeu o perito. “Os três que estão no quarto e o outro, daquele mulato, lá na sala.” “Mas não tem corpo nenhum na sala”, o delegado insistia. “Como não tem? Está lá, de barriga pra cima, deitado no sofá.” O corpo, claro, só então a ficha do delegado caiu, era do João Carniça. O coitado, morto de cansaço, certamente não resistiu e dormiu no sofá macio daquela casa de gente rica.
Mas talvez nem mesmo João Carniça conseguisse pegar no sono ou provocar, ainda que involuntariamente, alguma graça neste outro cenário: o que abrigava o corpo largado dentro de um saco de lixo, junto à pedra que circunda as praias do Arpoador e do Diabo. Filetes de sangue escorriam para o calçamento de pedras portuguesas. A mulher tinha sido esquartejada: segundo o PM, só havia ali a parte inferior do corpo. O viúvo, aquele, sentado no banco, de cabeça baixa, fez a identificação pelas roupas, reconheceu um sinal na perna direita. Chegou, olhou o corpo, disse que era ela mesmo. Depois foi praquele banco, telefonou pra filha, pro cunhado, não deu pra ouvir direito. E tá ali sentado faz mais de uma hora, parece um fantasma no meio da bruma. Que coisa, que coisa terrível. Não, ninguém viu nada. A nossa cabine ali tava vazia, sabe como é que é, com esses ataques todos, o comando determinou que a gente não ficasse parado, dando mole lá dentro. O assassino devia saber disso, senão não ia trazer o corpo pra cá. Nós perguntamos pros porteiros, pro pipoqueiro, pros pescadores, pro cara que cuida dos banheiros do posto de salvamento, pros rapazes dos quiosques, pro segurança que tá de plantão na cancela no início da rua. Ninguém viu nada. Se viu, não notou nada de estranho. Aqui passa muita gente carregando saco, pacote, embrulho. Tem os caras dos quiosques, tem esses camelôs, tem farofeiro, maconheiro, tem de tudo. Alguém deve ter notado, é impossível não ver um ou dois sujeitos carregando um pedaço de corpo, desovando um corpo aqui no Arpoador, na beira da praia. Ou não prestaram atenção ou então estão com medo de falar. O que é bem possível. Um sujeito que retalha uma mulher é capaz de fazer qualquer coisa. Imagina se ele pega um paraíba desses, um porteiro. Também, sei lá: o cara pode ter vindo andando pela praia mas pode ter chegado por Copacabana, entrado aqui pelo portão do Parque. A gente não sabe a que horas o corpo foi deixado, pode ser que o Parque ainda estivesse aberto. Essa névoa também atrapalha, aqui já é meio escuro… Vamos ficar aqui, não podemos deixar o corpo sozinho, o jeito é esperar a perícia. O delegado da 13 veio aqui, olhou, foi embora, disse que era aniversário da mulher dele, que tinha que sair logo, que ia pedir urgência na perícia, que ia mandar um inspetor pra cá. Até agora, nada de perícia, de inspetor. Só a gente mesmo, só a PM. A gente, o viúvo, e vocês, repórteres. E, por favor, fala lá com seu fotógrafo pra não mostrar a cara da gente. Não quero minha foto em jornal, moro num lugar meio perigoso…
Ricardo precisava de um João Carniça ali, do seu lado, de alguém para lhe contar novas histórias, para fazê-lo rir, para, de alguma forma, tirá-lo dali. Pimenta fora para o carro, ia tentar dormir, procurar esquecer aquela merda. Mas Ricardo ficaria acordado, não conseguiria pegar no sono ao lado do corpo, do viúvo. Precisava lembrar de outros casos que envolvessem jornalistas e tragédias, erros constrangedores cometidos por repórteres, episódios engraçados, folclorizados pela categoria. Uma história, uma história, mais uma, uma só que fosse. Era necessário, urgente. Principalmente agora, quando o peso daquela brutalidade parecia se diluir na madrugada. O sargento volta e meia bocejava, recostado no carro da PM. Aquele mesmo sargento — Oliveira, acho — que se disse chocado com a crueza do crime, e olha que a gente tá acostumado com essas coisas. O soldado que o acompanhava dormia no banco do carona. A madrugada, caceta, não parecia que ia fazer tanto frio hoje, fingia tranqüilidade, a névoa era como um grande cobertor que, ao diminuir o tamanho dos espaços, parecia absorver um pouco da movimentação da cidade. Ainda mais ali, no início do Arpoador, nem os carros dos moradores chegavam até aquele ponto em que não havia mais prédios, apenas uma espécie de largo, uma pequena esplanada que unia as duas praias. Algumas pessoas — domésticas que deixavam o trabalho, um ou outro rapaz e seu cachorro, os garis que encontraram o corpo — chegaram a parar em torno do canto escuro, daquele pedaço de palco que não recebia nem a luz amarelada nem a esbranquiçada, esta, projetada pelos postes menores. O saco preto com o corpo, com os pedaços do corpo, fora colocado na base da parede de pedra que vinha do Parque Garota de Ipanema, um prosseguimento natural da cerca. Alguns até chegaram às janelas para acompanhar a movimentação dos repórteres e policiais que percorreram a Francisco Bhering em busca de testemunhas. Mas o receio de serem chamados a depor, a dar entrevista, fazia com que logo depois voltassem a se fechar em seus apartamentos. Em alguns casos deu para ouvir o barulho das janelas sendo puxadas com força, vítimas de um golpe certeiro, agudo, capaz de isolar aquela realidade que teimava invadir a madrugada de quarta-feira. Ninguém ofereceu uma água, um café, uma conversa. Nem os porteiros chegaram perto, poderiam ser advertidos caso deixassem seus prédios. Crime bom era no subúrbio, Carniça tinha razão. Lá os repórteres ganhavam água, café, e mesmo bolo dos vizinhos. Moradores que convidavam para entrar, deixavam telefonar para o jornal. Isso, claro, em outros tempos, época em que do subúrbio ainda exalava um ar de calma, em que os vizinhos de um crime podiam ir para a rua, acompanhar o trabalho da reportagem, dar detalhes sobre a vítima, palpitar sobre a causa do homicídio, fazer fofoca, verbalizar suspeitas, insinuar motivos para o crime. Aqui, no Arpoador, não tinha água, café, bolo, mas dava, pelo menos, para passar a madrugada ao lado do corpo, dos pedaços do corpo. Se fosse no subúrbio, na Baixada, já teria voltado para a redação, talvez nem tivesse ido ao local, não valia a pena arriscar a vida por tão pouco, mesmo de carro blindado era perigoso circular por certas áreas da cidade de madrugada. A necessidade de evitar o perigo retirava dos pobres o direito de, ao menos na hora da morte, receber algum tipo de cobertura dos jornais. Os crimes ocorridos na madrugada em áreas de risco — um conceito genérico cujos limites eram ampliados a cada semana — ocupavam cada vez menos espaço nos jornais, as informações eram aquelas apuradas por telefone com a polícia. Pobres, mesmo mortos, eram cada vez mais ausentes das páginas.
Este livro está à venda nas melhores livrarias do mercado. Mas, para facilitar a sua compra, você também encontra o livro em algumas lojas virtuais.
Clique aqui para ver as Lojas Virtuais que vendem esse livro