Jornalistas, alguns pelo menos, têm o saudável hábito de contar histórias que os poderosos de turno adorariam deixar nas sombras. Se os poderosos de turno detêm poder absoluto, então, fazem absolutamente de tudo para que tais histórias permaneçam indefinidamente longe das vistas do público. É insuportável para eles a idéia de que alguém possa escrever algo que leve os leitores a dizer: não é que o rei está nu? Se necessário, recorrem até aos trapos da censura para cobrir a nudez do rei.
Este livro é o produto da combinação de duas coisas: o saudável hábito dos jornalistas e o fato de haver, sim, nudez do rei a mostrar. No caso, o rei é (ou era) a ditadura militar no Brasil (1964/85). Sua nudez tomou a forma, nestas histórias, de dois dos aspectos que os poderosos mais gostam de esconder: violações aos direitos humanos e práticas pouco ortodoxas com os recursos públicos, para usar uma linguagem bastante suave.
Não conheço pessoalmente todos os autores nem a gênese de todas as reportagens, mas seria capaz de apostar que nenhum deles foi a campo para fazê-las pensando em derrubar a ditadura. Devem ter pensado, antes e acima de tudo, em contar fielmente histórias, histórias que sabiam verdadeiras mas que ficavam (ou estavam momentaneamente) nas sombras. Assim mesmo, até inconscientemente, deram sua contribuição para o restabelecimento da democracia, porque não há nada que poderosos temam mais do que jatos de luz a iluminar seus porões.
Clóvis Rossi
Criada em dezembro de 2002, a Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – é uma entidade sem fins lucrativos que promove seminários, cursos e oficinas para estimular a qualificação de jornalistas e estudantes. A Abraji estimula a troca de experiências e informações para o aperfeiçoamento das técnicas de reportagem. A associação tem cerca de 350 sócios e já promoveu cursos e seminários em sete estados. O endereço eletrônico da Abraji é www.abraji.org.br.
Muito além do embrulho de peixe
Prepare seu coração: este livro, que abre a coleção Jornalismo Investigativo, reúne algumas das melhores reportagens produzidas em um dos piores tempos da nossa história. São trabalhos que se destacam em meio a uma grande e mesmo surpreendente quantidade de ótimas matérias publicadas em uma época pouco propícia para o exercício do jornalismo — reportagens que todo bom jornalista gostaria de assinar. Os textos aqui publicados não mereciam permanecer confinados nos arquivos de jornais ou revistas, ou, em alguns casos, em edições de livros esgotados: provam que jornal velho não serve apenas para embrulhar peixe. São reportagens exemplares, pela ousadia, competência e coragem de seus autores e editores. Elas agora voltam a circular acompanhadas de relatos de jornalistas envolvidos com sua produção ou edição. Textos, em alguns casos, tão impactantes e emocionantes quanto os das reportagens.
Não houve aqui a intenção de se estabelecer uma classificação nem a tentativa de se escolher algo como as melhores ou mesmo as mais representativas reportagens entre as publicadas durante a ditadura militar: outras seleções seriam possíveis sem que se perdesse a qualidade do resultado final. Procurou-se oferecer um painel que permitisse uma visão geral do período que vai de 1964, ano do golpe que destituiu o presidente João Goulart, até 1985, quando o último general deixou o poder. Buscou-se também uma certa variedade temática, reportagens que abordassem diferentes aspectos da vida nacional em um período de exceção.
Quase todas as matérias estão reproduzidas na íntegra, mas em alguns casos optou-se por publicar a principal ou as principais reportagens de uma série. Alguns temas aqui abordados, como a cobertura do caso Riocentro, mereceriam publicações específicas, tamanha a quantidade e qualidade do trabalho jornalístico então desenvolvido. De um modo geral foi mantida a padronização adotada por cada veículo para a grafia de números, cifras, siglas, abreviaturas e horários. Vistas assim, em conjunto, as reportagens permitem uma nova leitura do regime militar e de algumas de suas conseqüências que mais chamavam a atenção dos jornalistas e da sociedade. Os temas nelas abordados — torturas, corrupção, pobreza — formam quase o resumo de uma agenda que se impôs ao longo de duas décadas e que, em alguns casos, permanece constrangedoramente atual. Esta seleção de matérias de viés crítico não pretende, porém, esconder um fato histórico: o apoio quase unânime dos jornais e revistas ao golpe de 1964. Um entusiasmo demonstrado não apenas em editoriais mas também em reportagens que muitas e repetidas vezes louvaram o regime militar e, em alguns casos extremos, demonstraram cumplicidade com a tortura e o arbítrio.
Esta contradição entre o apoio ao golpe e a crítica aos atos de seus executores fica clara logo em 1964, com a série pioneira sobre tortura publicada no Correio da Manhã — o mesmo jornal que, meses antes, berrara “Basta!” e “Fora!” para o governo constitucional. Os textos de Marcio Moreira Alves, escritos em primeira pessoa, e que abrem este livro, parecem dizer: não se pode esperar boas maneiras de golpistas. Enviado a Pernambuco para acompanhar uma comissão oficial que iria supostamente apurar os casos de tortura, o repórter cumpriu a tarefa que deveria ter sido executada pelo poder: ouviu torturados, autoridades militares e produziu um detalhado dossiê sobre o episódio.
Ao gritar “Eles estão com fome”, a revista Realidade alertava para a permanência de um Brasil arcaico, desconhecido, em que o desrespeito a um direito básico do ser humano — o direito de comer — se impunha ao discurso de salvação nacional alardeado pelos militares. Na reportagem, os dados que comparam a fome brasileira com a indiana são ilustrados por relatos estarrecedores. Quase quarenta anos e muitos governos depois, o texto de Eurico Andrade se revela atual, incômodo, desafiante. Eles, afinal, continuam com fome. A denúncia da banalização da tortura e de sua adoção como método de interrogatório surge também na edição especial da revista Veja, de dezembro de 1969. Um documento impressionante pela qualidade, pelos detalhes narrados e pela época em que foi publicado — um dos períodos mais duros da ditadura. A edição da revista, de número 66, seria apreendida nas bancas.
O tema tortura, um dos mais visados pela censura da época, voltaria a ganhar destaque no rastro da indignação provocada pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, em um quartel do Exército em São Paulo. O crime, apresentado como um suicídio, provocaria um dos mais interessantes e completos relatos do período: a edição especial do jornal alternativo ex-. A extensa reportagem detalha, em uma emocionante cronologia, o assassinato, o choque, a revolta e a mobilização da categoria, dos amigos e parentes de Vlado. O Dicionário Houaiss ensina que a palavra “mordomia” foi incorporada à língua portuguesa em 1672. Mas apenas três séculos depois, em 1976, ela ganharia as ruas brasileiras. Isso, depois de os repórteres de O Estado de S. Paulo mostrarem como viviam os superfuncionários do governo. As reportagens abriram uma cunha em um regime que se justificava também pela suposta luta contra a corrupção. As reportagens do Estadão mostraram que a capacidade de sedução do poder era infinita e que a ditadura, longe de contribuir para uma moralização dos costumes, servia principalmente para acobertar os abusos cometidos com o dinheiro público. Neste livro, reproduzimos a primeira das três reportagens da série, a que relata os detalhes das mordomias: vale notar o cuidado da edição, reflexo daqueles tempos sombrios e delicados. Em uma aparente subversão da lógica jornalística, o material é aberto pelas providências tomadas pelo governo para diminuir os abusos. A reportagem em si, um texto primoroso, irônico e informativo, começa mesmo a partir do título “Em tudo, o clima de uma grande festa”. A ditadura conseguia até fazer com que a suíte — a continuação da matéria, no jargão jornalístico — fosse publicada antes de sua abertura. Mas não era mais capaz de impedir a publicação da reportagem e a repercussão por ela causada. Naquele mesmo ano, a reportagem “Operação Brother Sam”, do Jornal do Brasil, mostraria como o direito de acesso a documentos públicos é importante e mesmo essencial em uma sociedade democrática. O repórter Marcos Sá Corrêa produziu um exemplo de reportagem investigativa a partir da consulta, nos Estados Unidos, do arquivo do ex-presidente Lyndon Baines Johnson. Graças ao direito de acesso a documentos de caráter histórico, Corrêa comprovou e detalhou o que muito se comentava: o papel dos Estados Unidos no golpe de 1964. A facilidade com que ele teve acesso aos documentos revela, trinta anos depois, o quanto ainda estamos carentes de uma lógica burocrática que nos permita conhecer detalhes de nossa própria história.
Entre 1978 e 1980, o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Baptista Scalco dariam, em diversas edições de Veja, exemplos de persistência, determinação e capacidade de investigação jornalística. Ao longo de um ano e sete meses, Cunha e Scalco comprovariam a participação de policiais gaúchos em um caso de seqüestro de militantes políticos uruguaios no Brasil: coletaram evidências, destruíram álibis e produziram um trabalho impecável, que se lê com a voracidade com que se consome um bom livro policial. Na época, as páginas de Veja se transformaram em suporte de um folhetim que registrava um dos casos mais abusivos protagonizado por agentes das ditaduras brasileira e uruguaia.
O tema tortura ganharia uma abordagem diferenciada em 1981, quando a revista IstoÉ detalhou a existência de um centro de horrores em uma casa na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro. A reportagem de Lúcia Romeu — irmã de Inês Etienne Romeu, uma das vítimas das sevícias lá praticadas — e Antônio Carlos Fon é o relato de um jornalismo que se sabe essencial e urgente. Reproduzimos aqui também um outro registro histórico: o diálogo de Inês – cuja persistência foi essencial para a denúncia da casa – com o médico e psicanalista Amílcar Lobo, que, sob a pele de “dr. Cordeiro”, a atendia nos intervalos das torturas.
Para que se pudesse dar uma idéia da importância da cobertura do caso Riocentro, uma espécie de marco da investigação jornalística brasileira, optou-se pela publicação não de uma, mas de algumas reportagens representativas do grande trabalho desenvolvido na época. A cobertura deste atentado foi talvez o principal exemplo de esforço coletivo jornalístico de todo o regime militar: a tarefa de descobrir o que ocorrera e de tentar impedir a farsa da investigação oficial mobilizou praticamente todas as grandes redações do país. A excelência do trabalho foi tamanha que a tentativa oficial de se estabelecer uma outra versão para o atentado sobreviveu apenas como exemplo de pantomima. Foi um momento em que a força da informação derrubou o poder exercido pelos militares, uma cobertura que serviria de parâmetro para o acompanhamento dos escândalos que viriam a seguir. A não punição dos terroristas responsáveis pelo atentado foi em parte compensada pelo trabalho dos repórteres, que possibilitou a condenação da sociedade àqueles que, por pouco, não conseguiram causar uma tragédia de dimensões até hoje difíceis de se imaginar. Este livro traz, como exemplos desse trabalho, reportagens publicadas no Jornal do Brasil, que dariam à equipe do jornal o Prêmio Esso de Jornalismo de 1981, e no O Estado de S. Paulo — o repórter Antero Luiz, responsável pela maior parte das matérias publicadas pelo jornal, ficaria, naquele ano, com o Esso de Reportagem e também receberia o Prêmio Vladimir Herzog.
O livro é encerrado com a denúncia, pelo repórter José Carlos de Assis, da Folha de S.Paulo, do escândalo que envolvia uma negociação de terrenos e dívidas do então poderoso grupo Delfin. Uma reportagem que abriria caminho para uma série de outras matérias que revelavam como as sombras da ditadura, as mesmas propícias ao florescimento das mordomias e das violações dos direitos humanos, eram ideais para um outro tipo de lavoura: o das negociatas. O discurso oficial da moralidade administrativa levava um outro golpe com a reportagem que teve ainda o mérito de trazer para a luz um raro exemplar de criatividade do economês pátrio: a expressão “valor potencial”, duas palavrinhas que, combinadas, traduziam a capacidade oficial de embalar com papel novo velhas práticas administrativas.
* Um dos mais entusiasmados com o projeto deste livro era o pernambucano Eurico Andrade, três vezes incluído na lista dos ganhadores do Prêmio Esso, sempre com matérias voltadas para o drama social nordestino. Volta e meia, desde meados de 2004, ele telefonava para saber notícias do “nosso livro”. No fim de agosto passado, Eurico morreu. Uma de suas filhas, a também jornalista Andréa Dantas, contou que, mesmo internado, seu pai não deixava de perguntar sobre a chegada do contrato que permitiria a inclusão de seu texto nesta coletânea: “Era sua maior preocupação”, revelou. O contrato acabaria sendo assinado no hospital: jornalista só fica sossegado depois que fecha sua matéria.
Fernando Molica
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