Fernando Molica é jornalista, dos melhores de sua geração, e já reportou tanta história esquisita, tanto acontecimento absurdo, que não ficará espantado se amanhã a trama deste seu primeiro romance aparecer com personagens reais nos jornais. Eis o lead: universitários de esquerda se instalam numa favela, fazem aliança com traficantes de drogas e instalam os princípios de uma revolução socialista na Zona Norte do Rio de Janeiro. Tudo é possível, dizem os bons repórteres, esses craques do cinismo. Mas por enquanto a nova ordem administrada pelos pós-marxistas e a turma do “movimento”, no Morro do Mirandão, está apenas na ficção fluente de Molica — e provoca aquele risinho de lado das claques inteligentes.
Eis os fatos: guerrilha urbana, palavras de ordem, o ódio ao Estado burguês, a conscientização do proletariado, a necessidade de armá-lo para conquistar o poder, o pôster do Che e discursos terminados, punhos fechados, com a filosofia vandréniana do “quem sabe faz a hora”. Os anos 60, que a toda hora ameaçam incorporar na regravação de alguma musiquinha alienada da Jovem Guarda, reaparecem enfurecidos, em plena virada de milênio, no engajamento sócio-nonsense do pessoal da Conexão Revolucionária. Uma farsa política e, como tudo no Rio, policial também. Sem apelar para a caricatura escrachada, Notícias do Mirandão não espera acontecer. Acelera a maluquice do hardnews jornalístico, perfila evangélicos, policiais, traficantes, repórteres, políticos e estagiárias, quase todos lunáticos, quase todos vigaristas. Não tem barriga. Molica estréia com um Prêmio Esso de Ficção.
Joaquim Ferreira dos Santos
Romance narra as peripécias de aspirantes à guerrilheiros que resolvem tomar uma favela do Rio
O que aconteceria se um grupo de universitários de esquerda, comandados por um quarentão marxista, resolvesse se unir a traficantes para juntos fazerem uma revolução socialista no Rio de Janeiro em pleno século 21? A resposta pode ser encontrada em Notícias do Mirandão, romance de estréia do jornalista Fernando Molica, narrado no ritmo veloz e envolvente dos bons thrillers, misturado com doses de fantasia e humor.
Molica parte do que não é, para criar o que poderia ser, ou mesmo o que pode vir a ser um dia. Uma hipotética Conexão Revolucionária é formada por jovens dissidentes de um partido de esquerda, insatisfeitos com as limitações do processo eleitoral e dispostos a partir para a luta armada. Seu desafio: levar a cabo a união da vertente revolucionária com a eficiência dos grupos armados ligados ao tráfico de drogas. A intermediação entre os dois grupos ficaria a cargo de Herculano Maromba, líder comunitário do Morro do Mirandão, na Zona Norte do Rio, e integrante da ONG Mitanambu (“casa de amigos”, em uma língua africana).
Os jovens revolucionários não querem repetir o que consideram erros estratégicos dos velhos militantes do tempo da ditadura, já que as condições atuais são outras: “‘Temos o que não se tinha em 70: povo desencantado, de saco cheio, lideranças autenticamente populares – a Revolução, agora, vai partir de Irajá, não de Ipanema.”
Boas idéias não geram necessariamente bons poemas, dizia Mallarmé. Nem boas histórias, podemos acrescentar. Para sorte do leitor, Notícias do Mirandão não cai na armadilha de certas alegorias que usam o literário como mero pretexto para a veiculação moral, ética ou ideológica, mesmo que na defesa do politicamente correto. O romance nos leva a uma reflexão sobre a caótica configuração sociopolítica do país nos dias de hoje, sem deixar de ser, antes de tudo, uma obra de ficção. Se o ideológico atravessa o ficcional, em nenhum momento o sufoca, funcionando apenas como uma possibilidade de leitura paralela, de tal modo que a cada página o romance reitera sua condição de artifício, de jogo bem conduzido.
Colocados na rede armada pela história principal, outros personagens vão desfiando suas histórias particulares, que funcionam como um retrato em caleidoscópio do Rio de Janeiro, cidade multipartida. A diversidade de tipos que desfilam pelo romance aponta não apenas para as diferenças entre uma e outra classe social, como também para problemáticas desavenças internas: traficantes, rappers e líderes comunitários (os de apelo social e os religiosos) no Morro do Mirandão, os jovens da CR e os ex-militantes dos anos 70, políticos de todo naipe, policiais, comerciantes, soldados do tráfico e usuários, editor e repórter etc. Diferenças que levam um dos mais empenhados líderes do grupo revolucionário a afirmar que o Brasil é tão ferrado “que até quem mora no Engenho de Dentro e tem grana para comer galeto no Méier é um privilegiado”.
Das narrativas paralelas, se podemos chamá-Ias assim, a mais interessante é a de Fontoura, cujo casamento fracassa justamente em função de uma outra luta pelo poder, mais delicada, sem dúvida, mas nem. por isso menos corrosiva – ele e a mulher trabalham como repórteres em jornais rivais. A trajetória de Fontoura como repórter e seu dia-a-dia entre as agruras da redação e das visitas ao morro e adjacências garantem boa parte do humor que permeia todo o livro. Humor para o qual contribuem também as impagáveis reuniões da CR, recheadas de jargões do discurso de esquerda, que começam a incomodar o ainda indeciso Herculano Maromba, em cuja memória ecoa ainda a bronca de um marceneiro, numa assembléia da associação de moradores: “As suas idéias são até boas, mas, porra, Herculano, pára de chamar minha mulher de companheira, cacete!”
Molica não se propõe a nenhum experimentalismo de linguagem. Nem precisava. Sua proposta, legítima e antenada com a tendência da ficção brasileira hoje, parece ter sido a de contar uma boa história, combinando informação e simplicidade, amparadas por uma técnica narrativa que aposta na concisão, na alternância constante do foco narrativo e na naturalidade das descrições e dos diálogos como trunfos para prender a atenção.do leitor. Como alguns de seus contemporâneos, o autor percebeu que há outras formas de ser criativo, para além das propostas vanguardistas do século 20.
Pode ser um pouco exagerado o entusiasmo de Joaquim Ferreira dos Santos, ao escrever, na orelha do livro, que Molica estréia com um Prêmio Esso de Ficção – a brincadeira, além de um elogio explícito, é também uma referência ao sonho que move o repórter Fontoura. De qualquer forma, não há como negar que se trata de uma história bem contada, envolvente desde as primeiras linhas e que tem como um de seus maiores méritos o fato de não menosprezar, em momento algum, a inteligência do leitor.
FLÁVIO CARNEIRO
Momentos de crise vêm acompanhados de guerras de palavras. É saudável. O despertar de novos níveis de consciência provoca o deslocamento de sentidos, velhos conceitos revelam-se ultrapassados e idéias fresquinhas são forjadas com os destroços das antigas, enquanto metáforas tentam preencher as lacunas de nossa compreensão capenga. Na confusão, o que terá a firmeza de um conceito? O que é intuitivo mas vago? O que não passa de ataque histérico? É difícil responder a essas perguntas no momento em que a linguagem treme, sinal de reacomodação em camadas profundas. Bom exemplo é o debate da hora: faz sentido chamar de “Estado paralelo” o poder exercido por um punhado de traficantes sobre a vida de 1 milhão de cariocas que vivem nas favelas?
A tentação de muita gente nesses casos é desdenhar da guerra simbólica como se ela fosse frescura: “Que diferença faz se é um Estado paralelo ou não? O que importa é que mata e oprime, o resto é conversa para boi dormir”. Essa solução encontra acolhida junto ao senso comum, mas convém resistir a ela. O nome que damos às coisas faz diferença. Digam à nossa governadora que temos um Estado paralelo nos morros e ela ficará trêmula de raiva. Benedita da Silva nega essa idéia de forma tão enfática que chega a violentar a verdade, dizendo que as forças de segurança pública têm o controle da situação. Qualquer criança sabe que não têm. O medo da governadora é que, prevalecendo a tese do Estado paralelo, abram-se as portas do Rio para uma intervenção federal e até para aquele velho sonho da direita, a tomada das ruas da cidade pelo Exército. Afinal, uma das funções dos militares é exatamente a de combater Estados inimigos, não é?
Há quem rebata a tese com mais competência, como o historiador José Murilo de Carvalho, que vê na expressão o mesmo teor aproximativo e inexato de outras que vêm sendo usadas em meio aos tiroteios (e não apenas verbais, literais também), Como guerra civil e guerrilha.A idéia de um Estado paralelo perde força, segundo ele, diante da fragmentação de poder que põe grupos de traficantes uns contra os outros. Algo tão bagunçado não pode aspirar à definição de Estado, nem mesmo à de Estado terrorista.
Tudo bem, mas para se ter uma idéia de como nada é simples nessa enrascada em que nos metemos com nossas próprias pernas, ao longo de séculos de descaso brutal com a pobreza e a miséria, há também quem fale em Estado paralelo com uma intenção politicamente inatacável: a de ressaltar o tamanho da dívida histórica do Estado brasileiro propriamente dito com as populações urbanas marginalizadas. Uma dívida que Benedita conhece bem e que, a essa altura, é tão difícil de pagar quanto a externa. Não se pretende chegar aqui a uma conclusão. O fim dessa crise está longe.
No entanto, ajuda a suportar a caminhada saber que toda guerra real vem acompanhada de uma simbólica, e que dificilmente se ganha aquela sem ganhar primeiro esta. Questão de foco, de compreensão da realidade. Por exemplo: uma rara boa notícia vinda ultimamente do campo de batalha é toda feita de palavras. No romance Notícias do Mirandão, lançado há cerca de três meses, o jornalista Fernando Mollica – por coincidência, colega de Tim Lopes na TV Globo – imagina uma curiosa união entre militantes de extrema esquerda e traficantes para criar, aí sim, um Estado paralelo num morro do Rio. Tudo ficção, claro. Mas ficção da boa, corajosa o bastante para trazer embutido umdebate politico do qual, depois de Antônio Callado, a literatura brasileira tem fugido apavorada. É assim que se ganha uma guerra simbólica, lutando para que as palavras consigam dar conta da realidade. Por mais indizível que essa realidade seja.
SÉRGIO RODRIGUES
“Notícias do Mirandão” conta a história de um foco revolucionário
Era apenas uma questão de tempo – e aqui está o romance dos morros cariocas, tomada a expressão no sentido específico da geografia policial (Fernando Molica. “Notícias do Mirandão”. Rio: Record, 2002).
No caso, os personagens são só jovens revolucionários que, sob as espécies de uma ONG assistencial, instalam sua célula no território dos traficantes, com os quais passam a viver em regime de comensalidade. É qualquer coisa como um “foco” urbano, para usar a palavra que já teve o seu momento de febril popularidade, ali passando os dias na repetição de palavras encantatórias, como “conjuntura”, “Estado escravocrata”, “excluídos”, “exploração capitalista”, “justiçamento”, “companheiro”, “processo revolucionário”, “burguesia”, e assim por diante.
Nesse universo de idealizações mentais e irrealistas, convivem amigavelmente com os traficantes de drogas e armas, imaginando agir por solerte maquiavelismo. Tudo, aliás, organizado segundo os princípios capitalistas mais ortodoxos:
“Os donos de cada morro passaram a ser vistos como homens de negócios, envolvidos em práticas de distribuição e venda de produtora, de conquista de mercado e de pontos de comercialização, de luta contra a concorrência. Havia o detalhe de que trabalhavam com produtos ilegais – mas isto era um detalhe”.
Tão capitalistas que não pretendiam destruir a sociedade existente, substituindo-a por outra, mas mas ao contrário, perpetuá-la e reproduzi-la por conta própria. “De um jeito ou de outro, esses varejistas de produtos ilegais sonham com algum tipo de inserção na sociedade. Isto fica claro ao observarmos os seus hábitos de consumo. Eles buscam mimetizar a lógica das classes dominantes: carros, roupas, acessórios, eletrodomésticos”, observava um dos doutrinários, tirando de tudo isso uma conclusão “revolucionária” inesperada: “eles nunca conseguirão se institucionalizar (…). O mundo deles só poderia ser o do subúrbio, da linha do trem, do barracão da escola de samba. É isso que nossos futuros companheiros têm que entender. Eles não têm saída. O lado deles é o lado de cá”. Era o que ensinara o dirigente Pillar dois anos antes, em uma reunião da CR (Conexão Revolucionária). Assim, caberia às legiões libertadoras, compostas de guerrilheiros e traficantes, implantar no país as radiosas manhãs cantantes.
Enquanto isso, era preciso tratar das finanças públicas e da ordem social: “alguns co- .
merciantes da área estavam evitando pagar a taxa, a contribuição exigida pelo movimento para dar proteção a todos que por ali tinham algum negócio. A proposta era simples: os comerciantes e os industriais deveriam contribuir com 5% do seu faturamento. O percentual deveria ser calculado com base no faturamento real, não naquele que servia de referência para o pagamento dos impostos oficiais. (…) Recebiam em troca a garantia de que não seriam assaltados ou seqüestrados. Teriam segurança absoluta naquela área”.
Mas, sempre há alguém sem espírito cívico, como o açougueiro Francisco Antônio Nogueira, 65 anos, que, como “não pagava impostos ao governo formal, não iria submeter-se àquele bando de pretos desocupados”, morto com mais de 20 tiros quando chegava ao trabalho, conforme três semanas depois, o doutrinário Célio explicava aos colegas da CR, “organização jovem, fundada havia quatro anos. No princípio era mais uma convergência de forças de alguns militantes do POS (Partido Operário Socialista), quase todos universitários ou secundaristas, insatisfeitos com as limitações do processo eleitoral”. Disse ele que “o justiçamento de um comerciante que se recusava a compreender o espírito da ação revolucionária causou um forte impacto no bairro. Outros empresários que se mostravam reticentes passaram a colaborar com a arrecadação da taxa de convivência e segurança. (…) De certa forma é lamentável que tenhamos de tomar este tipo de atitude (…) mas não havia outra alternativa”. Assim agem as vanguardas da Revolução.
O que importava, acima de tudo, era manter a aliança tática com a traficância: “Pillar inststia: ninguém pode falar em Revolução no morro. O processo é pedagógico: aos poucos, a população daquela comunidade carente e oprimida iria verificar sua capacidade de construir uma sociedade melhor. O sentido político daquelas mudanças estava sendo ressaltado nos cursos de formação política ministrados na sede da ONG. (…) Faltava conquistar uma maior adesão da base desarmada, da população do morro, principalmente dos jovens. A maioria ainda vê a Casa apenas como um local onde é possível receber alguma qualificação. Havia pouco interesse pelas aulas de formação política (…)”.
Contudo, o assalto a um supermercado “protegido” e as condições em que o açougueiro foi executado intrigaram o jornalista Fontoura: “Duas semanas antes havia lido uma matéria dizendo que aquela área tinha virado um paraíso”. De fato, “com a eliminação dos assaltos e roubos, a vida lá embaixo ficara mais tranqüila (…). Carros da PM continuavam a fazer rondas pelo bairro, mas os homens de Marra tinham ordem para não iniciar qualquer tiroteio, nem mesmo quando o polícia desse bobeira, estivesse distraído, quase pedindo para levar bala”.
Como seria de esperar, foi apenas uma trégua: “Depois de cinco meses de paz, a guerra pelo controle do tráfico de drogas voltou a assustar moradores e vizinhos do morro do Mirandão, na Zona de Leopoldina. Pelo menos seis pessoas, entre elas cinco traficantes, morreram durante uma batalha que começou por volta das 22h de ontem e que só terminou na madrugada de hoje. (…) De acordo com o delegado Jairo Albuquerque, a invasão foi feita por traficantes da favela do Valão, também da Leopoldina.”
Era o fim: “Em menos de dois meses, os delegados conseguiram traçar um bom perfil das atividades da CR e das suas surpreendentes ligações com o tráfico no Mirandão”. O final feliz era apenas provisório, porque tudo é provisório, inclusive as revoluções redentoras e as glórias jornalísticas, como Fontoura verificou: “sua melhor matéria em anos de profissão” estava destinada à efemeridade desde o primeiro dia, desaparecendo no buraco negro das coleções de arquivo.
WILSON MARTINS
Jornalista lança livro em que imagina aliança entre uma organização de esquerda e traficantes
O Mirandão, favela imaginária criada por Fernando Molica na Leopoldina, é uma espécie de San Vicente de Caguán fincada no coração do Rio. Ela junta revolucionários românticos e traficantes em busca da utopia da revolução socialista. Também liga o passado ao presente de sua geração, que viveu de perto o Movimento Estudantil (ME) e o universo das organizações clandestinas nos anos 70 e 80. Essa geração que hoje retrata na trincheira das redações a realidade de comunidades pobres – um alvo nunca atingido por essa esquerda um tanto festiva (e como tinha festa naquela época) -, dominadas pelo poder de fogo de bandidos em grupos – alguns até inspirados nas organizações clandestinas do passado. Eles chegam ao cúmulo de adotar o vermelho socialista como alcunha de seus comandos.
Notícias do Mirandão é daqueles livros que te pegam nas primeiras linhas e deixam grudado até o final. Os personagens são identificados de imediato, e o texto leve e inspirado de Molica transforma a própria leitura num prazer à parte – enquanto o conteúdo leva à reflexão. A idéia do autor parte, em suas próprias palavras, de “uma especulação, uma ficção jornalística: o que poderia ocorrer caso uma organização clandestina de esquerda decidisse partir para um projeto de revolução socialista. Mais: o que poderia ocorrer se estes caras decidissem se aliar a traficantes de drogas? Afinal, os traficantes têm armas e, bem ou mal, representam uma parcela da população. Maluquice? Quem poderia prever que, na Colômbia, os guerrilheiros iriam se articular com produtores de cocaína?”.
Parece uma reportagem? Parece, mas tem o lado romance, a teia de relações que normalmente fica de fora do relato frio dos jornais. “O livro também procura ver como seria o encontro de pessoas com histórias e projetos de vida tão diferentes: de um lado, estudantes ligados à organização; de outro, traficantes. Entre eles, fazendo uma ponte, lideranças comunitárias, moradoras do Mirandão”, defende o autor.
Jornalista, 41 anos, formado pela Escola da Comunicação (Eco) da UFRJ, ex-simpatizante dos olhos azuis de uma loura da Unidade (pra quem não sabe, o braço do antigo Partidão nas universidades), botafoguense (sua única faceta insuportável), Fernando Molica é repórter com passagens pelo Estadão, Folha de S. Paulo e O Globo. Hoje, brilha com reportagens especiais na telinha do Fantástico. Em Notícias do Mirandão, no caso de alguém tomar o enredo ao pé da letra, vale a máxima de que toda semelhança é mera coincidência. Bom jornalista e debochado como ele só, explica: “O livro é uma ficção, se esta guerrilha estivesse sendo mesmo implementada, eu teria feito uma reportagem, não um romance.”
Ah, a bem da verdade: Molica, como todo bom reformista, tinha horror à luta armada nos tempos de faculdade.
SÉRGIO COSTA
Autor imagina união da esquerda com traficantes
Transformar jornalismo em ficção ou fazer da ficção o melhor do jornalismo. Qualquer que tenha sido o objetivo do jornalista carioca Fernando Molica em seu livro de estréia, Notícias do Mirandão (Record, 222 págs., R$ 25), ele foi bem-sucedido. Molica conta a história mirabolante, mas absolutamente possível, de um grupo de marxistas que, desencantado com a democracia institucional, alia-se a um bando de traficantes para dar início a uma revolução socialista num morro carioca, o tal Mirandão. A idéia da aliança – que povoa o imaginário de esquerdistas e bandidos desde o contato entre perseguidos políticos e o submundo no presídio de Ilha Grande – ganha uma dimensão tão real que chega a assumir ares de reportagem.
As regras e dogmas da Conexão Revolucionária, o grupo liderado por Pillar Buccarini, assessor de um parlamentar de esquerda, resgata táticas dos jovens brasileiros que sonharam derrubar a ditadura militar dando meia dúzia de tiros nas ruas.
É literalmente explosivo o acordo desta turma com o traficante Charles Marra. No bom estilo da sensacional realidade carioca, o comandante Marra manda derreter dois companheiros desastrados num “microondas”, na verdade um crematório formado por uma pilha de pneus.
Ao forçar o casamento do crime com a insurreição, Molica gera uma cruel mas divertida crônica de costumes da Cidade Maravilhosa e seus territórios sem lei. O inconformismo contagiante dos anti heróis marxistas, o ritmo ágil que alterna, em curtos e frenéticos capítulos, cenas do morro desgovernado com o asfalto alienado e a imaginação sem censura do autor fazem de Notícias do Mirandão uma leitura excitante. Quem conhece o Rio de Janeiro e as complexas relações da favela com as ruas vai transitar com apreensão e romantismo. Para quem não conhece, Notícias do Mirandão pode bem ser classificado como uma reportagem do futuro.
AZIZ FILHO
Romance instala revolução socialista armada em favela carioca
O Brasil está em pé de guerra. Em combate: um exército de famintos. Uma fome “titânica”: de comida, de cultura, de perspectivas. O jornalista Fernando Molica, repórter especial da TV Globo, remonta seu olhar sobre esse conflito não-declarado para compor seu primeiro romance, Notícias do Mirandão. Na trama, universitários de esquerda e líderes comunitários instalam-se numa favela e fazem aliança com traficantes para disseminar princípios de uma revolução socialista na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Daí surge a indagação que questiona o preceito maquiavélico: os fins justificam os meios? Ou a dúvida do próprio personagem: “O mal pode ser usado para combater um mal maior?”. O romance não lhe dá respostas, mas oferece mais dúvidas.
Molica não tem certezas, traça apenas possibilidades calcadas no estopim do caos brasileiro. Ao contrário de suas matérias, não espera pela comprovação dos fatos;
embarca na loucura nacional para dar vida a sua história.
No jornalismo é diferente. Mesmo assim, nao se assustaria se hora e outra sua história aparecesse estampada em manchetes de jornais. “A sociedade está no seu limite, a violência e a miséria assustam cada dia mais”, observa, em entrevista por telefone. Recentemente, Molica esteve em Vitória para a apuração das denúncias do caso Marval para o Fantástico. A seguir, confira a entrevista com o autor.
Como surgiu ‘Notícias do Mirandão’? De algum fato jornalístico específico?
Quando era repórter da sucursal Rio da Folha de S. Paulo, entrevistei um padre versado em teologia da libertação, e muito ligado a movimentos populares, que me confessou assustado a existência de um grupo de pensamento guerrilheiro. Logo, fiquei interessado pelo assunto. A princípio, para realizar uma matéria, mas depois percebi que era algo muito inconsistente. Então, pensei num romance.
Você acha que essa ficção pode um dia se tornar realidade e, qualquer dia, estourar uma guerrilha, como existe na Colômbia?
Em 1998, estive na Colômbia para uma matéria do Fantástico e constatei que lá a coisa é bem diferente, pois a esquerda foi dizimada. Lá não se tem partidos de esquerda, não há movimentos sociais, como o MST. O diálogo é praticamente inexistente. Nessa situação tão sufocante, a guerrilha foi o caminho. Mas, aqui, mesmo com a democracia, o “miserê” é muito grande. Contudo, uma aliança com trafIcantes é algo mais complicado. Até porque a lógica deles é muito individualista, parecida com a da média geral da população, que é baseada na política do “quero me dar bem”.
Essa consciência política angustiada que é abordada no livro é algo remoto dentro dessa sociedade carente? Você acha que ela é toda calcada em reclamações do senso comum ou existem pontos fortes onde há uma discussão madura?
O discurso da cidadania é ainda muito vago para a população comum. Ela tem consciência das suas deficiências, pois sente na pele a miséria.
Mas daí a pensar sobre essa realidade é outra coisa. O que há é um sentimento grande de revolta. Basta olhar os noticiários. No Rio, por exemplo, há incêndio de ônibus toda semana. Existe uma noção de enfrentamento: nós estamos do lado de cá e o Estado nos reprime. Agora, até que ponto isso traduz um pensamento ou uma visão política, eu não sei.
O Lula está hoje com um discurso menos agressivo, mais palatável ao gosto geral. Você acha que as pessoas têm medo de mudanças? Elas têm medo da radicalizacão?
Todo mundo tem medo de mudanças. De modo geral, as pessoas dão muito valor ao pouco que elas têm, o que é compreensível pelo sacrifício de se conseguir alguma coisa no Brasil. Lembro que, em 1989, na eleição do Lula X Collor, rolou um certo terrorismo. Houve o boato de que se o candidato do PT fosse eleito as pessoas teriam que dividir tudo. Coisa do tipo: caso uma família tivesse duas casas, iria perder uma para projetos sociais do Governo. O Verissimo diz que a reforma agrária só não sai porque todo mundo é a favor, só que esse a favor é desde que não mexa no seu pedaço de terra. A gente quer um projeto social, mas, ao mesmo tempo, quem tem mais não quer perder nada.
E o que você acha dessas pessoas que tentam mudar desesperadamente esse mundo cruel?
Acho bonito. No livro, tentei impregnar os personagens com características bem humanas. O Célio, por exemplo, é bem simpático. Ele é aquele universitário da classe média, sensível com as questões sociais, mas se vê confuso com a revolução armada. Sem pessoas assim, a vida seria bem mais difícil para algumas pessoas.
Há um jornalista na trama. Ele não consegue perceber o que está acontecendo de forma real, no morro. Você se coloca um pouco na pele dele?
Claro que o Fontoura (o jornalista) tem características minhas. Ele é botafoguense como eu. Contudo, fui esperto. Espalhei-me um pouco em cada personagem (risos). Mas acho legal quebrar essa lógica do jornalista-herói, esperto e incorruptível. O Fontoura, ao contrário, é individualista, quer faturar o prêmio da área e ser consagrado. Ele é peça de um mercado. Isso coloca, hoje, o jornalista como menos ideológico e mais competitivo.
O fato da alianca com o tráfico de drogas para implementar um movimento social e político numa favela retrata uma das dúvidas do seu personagem: “O mal pode ser usado para combater um mal maior?”. Com esse questionamento você pretende provocar certo incômodo nos leitores?
O livro faz várias perguntas. Dúvidas, aliás, que também tenho. Todo o processo da esquerda passou por isso. Desde as mais absurdas, como as do governo de Stalin. O PC do B, por exemplo, tem uma lógica stalinista muito forte. Mas, de uns 20 anos para cá, a esquerda teve que reformular seus conceitos, em função da democracia. Admitir que outros setores também têm direito à voz é uma coisa muito complicada para a esquerda mais ortodoxa. Ainda há gente que não vê outra saída, se não a revolução, para se ter igualdade depois. A Internet está cheia se sites que abordam pensamentos como esse.
Você já fez parte de algum movimento social ou estudantil?
Quando entrei para a universidade, em 199, fazia parte do movimento cineclunista, no qual o viés político tinha a lógica do cinema. Nunca militei efetivamente numa chapa estudantil, mas estava atento ao que acontecia. Foi na época em que a UNE retornou à cena. Inclusive, participei da passeata da anistia.
Você acha que movimentos guerrilheiros, como o de Araguaia, são vistos ainda de forma mítica? As pessoas ainda estão apegadas a conceitos do passado quando falam de revolução?
Mudou muita coisa no mundo, mas muita coisa permanece estagnada ou pior. Isso pode parecer até meio idiota, mas, felizmente, há pessoas indignadas querendo mudar o gue ainda maltrata o mundo. E ótimo ver jovens com esse entusiasmo. Afinal, é muito triste ver pessoas novas conservadoras e individualistas. Quanto aos mitos, como Che Guevara e os guerrilheiros do Araguaia, ajudam, de certa forma, a impulsionar novos pensamentos e fazer com que as pessoas não olhem apenas para o seu umbigo. Hoje, o número de jovens engajados é menor do que nos anos 60 e 70, mas não acho que todo mundo esteja apático. Hoje o jovem luta por seus direitos. Organiza passeatas para diminuir a passagem de ônibus ou pela qualidade de ensino. Antes, a visão era ironicamente mais global, fazia-se passeata em solidariedade a Cuba.
Faltam novos mitos e heróis no mundo?
Não gosto muito de mitos. Acho que o que falta mais é perspectiva de mudança. Como me coloco no mundo para mudar esse mundo? Esses questionamentos já não pertencem mais só a porras-loucas. O povo também está perdido e indignado. O problema é que vivemos numa sociedade amedrontada. As pessoas têm medo de se manifestar, têm medo de se aproximar da favela. Afinal, a pobreza virou sinônimo de violência. Mas não dou respostas de como se deve melhorar esse mundo, no meu livro; ou que a sociedade deve partir para a guerrilha. Trata-se apenas de uma visão sobre uma possibilidade. Se algum dia ela se tornar real? Não sei o que vai dar. O que sei é que o país está uma b… e que é muito difícil viver aqui para quem tem o mínimo de sensibilidade.
THAIZ SABBAGH
Corrupção política e poder do tráfico servem como pano de fundo para livro do jornalista Fernando Molica
O que poderia resultar de uma associação que envolve um assessor parlamentar de esquerda, um universitário de classe média, um repórter policial, um líder comunitário e um traficante de drogas? Pelo menos na ficção, a convivência entre indivíduos de interesses tão contraditórios é possível e consegue ganhar espaço no coração de uma violenta favela carioca.
Notícias do Mirandão, primeiro livro do jornalista Fernando Molica, chega às livrarias editado pela Record e descreve as agruras de um improvável movimento revolucionário disposto a tomar na marra as rédeas da história brasileira.
A idéia central do romance, cujo primeiro lampejo ocorreu a Molica há oito anos, gira em torno do surgimento da Conexão Revolucionária. Liderada por um ex-candidato a vereador e a deputado cansado de ser derrotado nas urnas, a CR emerge do descontentamento de um grupo militante de esquerda que já não acredita na chegada ao poder pelos caminhos previstos na lei. Para esse grupo, é hora de pôr a Constituição e o Código Penal na gaveta e partir para a briga, literalmente.
“O mal pode ser usado para combater um mal maior?” A questão surge num momento de tensão do livro e quem acompanha a história não tem dúvida de que a resposta da Conexão Revolucionária é um resoluto sim. Encorajados pela impunidade que corre solta entre os criminosos de colarinho branco, os militantes da CR não hesitam em propor uma inusitada parceria aos “companheiros” do tráfico para conquistar a redenção dos párias sociais através da luta armada. O fictício Morro do Mirandão logo se transforma no quartel-general da organização, que se esconde por trás das ações sociais de uma ONG-fachada para arquitetar a tão prometida revolução dos excluídos.
Ancorado na realidade – Tão verossímil quanto um telejornal, o livro passeia por casos de tiroteio entre quadrilhas, tortura, homicídio e corrupção policial. “É tudo mentira, mas com âncoras na realidade”, enfatiza o autor. Talvez não por acaso a história seja alinhavada por um repórter, personagem através do qual a banalização da violência se apresenta ao leitor de forma ora engraçada, ora constrangedora. Notícias do Mirandão também cede espaço a um verborrágico discurso antiburguesia que pode desapontar quem espera por um desfecho mirabolante. Apesar de rascunhar um gran-finale, Fernando Molica acaba optando pelo mais razoável. “Queria tornar a história verossímil”, justifica o autor.
DANIELA CASTRO
De uma idéia nascida há oito anos durante uma entrevista, surgiu “Notícias do Mirandão”, primeiro livro do jornalista Fernando Molica, 41 anos, e repórter especial do “Fantástico”, da TV Globo, desde 1996. A trama do livro é resultado das reportagens realizadas nos 21 anos de profissão, passados em O Globo e sucursais da Folha e Estadão. “Fiz para a Folha uma entrevista com um padre, um sujeito ligado à chamada igreja progressista, à Teologia da Libertação. Depois da entrevista, ele, conversando, me disse, meio assustado que havia gente pensando em retomar o projeto de uma guerrilha, achando viável fazer uma revolução socialista no Brasil. Fiquei com isto na cabeça, na hora achei que daria um bom romance. Um tempo depois, tive a idéia de unir os tais guerrilheiros a traficantes de drogas. Este acabou sendo o ponto de partida do livro.
Achei que seria uma história que me permitiria abordar aspectos que considero interessantes da realidade brasileira e, em particular, do jornalismo.”
O livro, tecnicamente, é um romance, conta Molica. Mas ele mesmo prefere defini-lo como.’ficção jornalística’: ou seja, é uma ficção mas com muitas raízes no jornalismo. A maior preocupação do autor era fazer uma história factível, realista. Uma história que não aconteceu, mas que poderia ter acontecido. Há cinco anos, Molica escreveu os três primeiros capítulos. Depois deu uma parada e só retomou o projeto em 2002, escrevendo em cinco meses metade do livro. Trabalhando à tarde e à noite, escrevia geralmente pela manhã, entre uma e duas horas por dia. “Isto, claro, quando dava”. Nos intervalos, e como treinamento anual, compôs sambas-enredo para disputar o hino anual dos desfiles do Bloco Imprensa que Eu Gamo. Em fevereiro de 2001 recomeçou e colocou o ponto final em junho. Procurou a jornalista Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record e só dois meses depois, teve o “aprovado”, o que significou um sofrimento – “o tempo no mercado editorial é bem diferente daquele com o qual estamos acostumados no jornalismo”.
Já com o livro aprovado pela editora, Molica ainda mexeu muito no texto, acrescentou outras passagens e mais personagens. “De um jeito ou de outro, vários personagens são inspirados em aspectos da vida de muitas pessoas. O Célio, o guerrilheiro, tem características de muita gente, até mesmo de ex-guerrilheiros. Ou, melhor: do que eu imagino que seria um guerrilheiro com aquela formação, um cara suburbano, católico. O Fontoura, nosso colega jornalista, também é uma mistura de gente que conhecia nas ruas, nas redações – é botafoguense como eu… – e de gente que nunca existiu. A angústia profissional dele é muito comum entre muitos de nós, jornalistas, até a crise matrimonial, eu acho… O tema guerrilha urbana é muito marcante para a minha geração, que passou a faculdade lendo livros do Gabeira e do Sirkis. Entrei para a faculdade em 1979, o ano da Anistia, da volta dos exilados. Por isso, tentei fazer um balanço disto tudo diante de uma nova realidade do país, um Brasil democrático mas que conserva uma estrutura social ainda muito arcaica e que se vê acuado – pela violência e pela falta de perspectiva de boa parte da população. E, claro, achei também que o tema me permitiria desenvolver personagens, falar de seus desejos, de suas emoções – é difícil abordar esses pontos no jornalismo. Nosso compromisso principal é com a objetividade uma objetividade que, muitas vezes, embaça questões importantes.”
Em seu romance de estréia, o jornalista Fernando Molica mistura o tráfico de drogas à revolução socialista para construir um dos livros mais interessantes do ano
Um grupo de universitários de esquerda se instala numa favela carioca, faz aliança com traficantes de drogas e lança os princípio de uma grand erevolução socialista na Zona Norte do Rio de Janeiro. O entrecho é somente a sinopse do romance de estréia do jornalista Fernando Molica, “Notícias do Mirandão”, lançado há pouco pela editora Record.
Mas diante do absurdo de tantas notícias que o próprio Molica já cobriu ao longo de sua carreira como repórter, bem que poderia ser o lead (abertura de texto jornalístico) de uma de suas reportagens.
Como se disse, é apenas uma fiçõa, um thiller ágil e bem humorado. O tal grupo de unviersitários aspriantes a guerrlheiros, a hipotética Conexão Revolucionária (CR) é formada por jovens dissedentes de um partido de opisição (o Partido Operario Socialista) que, insatisfeitos com as limitações do processo eleitoral, se dispõem a partir para a luta armada, só que dessa vez, sem reacair nos “erros estratégicos” dos militantes do Araguaia: “Temos o que não se tinha em 70: povo desencantado, de saco cheio, lideranças autenticamente populares – a Revolução, agora, vai partir de Irajá, não de Ipanema”, bradam os membros da CR.
O levante tem como ideal, portanto, unir a vertente revolucionária pós-marxista com a eficiência dos grupos armados ligados ao tráfico de drogas. “Quem sabe tudo não se resolve em cinco anos, quem sabe em cinco meses?… As armas o povo já tem. Falta a consciência deste poder. Isto, aos poucos, se conquista”, avalia um dos líderes da CR. Para levar a idéia a cabo, o grupo entra em contato com o risível Herculano Maromba, um ex-militante de esquerda, líder comunitário do Morro do Mirandão e integrante da ONG Mitanambu (em africano, “casa de amigos”), que se torna o escolhido para fazer a intermediação entre os novos revolucionários e os traficantes.
A partir desse pacto fictício, Molica vai descortinando um vertiginoso painel humano da vida carioca com sua prosa fluente e enxuta: evangélicos, policiais, traficantes, repórteres, rappers, políticos e estagiárias. “Quase todos lunáticos, quase todos vigaristas”, lembra o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos na apresentação do livro. Sem qualquer tipo de ranço eminentemente ideológico através dessas personagens o romance nos coloca no meio de uma tragicômica reflexão sobre o caos sociopolítico em que se transformou o Rio de Janeiro – e, por tabela o Brasil, essa nação melancolicamente desesperançada e cínica.
Fontoura, o desencantado repórter sobre o qual é conduzida parte da trama, é um dos melhores achados de Molica no que diz respeito aos tipos humanos engendrados pelo romance.
As desventuras na lida diária da redação, os plantões, as gafes, as visitas ao morro, a vontade recorrente de jogar tudo para o alto, entre outras, são situações que ilustram o humor delicioso que permeia todo o livro. Em determinado momento da trama, por exemplo, diante de seu erro ao traduzir o nome da ONG “Affamés du Monde” ( em francês, “Famintos do Mundo”), ele recebe o singelo cagaço do editor: “Famosos do Mundo” deve ser o nome da zona em que a tua mãe fez a vida, animal!”
Os desenganos do próprio Herculano Maromba nos insólitos encontros da Conexão Revolucionária também rendem alguns bons . momentos para o livro.
Principalmente por conta da pouca habilidade por parte do líder comunitário em se desligar dos chavões de um pernóstico discurso de esquerda. Vício que lhe coloca em algumas situações, no mínimo, constrangedoras. Numa delas, por exemplo, ele leva um tremendo esporro de um marceneiro em uma assembléia da associação de moradores: “As suas idéias são até boas, mas, porra, Herculano, pára de chamar minha mulher de companheira, caceta!”.
Como já citou o escritor Flávio Carneiro numa resenha para o Jornal do Brasil, o romance de Molica pode não ser bem um Prêmio Esso de Ficção É verdade. Mas é bem escrito, com algumas passagens muito divertidas, e traz a reboque de seu humor (no melhor estilo rir para não chorar) um incômodo veio crítico – sobre os destinos do País – que fica reverberando um bom tempo na cabeça de seus leitores. Não deixa de ser um mérito. Especialmente para um romance de estréia.
FELIPE ARAÚJO
No rastro do sucesso de Cidade de Deus, editoras apostam em obras que abordam temática da violência e revelam o cotidiano das favelas cariocas
Morros apinhados de barracões e gente anônima há muito tempo fazem parte da paisagem carioca. Ultimamente, esse espaço, que consegue ser, ao mesmo tempo, fonte de inspiração de artistas e redutos de miséria e crime, anda freqüentando as prateleiras das livrarias e o imaginário de escritores. Só a Editora Record lançou nos últimos quatro meses dois romances que enfocam o cotidiano de quem mora nas favelas do Rio de Janeiro, com suas dificuldades e seus encantos. Notícias do Mirandão, de Femando Molica, e No Coração do Comando, de Júlio Ludemir, não têm o mérito do pioneirismo na abordagem sobre o assunto, mas podem ser considerados exemplos de uma onda voltada para o enfoque da violência e suas adjacências.
Alguns fatores contribuem para essa opção editorial. Embora o tema figure sempre entre os assuntos mais discutidos na sociedade, a questão da violência e da vida nas favelas, em especial as do Rio de Janeiro ganhou ênfase após a morte trágica do jomalista Tim Lopes, da Rede Globo, executado por traficantes denunciados em suas reportagens. “Tim Lopes era um grande amigo e foi no lançamento de meu livro em abril. É uma triste coincidência”, lembra Femando Moiica, que também é repórter do Fantastico. “O público está interessado neste universo”, analisa o escritor Zuenir Ventura, autor de Cidade Partida, !ivro lançado em 1994 que reconta a chacina de 23 pessoas em Vigário Geral, subúrbio do Rio, ocorrida na madrugada do dia 30 de agosto de 1993.
O lançamento do filme Cidade de Deus, de Femando Meirelles, baseado no livro homônimo de Paulo Lins, também pode servir de impulso para futuros sucessos editoriais com esse mote. Pelo menos é o que espera a Companhia das Letras, que colocou no mercado a segunda edicão da obra de Paulo. O livro foi revisto pelo autor e ficou com 142 paginas a menos em relação à sua primeira tiragem. Já a primeira edição de No Cora cão do Comando, da Recmd, está em sua segunda reimpressão. “Depois que o som que vem do morro deixou de ser o do samba para ser o das balas de AR-15, a sociedade olhou com mais atenção para as favelas”, pondera Zuenir
Realidade
A trama desses livros tenta levar o maior grau de realidade possivel aos leitores. Paulo Lins chega a dizer que todas as centenas de personagens que desfilam em Cidade de Deus existem mesmo, e não apenas os famosos traficantes Zé Pequeno e Mané Galinha. No Coração do Comando narra uma história de amor veridica. “É claro que há recortes ficcionais para viablizar a execução da obra, mas o cerne se mantém fiei aos fatos reais”, afirma Júlio Ludemir. “Tudo o que descrevo no livro é famililar a quem já subiu um morro”, garante Femando Molica. Até o famigerado “microondas”, local usado pelos bandidos para queimar os corpos de seus inimigos, só há pouco tempo apresentado ao grande público, ganha um capítulo especial no livro do jornalista.
Os códigos vigentes nessas comunidades são descritos com riqueza de detalhes “Na favela, vigoram três ou quatro normas que não podem ser desrespeitadas”, conta Júlio Ludemir. “Tráfico de drogas e prostituição são liberados, mas assaltos e estupros não são tolerados. Crimes considerados invasivos são severamente punidos”, relata. No campo da linguagem também há adaptações em busca de uma maior fidelidade ao ambiente onde as acões ocorrem. “Apenas prestei atenção nas maneiras pelas quais as pessoas se expressam”, ensina Fernando Molica, que coloca na boca de seus personagens os vocabulários próprios de bandidos policiais e Jornalistas “Quem faz reportagens nos morros acaba tendo um contato maior com gírias, com frases que sempre mais insinuam do que dizem alguma coisa”, completa.
Combate aos preconceitos
Muitos preconceitos e estereótipos cercam as pessoas que habitam os morros cariocas. Um dos mais disseminados é o que prega uma generalização negativa dos moradores desses locais, segundo a qual todo favelado é criminoso. Os autores dos livros recentemente lançados sobre esta parcela da sociedade garantem que tiveram a preocupação de não repassar visões preconcebidas. “O Brasil ficou muito confuso. Não dá mais para brincar de polícia e bandido”, acredita Fernando Molica. “O que busquei foi me aproximar o máximo que pude da realidade para evitar maniqueísmos”, alega. “Podemos nos deparar com histórias de amor onde só esperamos encontrar barbarismos”, diz Júlio Ludemir.
Para Zuenir Ventura, o favelado é estigmatizado porque a imprensa ajudou a criar estereótipos a seu respeito: “Eu só vim conhecer uma favela depois de velho, quando fui escrever Cidade Partida. Eu cheguei a Vigário Geral carregando todos os preconceitos que a sociedade tem”, reconhece. “Depois de conviver com aquela comunidade, percebi que as pessoas que moravam ali não queriam vingança pela chacina que tinha ocorrido e sim lutavam por justiça e paz”, recorda.
“O problema é que muita gente fala mal da favela sem nunca ter entrado em uma”, acusa Júlio Ludemir “Há muitas histórias de amizade nos bairros pobres. As pessoas nascem e crescem naquele lugar. Antes de o jovem encarar um conhecido como traficante, ele o vê como seu vizinho, amigo de infância, mesmo que não participe de esquemas criminosos”, pontua o autor de No Coração do Comando.
Polícia
A relação entre polícia e crime organizado não é desprezada nessas obras. Em Cidade de Deus, os personagens Touro e Cabeção personificam a corrupção policial, sempre à caça de bandidos que os favoreçam financeiramente. Acordos entre crime organizado e o poder legal também podem ser vistos em Notídas do Mirandão. O livro Cidade Partida reconstitui o acerto de contas entre grupos policiais e bandidagem, que resultou na chacina de Vigário Geral. Zuenir Ventura relembra que, na época do lançamento de seu trabalho, houve quem o criticasse por ter sido muito duro com a polícia carioca. “De criminosos, esperamos qualquer coisa. Do poder policial, esperamos o cumprimento da lei e não atos ilícitos”, responde o autor.
Fernando Molica vê nos conchavos entre crime e justiça um dos pilares que ainda sustentam os traficantes da cidade. “Estes bandidos têm poder muito localizado. Eles são presos em seus próprios redutos. Com algumas exceções, não conseguem sequer fugir”, constata o repórter “Quando a polícia resolve agir como tal, ela consegue prender os criminosos. O problema é que o aparelho policial do Rio de Janeiro está muito corrompido”, observa Júlio Ludemir “A polícia não peca apenas por omissão, mas também por colaboração”, emenda Fernando Molica. “O poder dos traficantes é mais anárquico que organizado”, avalia Zuenir Tal fragilidade é outro ponto que pode ser pinçado nas narrativas sobre o assunto. Os traficantes de Cidade de Deus e Notícias do Mirandão beiram à ingenuidade, encoberta pela capa de desbragada violência.
Histórias diferentes sobre o mesmo tema
Cidade de Deus, No Coração do Comando e Notícias do Mirandão falam do tráfico de drogas e revelam que a favela não se resume a um reduto de bandidos. Alguns dos personagens foram baseados em pessoas que realmente existiram. Todos os três tentam imprimir o máximo de veracidade ao enredo. No entanto, as semelhanças parampor aí.
Notícias do Mirandão conta a trajetória de um grupo guerrilheiro de esquerda que se refugia em uma favela para, de lá, dar início à sua revolução socialista. Nesta empreitada, são envolvidos evangélicos, traficantes, policiais, jornalistas e politicos. Acerto de contas e uma seqüência de ações rápidas dão ritmo ao livro, que, como o próprio autor avisa, não quer ser um trabalho sociológico.
Já Cidade de Deus prefere relatar a o cotidiano de um subúrbio esquecido do Rio de Janeiro, terreno fértil para o surgimento de guerras pelo controle do tráfico, que toma dimensões sociais e humanas muito maiores que os próprios personagens.
No Coração do Comando é baseado em uma história real que agitou as cúpulas do Comando Vermelho e do Terceiro Comando, as duas maiores organizações criminosas do Rio de Janeiro. Como num Romeu e Julieta moderno, um casal se apaixona dentro de uma penitenciária, mas tem o romance proibido por integrarem facções rivais. Com tratamentos ficcionais, o autor Júlio Ludernir percorre as dificuldades e as pequenas vitórias que os namorados conseguem sobre os bandidos de hierarquia mais elevada. As obras demonstram que o amor, a ideologia e indagações existenciais também podem ser encontradas no cotidiano das favelas e até no seio do crime.
Híbrido de ficção e realidade
Cidade Partida, No Coração do Comando e Notícias do Mirandão romances escritos por jornalistas e poderiam ser enquadrados em um gênero que perdeu fôlego nas décadas de 80 e 90: o romance-reportagem. O livro de Zuenir Ventura, Cidade Partida, chegou a ganhar o Prêmio Jabuti de melhor reportagem. Segundo o pesquisador Rildo Cosson, autor de livro Romance-reportagem: o Gênero (Ed. da UnB) esse estilo literário conheceu o seu auge na década de 70, durante a ditadura militar, quando o número de títulos e a vendagem eram bastante expressivos – um exemplo de grande
sucesso de público é o Caso Lou, de Carlos Heitor Cony.
O autor mais conhecido do gênero Brasil é José Louzeiro, autor de, entre outros, Lúcio Flávio – Passageiro da Agonia e Aracely, Meu Amor, que preferia marcar suas obras com denúncias sociais. Outros se restringem a fatos isolados. É o caso de Percival de Souza, que escreveu O Crime da Rua Cuba, sobre um assassinato que mobilizou a sociedade paulistana. Tragédias também podem servir de ponto de partida. Femando Pinto relatou o acidente radiativo em Goiânia com A Menina que Comeu Césio.
Um dos maiores clássicos da literatura brasileira também é trabalho de repórter: Os Sertões, sobre a Guerra de Canudos. Seu autor, Euclides da Cunha, escreveu a obra a partir das suas anotações como enviado do jomal O Estado de S. Paulo ao campo de batalha para cobrir o conflito entre os seguidores de Antonio Conselheiro e as forças do governo.
ROGÉRIO BORGES
Repórter da Globo imagina trama em que o narcotráfico promove a revolução popular
Um acaso infeliz fez com que o primeiro romance de Fernando Molica, repórter especial do Fantástico, fosse lançado justamente no momento em que a mídia – impulsionada pelo caso Tim Lopes – promove, contra os chefes do narcotráfico carioca, uma campanha pesadíssima. Mais do que nunca, cobram-se providências do Estado e da polícia. Enquanto se noticia a existência de governos paralelos e ditatoriais nos morros do Rio, o poder oficial continua negando às denúncias qualquer sombra de veracidade. Em Notícias do Mirandão, Molica desenvolve, baseado em duas décadas de experiência jornalística, um enredo em que explora as possibilidades caóticas da violência brasileira. A trama é puramente ficcional, mas a descrição das hierarquias e maquinações do crime organizado e de suas alianças e rivalidades com gangues inimigas, policiais e líderes comunitários é bastante convincente. O escritor estreante conta o caso de um grupo revolucionário esquerdista e temporão que, a fim de doutrinar o povo e incitá-Io à luta armada, une-se ao tráfico de drogas e infiltra-se na favela como se fosse uma ONG. Em entrevista ao Caderno G, Molica falou sobre a verdadeira tragédia social que inspirou o seu romance.
Caderno G – Quanto de verdade profissional há em Notícias do Mirandão?
Fernando Molica – Muito. Trabalhei 15 anos em jornal e estou na Globo há seis. Tenho a vivência do repórter que vai ao morro e conversa com bandido e a minha vivência com a própria esquerda dos anos 70. Entrei na faculdade em 79. Foi uma época mais tranqüila, mas foi o ano da anistia. Ainda tinha muita passeata e movimento estudantil. Nunca participei do movimento, nunca fui organizado, mas era muito próximo. Eram meus amigos. Mas há, também, o aspecto ficcional. De repente, pensei: vamos misturar tudo e ver no que dá. Vamos imaginar um diálogo entre esses diversos elementos.
– E de onde veio a idéia da união entre guerrilheiros ingênuos e traficantes cariocas?
– Há uns oito anos, pela Folha de S. Paulo, fui entrevistar um padre ligado à Teologia da Libertação. Ele me disse, assustado, que havia sido sondado por um grupo de esquerda interessado em reeditar a guerrilha no Brasil. Achavam que o processo democrático brasileiro daria em nada, no sentido de libertação popular, e que o único caminho seria esse. Fiquei com aquilo na cabeça. Pensei em fazer matéria, mas tudo era muito inconsistente, não tinha elementos para render uma reportagem. Essa é sempre a nossa primeira tentação. Guardei a história: talvez desse um bom romance. Comecei a especular sobre isso. Se houvesse, hoje, um grupo interessado em fazer guerrilha, com quem buscaria uma aliança? Poderiam, de repente, se aliar com uma parte do povo armado do Rio. Como seria essa conversa? Como misturar interesses coletivos e revolucionários, de mudança social, com o interesse egoísta de um traficante, o mesmo . de um dono de empresa? Como conciliar esses interesses? Eram desafios que surgiam enquanto eu escrevia o livro. Não dá para imaginar um traficante lutando pela libertação popular. Ele quer o dinheiro dele.
– E a situação na Colómbia?
– Estive na Colômbia, em 98, pelo Fantástico. Em Medellín e, depois, na área de guerrilha, em San Vicente de Caguán. Entrevistei um dos comandantes, Joaquin Gomez, no meio da selva. Lá, tem uma diferença: a aliança que as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) fizeram com o tráfico veio depois. As Farc têm mais de 30 anos. Surgiram primeiro como alternativa de luta, não para fazer alianças com o narcotráfico. Lá, existe uma situação ideológica. Aqui, é diferente. E, claro, no meu livro, tudo é delírio dos personagens.
-Mas você acredita que o avanço da miséria e da violência na periferia das cidades grandes pode provocar, mesmo que desorganizada e despolitizada, uma espécie de revolução popular no Brasil?
– Dificil. O tráfico tem uma visão muito individualista. O desejo de consumo desses caras é muito parecido com o de todos os outros brasileiros. Querem comprar um carro legal, arrumar muita mulher… É um desejo de consumo muito imediato. O prazer virá pela posse de bens. E a lógica revolucionária é outra: dividir riquezas. Mas a situação no Rio é muito complicada. Isso está ficando mais claro depois do assassinato do Tim Lopes. Algumas áreas da cidade apresentam toda uma estrutura de Estado. Tem que mostrar passaporte, negociar. E eles têm uma arrecadação muito grande por causa da venda de drogas. Uma vez, li a seguinte definição de Estado: Estado é aquilo que tem território, exército e moeda. Eles têm domínio territorial. Têm exército. Como moeda, ainda usam o real. É assustador: no Rio, calcula-se que, numa população de 6 milhões de pessoas, 800 mil estejam subjugadas a um poder paralelo. O Tim foi preso, julgado e executado. Em qualquer lugar do mundo, quem aplica a lei é o Estado. E lá, são eles. Encontraram 200 ossadas no Morro do Alemão.
– Mas a ilusão de poder desses traficantes não é maior que o poder estatal que lhes é atribuído? Eles são muito jovens…
– São. Morrem muito jovens. Ao contrário dos bicheiros. Bicheiro morria de velho. Traficante só fica mais velho quando vai preso. A luta é muito intensa – entre eles, entre eles e a polícia. Há os crimes e as traições, as associações indevidas. Tudo é tão violento que eles morrem muito cedo. E tem a ilusão de poder. A cocaína é um aditivo do poder.
– Analisando as questões abordadas no seu livro, você acha que o Brasil atingiu um ponto de onde não se pode mais voltar? Ou ainda há como se evitar uma tragédia social maior?
– Demorou-se muito para que a sociedade do asfalto vislumbrasse o que poderia ocorrer. Só se chegou a esse ponto porque houve uma omissão muito grande. A gente achava que os pobres iriam ficar quietos e conformados, morando no morro para o resto da vida, e, de vez em quando, iríamos até lá tomar uma cerveja, ouvir um samba e voltar para casa. Não foi assim, perdeu-se uma oportunidade histórica. Agora, temos que acreditar numa solução, de preferência pacífica. Sou pacifista desde pequenininho. Não sonho com o sucesso de uma eventual aliança entre uma conexão revolucionária e o meu personagem traficante Marra. Gostaria que a sociedade criasse juízo. Para que tivéssemos uma sociedade mais solidária, menos desigual. Não digo “mais igualitária”: digo “menos desigual”. Estamos no século 21 e arnda discutimos a “escola com qualidade para todos”. Isso é maluquice. A essa altura do campeonato, ainda temos que ficar pensando nisso… Enfim, não sou sociólogo nem cientista político. Sou jornalista, estreando como escritor. E só uma ficção. Gosto é das angústias pessoais dos personagens colocados diante disso tudo. Aquele sentimento de impotência que o Célio (um dos personagens que planejam a revolução) tem: “O que eu faço? Sou cristão e cúmplice de um crime”.
– Como o Célio, você teve uma criação católica e já conheceu, mesmo que indiretamente, a esquerda revolucionária. Você também já teve a mesma dúvida do seu personagem: o mal pode ser usado para combater um mal maior?
– Graças a Deus, não. Já pensei nisso, teoricamente, como jornalista e como cidadão. Na. situação da Colômbia, você é obrigado a refletir sobre isso. Quando você pensa na Palestina. Mas penso nisso mais como um susto, como um desejo de que isso não aconteça no Brasil. Na verdade, as imagens da Palestina – cidades, acampamentos, ruas – são muito parecidas com as do Rio. As favelas do Rio são muito parecidas com os campos de concentração palestinos. Na Colômbia, há cidades numa situação parecida. O Brasil, aí, tem um certo privilégio: temos partidos de esquerda legalizados e atuantes, temos um movimento social como o MST. Na Colômbia, não. Lá, chegou-se a essa radicalização porque as instituições civis não funcionaram. A esquerda foi dizimada. O movimento social de lá é armado. Aqui, ainda temos condições de fazer uma negociação social pacífica. É com isso que eu sonho. .
– Mas tudo issó não impediu que, depois da morte de Tim Lopes, o Brasil, no exterior, fosse comparado à Colômbia.
– Estatisticamente, são muito parecidos. A sensação de insegurança no Rio e em São Paulo é muito grande. Temos territórios dominados. Um amigo meu, por exemplo, desenvolvia uma oficina de jornalismo numa favela carioca. E foi proibido de continuar trabalhando. Nessas ditaduras cruéis do Rio, não há liberdade política, não há liberdade de opinião ou de imprensa. Daqui a pouco, esses caras vão proibir a população de ver televisão e noticiário, ouvir rádio, ler jornal. E não é banditismo ideológico. É banditismo puro.
LUÍS HENRIQUE PELLANDA
Fernando Molica, 42, lança seu romance hoje em Natal, em evento na Sparta Book Store
Um romance de ficção, mas que envolve lances de realidade. Esta é umas das principais características da obra “Notícias do Mirandão” (Editora Record. 224 páginas, R$ 25 reais). O livro será lançado hoje, na Livraria Sparta Book & Store, Petrópolis, às 18h. O autor, o jornalista carioca Fernando Molica, 42, está em Natal para o lançamento. Na ocasião acontecerá um debate entre o autor e jornalistas locais, entre eles Carlos Peixoto, Osair Vasconcelos, Emanoel Barreto e Alex Medeiros.
“Notícias do Mirandão é o romance de estréia de Molica e tem como pano-de-fundo o cenário fictício do Morro do Mirandão. A trama retrata a vida de universitários de esquerda que se instalam numa favela com o objetivo de se aliar a traficantes e promover uma revolução socialista no Brasil, em pleno século 21. A obra vem sendo escrita há seis anos. Carioca, formado pela UFRJ, Fernando Molica diz, em entrevista, que as maiores dificuldades que enfrentou foi a de escrever uma história que não era verdadeira.
“Nós jornalistas passamos a vida toda preocupados com a verdade e agora tive que inventar uma história, por mais que ela tivesse vínculos com a realidade”, diz o repórter, que teve a idéia de escrever a narrativa- depois de um diálogo com um padre que lhe disse ter sido procurado por grupo político extremista com planos revolucionários para o País.
“Era algo meio seu fundamento, pois era um grupo pequeno que nunca pôs em prática suas idéias, mas a história me chamou a atenção e não consegui me dissociar dela”, afirma o jornalista.
Fernando Molica dedicou a maior parte da vida ao jornalismo impresso e já trabalhou nas áreas de polícia, política e cultura, tendo se especializado em reportagens históricas sobre a ditadura. Ele já trabalhou nas sucursais cariocas dos jornais Folha de São Paulo, O Globo, O Estado de São Paulo. Desde 1996 é repórter especial da TV Globo.
Dona Neuma costumava falar que o samba de morro estava acabando, porque a boemia havia sido proibida pelos traficantes.
Depois que as quadrilhas impuseram o toque de recolher, terminaram as rodas de compositores que varavam as madrugadas, dizia a dama da Mangueira, enquanto bebia sua cerveja.
“Se você subir as vielas, vem logo um sujeito oferecer do branco ou do preto. Oferecem até para mim, que só gosto da loira gelada”, contava dona Neuma, com um humor ácido.
O mesmo tipo de humor percorre as páginas de “Noticias do Mirandão”, romance de estréia do jornalista Fernando Molica, no qual retrata a transformação operada pelo tráfico nas favelas cariocas
Molica define seu livro como uma ficção jornalística, imaginando uma tentativa de colombinização do Brasil embora em sentido contrário
Na Colômbia, guerrilheiros esquerdistas procuraram o apoio de traficantes para comprar mais armas. Aqui, na imaginária favela do Mirandão, socialistas se aproximam da quadrilha já armada, pretendendo desferir a revolução.
A ficção de Molica não carece de verossimilhança. Vale lembrar que Fernandinho Beira-Mar foi preso na Colômbia, depois de buscar abrigo com a guerrilha Marcinho VP, em sua última captura, aproveitou para exibir um palavreado com tom social, que já seduziu muita gente.
O final da trama, bem construída pelo jornalista-escritor, é conduzido por seus outros personagens
Os que querem o poder total e aqueles que já o possuem no universo da favela são confrontados pela policia, pelos bandidos rivais, pelas igrejas, politicos, enfim todos os demais elementos da chamada sociedade civil.
Sinal dos tempos, nem na ficção en ram os desprestigiados militares
Não há, no romance, ingenuidade para o sucesso de utopias. Talvez por isso Molica compense os revolucionários com o direito de perorar. Mas ao dar-lhes uma voz excessiva, a obra acaba por expor a chatice de discursos manjados, cheios de chavões, que se tornam verdadeiros obstáculos ao leitor
Vencidas essas barreiras, o autor ousa uma resposta para questões que cada dia se fazem mais essenciais: por que as quadrilhas ainda não se organizaram em cartel, por qual motivo um grupo ainda não alcançou a hegemonia sobre os demais?
Os traficantes são peças de uma engrenagem e sua expansão é controlada pelas demais. O equilíbrio do sistema só é garantido se cada setor que o compõe for convencido, ou coagido, a não botar as asas de fora.
Para confirmar que a revolução classica não tem mais chances na história, basta passear com Molica pelo Mirandão e observar os tênis importados, os eletrodomésticos e as roupas que copiam grifes famosas.
Quase ninguém quer mudar a essência da realidade, almejando no máximo ser um igual na mediocridade generalizada. Mas é nesse cenário de aparente conformismo que nasce, no romance, a transformação possivel.
No lugar do sonho coletivo, há em cada um o desejo de participar da festa, mesmo que não tenha sido convidado. Mesmo que para isso tenha que meter o pé na porta.
ANTÔNIO CARLOS DE FARIA
Rio de Janeiro – Assisti nesta semana, a um debate sobre violência e exclusão social, promovido pela Prefeitura do Rio, que juntou a antropóloga Alba Zaluar e o escritor Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”. Os dois, por vias diversas, conhecem muito bem os temas
Chamou-me a atenção uma observação feita por Alba Zaluar a propósito de uma pergunta sobre o poder paralelo do narcotráfico no Rio. Para a antropóloga, que fez pesquisas em vários conjuntos habitacionais e favelas do Rio e acompanhou, ao longo das décadas de 70 e 80, a evolução da criminalidade na cidade, o termo “poder paralelo” é impróprio.
Ao contrário das paralelas, que só se encontram no infinito, o poder constituído e o poder dos comandos do tráfico se encontrar diariamente, convivem e se auto-alimentam.
Diferentemente das máfias italiana, que se infiltram em todos os escaninhos do Estado, o varejo do tráfico no Rio não tem força institucional. Mas corrompe, da mesma forma, um braço do Estado, a polícia, exatamente o que lhe deveria dar combate.
A própria cúpula da polícia do Rio admitiu mais de uma vez o que parece óbvio para todo mundo e que o atual corregedor já expressou com todas as letras: os principais comandos e seus chefetes têm proteção policial. O esforço de uma parte da polícia para prendê-los esbarra sempre em dificuldades criadas pela banda pobre, que empresta segurança, fornece informações e achaca.
E, quando esse relacionamento clandestino lucrativo passa a oferecer uma ameaça para os esquemas montados, os traficantes protegidos são eliminados e repostos. E assim caminha a humanidade.
Quem tem o poder, Elias Maluco ou o esquema que lhe dá proteção? Para que fique mais clara a interseção entre as paralelas, dois livros podem ajudar: “Notícias do Mirandão”, de Fernando Molica, e “No Coração do Comando”, de Júlio Ludemir, ambos da editora Record.
MARCELO BERABA
Cavalo
A 30 quilômetros dali, em um conjugado no Flamengo, os exageros retóricos de Maromba se metamorfoseavam em superdoses de esperança para Célio. De cuecas, andando de um lado para outro, ele lia em voz alta os principais trechos da entrevista. — “Não sei por quanto tempo o povo sofrido das comunidades vai suportar tanta opressão. Os próximos quinhentos anos serão outros quinhentos. E não vamos precisar esperar tanto tempo… Quem sabe tudo não se resolve em cinco anos, quem sabe, em cinco meses?” Cinco meses. Cinco meses, ouviu, Drica? O cara está falando em cinco meses. É pra já. Ouve só este outro trecho: “As armas, o povo já tem. Falta a consciência deste poder. Isto, aos poucos, se conquista.” Ouviu, Drica, ouviu? Drica, Adriana, ouvira, claro. A revolução estava ali na esquina. — Desta vez vai — ele disse. — Vai, vai todo mundo se foder — ela completou. Drica desconhecia a participação de Célio — Ricardo, para ela — no processo revolucionário tecido pela CR. Mas sabia da militância do namorado no POS, uma atividade que, na sua avaliação, já extrapolava o limite do razoável — achara um absurdo ele trancar matrícula na faculdade de Economia para poder dedicar- se um pouco mais ao partido.
Cabelos pretos encaracolados que chegavam até o meio das costas, lábios finos; tinha os olhos castanhos protegidos pela armação preta dos óculos que corrigiam a miopia — seu olhar era delimitado por dois pequenos retângulos, ao mesmo tempo pesados e harmônicos. Molduras que freqüentemente realçavam olhos indignados, quase acusadores. “Cara, você não pode abandonar os estudos. Até pra que você possa ter mais embasamento pra defender suas propostas. É contraditório: você defende escola para todos e abandona um curso universitário em faculdade pública. Não faz sentido.”
Estudante de Arquitetura, 19 anos, conhecera Célio havia seis meses, durante uma campanha para a eleição de delegados ao congresso da União Nacional dos Estudantes. Ele entrara em sua sala para fazer campanha — ela aproveitara o tempo da falação para fazer algumas anotações, não estava muito interessada em política estudantil. Horas depois o encontrara em um dos bares do campus, bebendo com um colega de turma.
Na conversa, acabaram descobrindo uma série de diferenças na maneira de encarar o mundo. Ela o achou radical; ele a classificou de uma dessas tijucanas classe média que se utilizam de um arremedo de crítica social para justificar o próprio imobilismo. Aquela velha história: o país é uma merda mesmo, isto não muda. Claro, temos que tentar construir uma sociedade melhor, mas não podemos nos descuidar de nossas carreiras. A arquitetura tem uma função social importante.
Célio não tirou os olhos dos seios de Adriana, pode me chamar de Drica. Discordava de quase tudo o que ela dizia, mas op- tou por investir nos pontos em comum — até porque a arquitetura tem mesmo uma função social, e, claro, aquela orelhinha furada deveria ser uma delícia. Drica também apostou no que os unia. Acabaram namorando, o que não impedia que as divergências aflorassem aqui e ali.
“Você não deixa de ser cética, né? Está claro, tudo muito claro. As condições, hoje, são muito diferentes. Temos o que não se tinha em 70: povo desencantado, de saco cheio, lideranças autenticamente populares — a Revolução, agora, vai partir de Irajá, não de Ipanema. E quem está falando isto não sou eu, é um cara da base, nascido na favela. O povo é que vai ser o protagonista. E, fundamental, teremos — teremos, não, eles terão — armas, muitas armas. Armas pra caralho. AR-15, Sig, AK-47, pistolas, granadas, bazucas. Bazucas, Drica! Drica…”
Drica dormira. Pegara no sono entre Irajá e o AK-47. Célio ficaria acordado por mais algumas horas. Não dava para dormir com a cabeça assim, tão cheia de sonhos, ainda mais agora, depois de ler a entrevista daquele que, segundo a companheira Joana, poderia vir a ser o elemento-chave de todo o processo. O cara era realmente bom, levantava questões corretas, era corajoso — e, fundamental, tinha esperança.
A ansiedade de Célio transbordava, parecia não caber no cérebro, nem mesmo em todo o seu corpo. Sentia-se uma espécie de cavalo de terreiro de umbanda, aquele que recebe a entidade, que empresta seu corpo a um espírito que precisa dele para manifestar- se. Célio era cavalo de uma causa ainda mais nobre, era como se recebesse espíritos de muita gente, espíritos que vagavam desde o início da história da humanidade, gente que, em vida, se comprometera com causas libertárias e que acabara condenada, torturada, morta.
Sentia-se também incorporado por aqueles que, embora não tivessem lutado, haviam sofrido, passado fome; tinham sido humilhados, espezinhados. Cavalo também de gente viva, que se arrastava pelo mundo — sem-terra, sem-casa, sem-comida, semescola, sem-hospital, sem-dignidade, sem-esperança. Havia uma dívida a ser paga, e ele, Ricardo, na pele de Célio, ajudaria nesse trabalho. Célio é um cavalo, um personagem que tem seu corpo, seu rosto, sua voz e, mesmo, suas idéias. Um personagem real, necessário para viabilizar aquela mudança. Era preciso que Célio vencesse para que Ricardo pudesse enfim viver. Viver de uma maneira digna, honrada, sem sentir culpa por desfrutar de direitos que, na prática, eram privilégios em uma sociedade tão desigual. Culpa por comer todos os dias, por estudar, por conseguir algum dinheiro como tradutor, por ter acesso a livros e a filmes, por ter prazer, por namorar Drica.
Sentia-se mal ao entrar em um restaurante e procurar uma mesa que não estivesse próxima à calçada, uma tentativa de livrar- se dos meninos que se enfiavam por cima da cerca para pedir um pouco da comida que parecia sobrar nas travessas. “O Brasil é tão fodido que até quem mora no Engenho de Dentro e tem grana para comer galeto no Méier é um privilegiado”, dizia. Um amigo da faculdade de História já o apelidara de “Chiquinho”, referência aos integrantes da Ordem Franciscana, pregadores da fraternidade, da pobreza, da humildade. De uma certa forma, via-se como Francisco de Assis: abria mão do conforto, de sua segurança; despia-se de seu nome, de sua identidade, para lutar por um mundo melhor.
Volta e meia lembrava-se do apelido, da confusa relação que estabelecera com a tradição católica da família. Das discussões que travara ao longo de sua adolescência: devemos dar esmolas? Será que o gesto, abençoado, não contribui apenas para manter into- cadas a exploração e a dependência? Mais ainda: devemos ser fiéis apenas para garantir graças terrenas e um futuro lugar no céu? Isto não é meio fisiológico? Deus nos deu livre-arbítrio apenas para abrirmos mão desta capacidade e simplesmente obedecer cegamente ao papa? E a noção de pecado? Pecar é trepar fora do casamento ou ganhar dinheiro à custa do sofrimento alheio?
Tudo isto ofende a Deus, respondeu-lhe um frade dominicano, líder de um grupo de jovens que ele freqüentara por dois anos. A resposta soou hipócrita, indefinida. Ajudou na sua decisão de aproximar- se de uma organização clandestina. Talvez fosse esta a sua cruz, sua missão. Talvez assim chegasse a uma síntese entre céu e terra, a uma solução entre culpa e prazer.
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Muitos livros ostentam adesivos das editoras: “thriller do mês”, “bestseller”, “vale a pena ser lido”. Eles costumam ser aplicados em livros cujo conteúdo geralmente é para consumo de massa. A imaginação das editoras, nestes casos, não tem limites. Subtítulos como “Krimi aus Rio”, por exemplo, não necessariamente condizem com o conteúdo, pelo menos não com aquilo que se costuma esperar com a classificação do gênero do romance policial.
O livro Krieg in Mirandão (Notícias do Mirandão), do escritor brasileiro Fernando Molica, não é um romance policial no sentido estrito, embora trate de múltiplas ações criminosas. A trama fala da união entre o braço de um partido socialista (CR) com a espinha dorsal financeira (e criminosa) do tráfico em uma favela no subúrbio pobre do Rio de Janeiro. A ação guerrilheira que nasce dessa união revira a vida na favela de baixo para cima. Assim, o romance oferece vários olhares sobre a vida numa das maiores e mais agitadas metrópoles da América do Sul. Um mundo no qual a estrutura social funciona de acordo com leis diferentes – ou nem funciona mais, se aplicamos os parâmetros da nossa Europa ainda relativamente confortável. E é essa multiplicidade que faz deste romance relativamente curto (170 páginas com 10 páginas de entrevista com o autor e 4 páginas de glossário) uma verdadeira jóia.
Protagonistas do cotidiano bruto
Há uma multiplicidade de personagens cujos retratos forjam o romance:
- Célio é um jovem ativista fanático e inicialmente fervoroso das fileiras do CR. Ele quer provar ao Partido que a Revolução é o único caminho possível até uma sociedade mais justa. Mas ele tem um problema de credibilidade: ele é um branco que não foi criado em meio à fome e à pobreza. Além disso, precisa provar ao Partido que, agora, ele é um verdadeiro socialista e que não cultiva mais idéias conservadoras por causa de sua educação católica.
- Pillar é a eminência parda nas fileiras da CR. Saudosista, rememora as ações guerrilheiras fracassadas dos anos 70. Comanda as ações no morro a partir de uma prudente distância. Ele é o autor do plano para a revolução, e a ele cabem as loas e a admiração dos companheiros. Mas com o passar do tempo, ele é forçado a admitir que, na realidade, as coisas nem sempre funcionam tão bem quanto no papel.
- Maromba cresceu no Mirandão. Ele é padre numa comunidade católica na favela. A sua luta por justiça no bairro, suas opiniões socialistas disseminadas pela mídia e sua influência na favela fazem dele um dos primeiros interlocutores do movimento. Embora não faça parte de nenhum partido político, ele aceita se engajar na luta política porque gosta de estar no centro das atenções e porque espera que os planejados projetos possam beneficiar todos os moradores do Mirandão.
- Desde adolescente, Marra pertenceu a um bando de traficantes. Passou a líder do bando, controlando o tráfico no bairro com suas tropas armadas. Ele aceita se engajar na Revolução porque espera conseguir vantagens para seus negócios ilegais. Seu grupo passa a dominar o bairro, cobra pedágio do comércio da vizinhança e, em contrapartida, reduz a criminalidade. Mas quanto mais dura a revolução, mais cresce o temor de Marra de que possa perder o seu poder.
- Joana dirige os trabalhos de uma ONG no Mirandão que realiza treinamentos de qualificação profissional e projetos sociais. Como ativista do CF é também uma importante conselheira de Pillar e Célio. Sua ONG serve para camuflar as atividades da CR na comunidade. Ela é negra, nasceu em favela e, por isso, luta primordialmente pela própria sobrevivência. O Partido e a ideologia são apenas os meios que justificam os fins, e não têm tanta importância.
- Jairo é o delegado responsável pela área do Mirandão. Policial subremunerado, ele enfrenta impotente a violência cotidiana nas favelas. Mas ele também sabe muito bem dos lucros que os serviços de segurança particular tiram desta violência. Ele não entende a súbita queda no índice de criminalidade, mas como recebe elogios de seus superiores, não empreende nada para investigar o fenômeno.
- Fontoura é um jornalista medíocre, que vive sendo mandado pelo chefe para apurar casos de assassinatos e massacres. Ele escreve reportagens-padrão, com frases batidas, onde precisa apenas mudar o número de vítimas e feridos. Por isso, conhece as circunstâncias no Mirandão e desconfia dos acontecimentos na favela. Ele recebe informações de crimes que não aparecem em nenhum boletim de ocorrência e é o primeiro a desvendar os processos na favela.
Nos capítulos curtos e densos, o autor salta de um protagonista para o outro. Ele narra a vida a partir da perspectiva de cada um deles. Cada um deles tem visões e sonhos diferentes, perspectivas de vida diversas. Essa multiplicidade de personagens críveis, diferentes é responsável pela qualidade especial desse romance. Só assim o autor consegue honrar a complexa realidade social: a bancarrota de um sistema que não consegue mais controlar a violência e o medo com as instituições do Estado de direito. Da mesma forma, ele aponta quão fundo a pobreza estrutural já está enraizada no cotidiano das pessoas e como ela aprofunda a cisão da sociedade.
O sonho romântico de justiça social não fracassa por causa do Estado, e sim por causa das pessoas que se acostumaram à injustiça social existente. Essa é a conclusão trágica desse romance que tem clara conotação política. Krieg in Mirandão é um livro sofisticado, um dos melhores lançamentos do mercado editorial alemão em 2006.
Thomas Kürten (tradução: Kristina Michahelles)
Isso pode continuar assim? No romance Krieg in Mirandão (Notícias do Mirandão), de Fernando Molica, é um ativista socialista católico quem faz essa pergunta ao chefe do tráfico de uma favela – mas não para tentar convertê-lo a uma vida inimaginavelmente “ética”. A pergunta sobre o ciclo vicioso da violência destina-se a preparar o bandido para uma utopia: a parceria entre as gangues das favelas e os sonhadores rebeldes comunistas dos bairros burgueses. Em seu livro, Molica escreveu um retrato sensível, sem ilusões e incitante da loucura cotidiana. Ao descrever, de forma convincente, a vida interior de seus personagens, compreendendo a sua forma de pensar e a sua linguagem, ele aponta para os seus mal-entendidos fundamentais, os diálogos onde os interlocutores mal se escutam, seu fracasso inevitável.
Em última análise, este grandioso romance policial das favelas arrasa com toda uma utopia de esquerda e mostra ao mesmo tempo que o status quo ‚e insuportável, que os pobres precisam urgentemente de uma utopia que possa ser concretizada.
Thomas Klingenmaier (tradução: Kristina Michahelles)
A violência cotidiana nos subúrbios pobres do Rio passou a ser conhecida na Alemanha no mínimo desde o filme City of God (Cidade de Deus, 2002) de Fernando Mereilles. É do mesmo assunto que trata o autor Fernando Molica, 45 anos, em sua estréia literária Krieg in Mirandão (Notícias do Mirandão), que acaba de ser lançado em alemão. No subtítulo, a obra é classificada como “Krimi”, ou seja, romance policial. O motivo para tal pode ser o fato de existir mais de um cadáver ao longo da trama. Mas a tensão não se origina tanto da investigação dos casos de assassinato. Depois de algumas poucas páginas, o leitor já percebe que a trama só pode mesmo terminar de maneira trágica. Mesmo assim, o livro é tudo menos tedioso. Num estilo objetivo, próprio do jornalismo informativo, Molica, repórter da emissora TV Globo, dirige o olhar para o microcosmo das favelas. No caso do Mirandão, a violência, as drogas e a falta de perspectiva são ingredientes tão corriqueiros que se torna quase impossível imaginar uma vida sem eles.
É o contrário que gera o movimento. Molica solta um pequeno grupo de revolucionários de esquerda na favela. Eles querem iniciar uma revolução social. Junto com os chefes do tráfico local, os pequenos Che Guevaras conseguem resultados surpreendentes ainda antes de iniciar a revolução propriamente dita. A taxa de criminalidade cai, o esgoto fedido é canalizado, em suma, a vida no bairro se torna mais harmoniosa e pacífica. Isso, obviamente, chama outros detentores do poder, que querem ver restabelecidas as velhas condições.
Por vezes, a narrativa ganha contornos shakespeareanos onde não faltam nem mesmo um Romeu e uma Julieta. E é esta melodia amarga e irônica impregnada na obra de estréia de Molica que ecoa depois da leitura do livro. Ele conta de forma impressionante por que nada muda na pobreza estrutural neste riquíssimo país, pelo menos por que nada muda para melhor.
Uma lástima, apenas, que a tradução não manteve o título original, Notícias do Mirandão. Nachrichten aus Mirandão teria sido bem mais acertado. Afinal, o que acontece na favela continua fornecendo assunto para o noticiário local, sem ser considerado uma guerra que merecesse às primeiras páginas.
Por outro lado, cabe um elogio à editora que resolveu fazer um glossário amplo e preciso, fornecendo informações geográficas e socioculturais aos leitores que não conhecem o Rio de Janeiro. Outra providência que merece elogios é a publicação de uma entrevista com o autor, na qual Molica, entre outras coisas, expressa suas reflexões sobre a perplexidade social e a “normalidade” de uma violência terrível, baseada na favelização de bairros inteiros em sua cidade natal.
Monika Pilath (tradução: Kristina Michahelles)
Quem ou o que determina como deve ser ou como deve funcionar a literatura policial? Seriam os teóricos literários? Os críticos? Escritores que refletem sobre questões estéticas ou poetológicas? O público leitor? Sim, com certeza todos eles o fazem. Eles passeiam, experimentam ou simplesmente transportam através dos tempos as eternas leis de tensão e dramaturgia. Mas nós nos esquecemos de uma outra instância, quiçá a mais importante: as circunstâncias.
“Krimi aus Rio” (romance policial do Rio de Janeiro) é como Fernando Molica classifica o seu romance Krieg in Mirandão (Notícias do Mirandão). O leitor se surpreende. Não, não pode ser um romance policial, e o rótulo Krimi é uma sem-vergonhice.
Tudo muito bem, tudo muito bom. Vamos até as favelas do Rio de Janeiro, dominadas pelos chefões do tráfico e onde os assassinatos fazem parte do dia-a-dia. Um grupo de esquerdistas radicais tenta estabelecer uma cooperação com o chefe da Favela do Mirandão para, em nome do interesse recíproco, cobrar dinheiro dos comerciantes dos bairros “melhores”. Em contrapartida, acabam os crimes, os recursos são investidos na melhoria das condições de vida e de educação, tudo se estabiliza, o chefe do tráfico pode fazer seus negócios tranqüilamente e a esquerda pode politizar os moradores alegremente, estruturando a guerrilha urbana para a revolução próxima e, pasmem!, tudo parece estar funcionando.
Às custas do leitor de romances policiais condicionado, então? Ele/ela sofre com páginas e páginas de discursos teóricos que lembram o discurso de um estudante secundário politizado que, em algum momento, faz muito tempo, teorizou sobre a justiça social mundial antes de descobrir que há jeitos mais fáceis de realizar a vivência sexual ou poupar para construir a casa própria.
Naturalmente assassina-se galhardamente no Mirandão. Naturalmente há poiciais corruptos, jornalistas cínicos e idealistas que refletem sobre a realidade. Mas em nenhum momento o livro é um romance policial segundo os nossos parâmetros.
A culpa é das circunstâncias. Descrevê-las em toda a sua falta de perspectiva e consolo constitui naturalmente estruturas criminosas além daqueles “desvios da normalidade” artificialmente urdidos, cuja tensão costuma nos relaxar. Portanto, não são as ações de “criminosos” que constituem o romance policial e escrevem a sua dramaturgia segundo as regras conhecidas. Aqui se questiona uma ordem, a ordem da miséria, do racismo, da ganância por dinheiro e poder, e, no final, essa ordem é restabelecida numa cena sangrenta. Tudo na boa e velha tradição do romance policial em sua versão mais escura.
Isso nos lembra da Colheita vermelha de Dashiel Hammett? Deveria lembrar sim. O romance de Molica é a moderna versão brasileira do romance “noir” clássico, que não estabelece apenas novos parâmetros do ponto de vista do conteúdo, mas também do ponto de vista formal e de dramaturgia. As próprias circunstâncias são o crime, a pergunta pelo responsável, e suas implicações ainda mais singelas se transformam na análise do poder e de seus cúmplices, desembocam na questão de “normalidade+, direito e ordem.
A “guerra no Mirandão” acaba sendo vencida. Quem ganha é o lado errado, mas provavelmente só pode mesmo existir pessoas erradas dos dois lados. Tudo volta a ser como dantes. O romance policial continua sendo romance policial, pois as circunstâncias não mudaram.
(tradução: Kristina Michahelles)
Fernando Molica, autor do thriller Krieg in Mirandão (Notícias do Mirandão), nasceu no Rio de Janeiro em 1961. Ali, trabalhou como jornalista e correspondente para diversos jornais e uma emissora de TV. Diante desse pano de fundo particular, não admira que um dos protagonistas da história, ainda que não o principal, seja um jornalista pouco solicitado e irritadiço: Fontoura está à procura de um bom assunto que vá para a primeira página, e ele está atrás de uma história tão insólita quanto perigosa. Uma favela é dominada pelo crime organizado, o tráfico floresce, tudo se resolve corrompendo-se a polícia. Apesar do engajamento de padres e de ONGs, ninguém escapa à falta de perspectiva da situação. Eis que um grupo de estudantes de esquerda radical desenvolve um plano e escolhe exatamente este lugar para iniciar uma revolução social. A vanguarda revolucionária não recua nem mesmo diante de uma aliança utilitária com o principal traficante, Marra, para instituir um “imposto revolucionário” em lugar do velho “pedágio” cobrado pelo tráfico. Para o chefe do tráfico, tanto faz quem de onde vem a ajuda, desde que possa aumentar o seu pequeno império e a sua esfera de poder. Mas algumas coisas evoluem diferentemente do que foi planejado, pois ainda há outras pessoas nas alavancas do poder. Um thriller que se move na fronteira entre moral e corrupção, entre ousadia pessoal, envolvimento político, sonhos e lucro, poder e ganância de poder – infelizmente, nada de inimaginável, e sim muito realista.
Raphaela Kula (tradução: Kristina Michahelles)
Embora a capa prometa um Krimi aus Rio (Romance policial no Rio), o leitor logo nota que, nesse caso, o rótulo não se aplica. Ali não se acompanha um investigador à procura de criminosos, nem a estrutura ou o tom do livro correspondem a um romance policial clássico. Em vez disso, o autor Fernando Molica conta uma história de suspense que tem como pano de fundo as favelas do Rio de Janeiro e trata dos sonhos revolucionários de um pequeno grupo de ativistas de esquerda. Descontentes com a política de seu partido, focada em parlamentarismo e disputa pelo poder, eles tentam estruturar uma base para seus planos revolucionários na favela do Mirandão.
Restabelecimento do status quo
Segundo sua análise, as condições nos bairros miseráveis são favoráveis, pois os moradores odeiam o Estado, a polícia e os partidos, e os bancos criminosos – núcleos de futuros guerrilheiros – estão fortemente armados. A experiência insólita começa depois que os membros da semiclandestina Conexão Revolucionária conseguem convencer o chefe de um bando de traficantes e pequenos criminosos que domina a favela de que também ele pode tirar proveito da melhoria das condições de vida na comunidade. A aliança entre os revolucionários, oriundos principalmente da classe média branca, e dos bandidos negros, marcados pelo clima de miséria social e violência cotidiana, é frágil, mas parece funcionar. Os negociadores são uma ativista nascida no Mirandão e um assistente social ligado à Igreja que – contrariamente ao seu empregador – é adepto da Teologia da Libertação. Apesar dos interesses parcialmente conflitantes, o projeto conjunto logo rende benefícios aos moradores da favela: as obras de canalização de esgoto longamente prometidas pelo poder municipal e nunca realizadas, um centro do bairro aberto a todos, ofertas culturais e, não por último, até mesmo uma certa tranqüilidade na comunidade. Mas o caminho que leva à Revolução não é tão fácil quanto parece. A ansiada tentativa é abortada pelos seus inimigos de forma rápida, cruel e tirando todas as ilusões, e o status quo é restabelecido.
Top-Story
Nascido em 1961, o autor Fernando Molica, vive e trabalha no Rio. Apesar de ser jornalista, não conhece a situação nas favelas só a partir do noticiário, como declarou em uma entrevista anexada ao romance, pois ele próprio se criou na periferia. Embora nunca tivesse se envolvido em grupos subversivos de esquerda na década de 70, como muitos de seus colegas, sempre se preocupou com as possíveis conseqüências da pobreza e da discriminação em um país rico como o Brasil e com as alternativas à política dominante. Dessa forma, Molica se identifica com um dos protagonistas, o estudante Célio, nascido em condições seguras e criado segundo os preceitos católicos, mas que está disposto a abrir mão de tudo em nome da Revolução. Mas também há traços do autor na figura do jornalista Fontoura, um pequeno repórter local, que se tornou um cínico com o emprego mal-pago e a convivência diária com o crime, os assassinatos e os políticos corruptos. Os seus sonhos são um pouco mais modestos do que os de Célio. Ele espera poder lançar um livro bem-sucedido em algum momento e ganhar um aumento. Mas ele também acaba fracassando. Ao retratar as condições de vida em uma favela, Krieg in Mirandão se situa entre as raras obras que não se limitam a usar o mundo da periferia como cenário para qualquer romance policial, reproduzindo os ressentimentos da classe média. Assim como ocorre em Cidade de Deus, o cotidiano dos moradores das favelas é revelado de maneira viva e realista.
Andreas Huth (tradução: Kristina Michahelles)
A idéia, dessa vez, é que revolução seja iniciada nas favelas, e não no sofisticado bairro de Ipanema. A revolução deve partir daqueles que conhecem a fome de verdade, não só a partir dos livros. O estudante de classe média Célio, 19 anos, tem um plano. Junto com os companheiros e as companheiras da facção Conexão Revolucionária (CR) ele quer induzir uma revolução no Brasil. Para essa finalidade, Célio abriu mão até mesmo de sua identidade burguesa. O cenário e centro da trama é a favela [fictícia] do Mirandão, na pobre Zona Norte do Rio de Janeiro. Camuflados como inocentes funcionários de uma ONH, Célio e seus aliados colocam todas as suas forças a serviço da politização dos jovens nas favelas. Célio aprendeu a partir de duas outras tentativas revolucionárias fracassadas. Antes de utilizar o rico arsenal de armas dos morros, é preciso criar a consciência política para o verdadeiro potencial revolucionário. Sua missão tem um objetivo claramente definido: demover os pobres da idéia de que a revolução estaria concluída no momento em que têm dinheiro para comprar um aparelho de televisão ou quando os brancos jogam alguma esmola para os negros. Dessa vez, a idéia é derrubar todo o sistema. Mas há um problema. Para construir as estruturas necessárias é preciso fazer uma aliança com o chefe do tráfico organizado no Mirandão. A CR realmente consegue engajar o chefe do tráfico e do Mirandão, Marra, nos seus planos. Mas a cooperação só é parcialmente bem-sucedida, pois para Marra o movimento revolucionário não passa de uma simples possibilidade de ampliar o seu poder e executar brutalmente os seus adversários. O princípio de Marra é simples e cruel: se for preciso matar para conseguir dinheiro, então que se mate.
Em seu romance policial Krieg in Mirandão (Notícias do Mirandão), o autor Fernando Molica narra a trama quase sempre do ponto de vista de seus protagonistas, imitando a linguagem rude dos favelados. Nesse mundo dominado pela violência e falta de escrúpulos, não são apenas os traficantes que matam por dinheiro, mas também a polícia. Dessa forma, a última cena pertence a Jairo, o policial corrupto, que, com um sorriso cínico nos lábios, faz um brinde à operação bem-sucedida de destruição do Mirandão.
Perspectivas interessantes:
Aos revolucionários sobreviventes, resta apenas a falta de esperança depois de um sonho romântico. Com seu livro de estréia, Molica deita um olhar agudo sobre as estruturas internas das favelas brasileiras. Nem sempre o leitor consegue compreender por que motivos os traficantes, os revolucionários e a polícia agem em conjunto ou uns contra os outros. Mas essa confusão é conceitual e nela consiste a verdadeira mensagem do livro: uma verdadeira mudança social radical no Brasil é praticamente impossível e sempre fracassará diante da densa teia de corrupção política, tráfico de drogas ilegal e abuso de poder por parte da polícia. Com este livro, Molica – que trabalha como repórter para a grande emissora brasileira TV Globo – fornece não apenas uma boa descrição da sociedade brasileira, mas também retrata os representantes de sua própria categoria profissional na figura de Fontoura, o repórter local frustrado. Para os jornalistas, as notícias cotidianas sobre a violência não passam de material para matérias “quentes”. Dessa forma, disseminam as interpretações mentirosas e racistas da polícia e confirmam a atitude da elite brasileira, para a qual a pobreza e uma tez negra há muito tempo passaram a ser sinônimos de violência e crime.
Saskia Vogel (tradução: Kristina Michahelles)
Há poucos dias, a editora Nautilus publicou o livro Krieg in Mirandão, de Fernando Molica. O livro se passa no Rio de Janeiro, a cidade natal do autor. A tradução é de Michael Kegler, que também fez a seguinte entrevista com o autor.
O Rio de Janeiro é famoso pela violência. A auto-estrada que leva da Zona Sul ao aeroporto internacional é conhecida como “Faixa de Gaza”. É margeada por favelas, e há sempre a possibilidade de se sofrer um assalto à mão armado. Como o cidadão comum pode lidar com esta violência?
Todas as favelas do Rio de Janeiro sofrem com a forte presença de criminosos armados. São bandidos fortemente armados, ligados ao tráfico de drogas. É absurdo: a maioria dos líderes desses bandos é pobre, vive mais mal do que bem nas favelas. Não são chefes do tráfico do porte de um Pablo Escobar (N. da R.: traficante colombiano já morto). Mesmo assim, possuem as armas mais modernas, equipamentos de guerra, carabinas e metralhadoras. Esses traficantes são violentos. As armas, que servem primordialmente à defesa de suas áreas de atuação, também são utilizadas em assaltos. É uma situação complicada. Lidar com a violência passou a fazer parte assustadoramente do nosso cotidiano, limitando até mesmo a liberdade de ir e vir em determinadas partes da cidade. Como tudo no Brasil, a violência é mais cruel nas partes pobres. Mas em última análise ela nos atinge a todos.
Nenhum mapa da cidade registra as favelas, embora se situem no meio da cidade. Cerca de 40% dos moradores das grandes cidades brasileiras vivem nessas comunidades “informais”. Onde é que os dois mundos se encontram?
Quarenta por cento talvez seja um exagero. Não são tantos assim. Deve-se diferenciar os bairros pobres das favelas. Mas de qualquer maneira ocorreu uma evolução preocupante no Rio de Janeiro, a favelização dos bairros pobres. As regiões próximas às favelas assumiram as mesmas características. A violência é em boa parte responsável por esta tendência, pois quem pode tenta sair de perto dessas favelas. O êxodo leva a um empobrecimento maior, ao surgimento de novas favelas. No passado, o encontro dos dois mundos – o dos ricos e o dos pobres – chegou a ser produtivo. O nascimento das escolas de samba, um espetáculo extraordinariamente grandioso, só foi possível graças a esta convivência (em São Paulo, por exemplo, a classe média jamais se envolveu com as escolas de samba). O problema é que, de uma maneira geral, a sociedade se acostumou à idéia da desigualdade, ao fato de existirem pessoas muito ricas e muitos pobres. Investiu-se pouco em medidas para diminuir a diferença. A favela foi folclorizada em maior ou menor grau, idealizada e inserida na lógica da grande cidade. Investiu-se na cisão: os pobres freqüentam a escola pública, os menos ou mais afortunados vão a escolas particulares. Essas crianças e esses adolescentes vivem separados, nunca se tornarão amigos. Acho que ninguém gosta de ser condenado a ser pobre. A sociedade brasileira se desenvolveu em um terreno conomicamente, a lógica do consumo se aguçou. E isso contribuiu para piorar as coisas.
O romance foi escrito antes que o presidente Lula assumisse o poder. O governo dele mudou alguma coisa nas grandes cidades, como o Rio de Janeiro?
Infelizmente não, por mais que eu lamente. A situação de hoje é parecida com a anterior. O governo investiu em programas sociais, distribuiudinheiro para as famíulias mais pobres, pouco, mas é bastante para as regiões mais pobres do país, principalmente no Nordeste. Mas são programas que pouco influem na situação de cidades como Rio de Janeiro ou São Paulo. Nossas cidades incharam ao longo das últims décadas, a urbanização do Brasil foi dramática, avassaladora, e não se criaram condições para absorver tanta gente. A decepção é tão grande que alguns adeptos do PT fundaram um partido ainda mais à esquerda, o PSOL. Seguramente não é uma CR como no meu livro, mas evidencia a falta de ilusões em partes da esquerda acerca do governo Lula.
Notícias do Mirandão trata da tentativa de ressuscitar a guerrilha no Brasil. Você acredita que isto seja possível?
Bem, o que sei é que o pessoal da CR (o grupo revolucionário do livro) acha isso bem possível… brincadeira à parte: o livro é um romance, uma ficção. Tentei contar uma história de forma que ela tivesse credibilidade. Por acaso, ela trata da guerrilha.
Neste momento não vejo possibilidade de ressurgimento da guerrilha urbana, mas não sou um especialista nesta questão. Provavelmente existem pessoas que se ocupam com este tema. A idéia do livro surgiu há uns dez anos, quando eu conversei com um padre que fazia trabalho de base. Ele me dizia que conhecia gente para quem a retomada da guerrilha era um a opção possível. Gente que não acreditava mais na possibilidade de transformações estruturais através das urnas. Mas essa gente tampouco conseguiu se organizar. Ficou tudo nos planos… Há uns dois ou três anos, alguns deles invadiram uma delegacia, acho que foi da PM, da Polícia Militar, aqui no Rio de Janeiro, para roubar armas e uniformes. Estão presos agora e se designam como sendo presos políticos.
No romance cria-se a união entre esses revolucionários e os traficantes. Como surgiu essa idéia?
É uma forma de possibilitar a luta armada. No meu romance, os caras querem ressuscitar a guerrilha. Mas como? Através da aliança com pessoas que já tiveram armas e que têm uma certa experiência com a luta.
Além da guerrilha, todos os personagens têm algo em comum: querem realizar um projeto.
É verdade. Só me dei conta disso quando o livro estava pronto. Foi então que eu
compreendi que, mais do que um livro sobre a guerrilha, é um romance que fala de nostalgias, de sonhos e seus protagonistas. São personagens que lutam para transformar seus sonhos em realidade. Alguns sonham alto: Revolução, salvação. Outros se contentam com coisas menores: uma vida melhor, uma condecoração, um filho. Mas todos almejam uma vida diferente da que levam agora.
O que me chamou a atenção é que a Igreja ocupa um papel importante no romance. Por que? Isso tem a ver com o padre que o inspirou involuntariamente a escrever o livro?
Pode ser. Mas acho que os fatores decisivos são outros. Eu tive uma educação católica. Quando trabalhei no jornal, entrevistei muita gente que a partir do Cristianismo começaram a aderir a idéias sociais mais radicais. Nas décadas de 60 e 70, muitas pessoas, padres e leigos, foram para a esquerda movidas pela fé. No Cristianismo há toda essa coisa de solidariedade e justiça social. A Teologia da Libertação não nasceu por acaso. Um cristão, principalmente um católico, tem todo esse problema de culpa. A idéia da salvação cristã tem muito a ver com a idéia do paraíso socialista.
Isso se reflete no personagem de Célio…
Sim, Célio é o personagem que melhor incorpora essas esperanças e contradições. Ele oscila entre esperança extremada e profundos sentimentos de culpa. Certa vez, chega a dizer que até mesmo alguém oriundo da classe média mais baixa e suburbano, como ele, deveria se sentir culpado quando vai comer uma pizza no bairro do Méier, por exemplo.
Por falar em suburbano, o livro se passa quase inteiro no subúrbio…
Eu sou totalmente suburbano. Nasci em Quintino, me criei na Piedade e passei a minha juventude no Méier. Isso foi bom, pois agucei o meu olhar sobre a cidade. Mesmo morando hoje na Zona Sul da cidade, acho que jamais perderei esse olhar suburbano.
Então é Célio o personagem com o qual você se identifica?
Mais ou menos. Ainda há um jornalista, o Fontoura, outro protagonista. Ele é muito importante. A trama se organiza em torno dele.
O livro tem uma forte relação com o jornalismo.
Sem dúvida. De um lado, um jornalista se presta bem para uma ficção. O cinema americano está repleto deles. A vantagem do jornalista é que ele circula muito, tanto em termos sociais como geográficos. Isso é bom para juntar lugares e tecer as tramas. E não se deve esquecer que eu mesmo sou jornalista e conheço os medos que deprimem a nosa espécie em suas diferentes versões. Jamais teria podido resistir a embutir um jornalista na trama.
Nos últimos anos, uma série de livros tratou do tema da criminalidade nas favelas, como Cidade de Deus, de Paulo Lins, ou Inferno, de Patrícia Melo. Será correto dizer que à idealização das favelas na música dos anos 50 e 60 se segue agora uma estetização da violência na literatura?
Acho que todos os livros que tratam das favelas são bem diferentes. Não acredito em uma nova estetização. Saíram alguns livros que falam do tema, mas eles não constituem uma tendência na literatura brasileira contemporânea. Ao contrário, acredito que representam apenas uma minoria, tanto no sentido positivo quanto no negativo. Acho até mesmo que, em determinados círculos literários, existe uma resistência contra temas da atualidade, concnetrnado-se mais no indivíduo em seus imbricamentos imediatos, suas dúvidas, seus questionamentos. O Brasil se tornou bem mais complexo nos últimos anos, as dicotomias bem/mal, certo/errado, esquerda/direita se dissolveram, o que gerou alguma confusão, também entre os autores. Não existem mais grandes projetos de salvação, o que é bom, mas faltam projetos que respondam à velha pergunta “O que fazer?”. Na dúvida, levanta-se mais um pouco o muro de casa e crescem as vendas de carros blindados.
A favela e a pobreza há muito já deixaram de ser idealizadas. Ao contrário, são percebidas como ameaça. Isso gera insegurança, não há dúvida. Acho até que, em determinados grupos sociais, há um embrutecimento em relação à pobreza, uma espécie de aceitação da realidade, uma rendição, a sensação de derrota, de que não adianta mesmo falar sobre isso. Vivo a minha vida e esse país não vai dar certo mesmo. Isso é humano, compreensível.
Acho que, numa sociedade tão injusta como a brasileira, todos tentamos permanentemente encontrar o nosso papel, e isso se reflete na literatura. Eu não estou fixado nos temas de favela, pobreza e violência. Mas acho difícil fugir de um tema que marca de tal maneira o dia-a-dia das pessoas. Talvez eu esteja querendo compreender o que esses fatores provocam nas pessoas, nos nossos desejos, nossas expectativas. Para mim, o mesmo vale para todos os personagens do livro, cada uma com seus sonhos, seus objetivos, suas dúvidas e suas certezas. Pelo menos é o que eu acho…
Saskia Vogel (tradução: Kristina Michahelles)
A literatura não substitui o jornalismo. Quem quiser retratar a realidade social deve escrever uma reportagem e não um romance. Esse tipo de afirmação é freqüente em resenhas em que os críticos condenam uma obra literária ou a julgam equivocada. Esse tipo de avaliação pode ser justificado quando um autor quer descrever uma determinada realidade e usa, para essa finalidade, personagens que apenas servem para ilustrar alguma coisa, sem desenvolverem vida própria. Isso de fato pode resultar em algo extremamente tedioso e dispensável. Personagens literários precisam viver, o autor deve criá-los e soltá-los para que caminhem com as próprias pernas e ajam sozinhos, como disse certa vez ironicamente o escritor Omar Saavedra Santis.
Quando um escritor ou uma escritora consegue criar personagens que se comportam de maneira crível e, dessa forma, jogam o foco na realidade social em que vivem, tornando compreensíveis os seus conflitos e sua complexidade, isso pode ser considerado uma grande arte. Só assim a literatura contribui para compreender as realidades por baixo da cortina das interpretações da mídia ou de estruturas preconceituosas pré-estabelecidas. E é isso que Fernano Molica conseguiu fazer com o seu romance Krieg in Mirandão. Claro que existe uma trama – um pequeno grupo de um partido de esquerda tenta estruturar uma base guerrilheira em uma favela no Rio de Janeiro, buscando, para isso, a parceria com os chefes do tráfico local. Essa história é bem contada, e o autor consegue construir habilmente a tensão necessária a este gênero através de pequenas alusões e outras pistas. Mas a verdadeira força do livro reside em dar visibilidade à cisão total da sociedade brasileira, mais concretamente na cidade do Rio de Janeiro.
Há poucos países no mundo em que o sentimento da coletividade é tão exposto e em que a bandeira nacional é tão presente quanto no Brasil. No entanto, deve haver poucos países que sejam de tal maneira desintegrados quanto esta que é a maior nação da América do Sul. As realidades daqueles que participam pelo menos parcialmente das riquezas, as camadas afortunadas, inclusive a classe média relativamente grande, sempre ameaçada de despencar, e a população majoritariamente negra das favelas, parecem ser totalmente incompatíveis. Parece mesmo que os dois Brasis tão diferentes fazem parte de mundos diferentes, de planetas diversos, cujo único ponto em comum é o medo recíproco e a violência onipresente, seja entre os bandos das favelas ou os policiais a serviço dos ricos. Muita coisa inteligente já foi escrita sobre isso, mas em nenhum outro lugar achei descrições mais convincentes do que no romance de Molica, Krieg in Mirandão.
Gert Eisenbürger (tradução: Kristina Michahelles)
Não foi só a partir das revoluções cubana e sandinista que a América Latina passou a ser considerada um espaço ideal para as fantasias de mudanças sociais radicais. Já em 1929, influenciado pelo fascismo italiano e o comunismo soviético, o jornalista e escritor argentino Roberto Arlt descreveu, no livro Los siete locos, uma conspiração para iniciar uma revolução mundial, começando por Buenos Aires. Sete homens, liderados por um astrólogo, tentam encetar a revolução a partir de uma série de ataques de gás letal. Eles pretendem usar uma cadeia de bordéis para financiar essas armas. Mas o complô acaba sendo descoberto e Erdosain, o protagonista, mata a sua amante primeiro para se suicidar em seguida.
Solo fértil para golpes
No Mirandão é assim também. O desfecho é curto e indolor. Grupos paramilitares e esquadrões da morte invadem uma favela no Rio de Janeiro e assassinam um punhado de conspiradores revolucionários e traficantes de droga. As autoridades escondem as verdadeiras razões da ação noturna e, à imprensa, servem a versão de uma guerra entre bandos de traficantes. Mas o processo que ocorreu nos meses anteriores foi a tentativa de se preparar uma mudança radical nas condições vigentes do Brasil contemporâneo. Ativistas de base e pessoas engajadas na Igreja funcionam como cabeça-de-ponte para instalar um centro comunitário na favela, camuflado em sede de uma ONG. Ali os moradores recebem treinamento ideológico e formação para a luta de guerrilha. Os membros da organização clandestina guevarista Conexão Revolucionário imaginam que a favela (fictícia) do Mirandão, marcada pelo contrastes extremos entre ricos e pobres no Rio de Janeiro, seja o solo fértil ideal para os seus planos revolucionários. Eles se aliam aos chefes do tráfico local a fim de conseguir acesso à favela. Este aceita as ações dos rebeldes porque conta com a ampliação de sua esfera de poder. A aliança com o crime organizado é justificada ideologicamente, com algumas distorções teóricos. Os rebeldes colombianos da FARC parecem servir de exemplo. A própria revolução é financiada com verbas arrecadadas a título de “imposto revolucionário”. Parte do dinheiro é investida em projetos sociais na comunidade esquecida pelos políticos, exceto em épocas de campanha eleitoral. Mas o complô é descoberto porque a taxa de criminalidade cai e chama a atenção. A polícia começa a ficar preocupada e manda o seu pessoal investigar.
Célio é o codinome do jovem protagonista, um revolucionário inflamado que já na unversidade chamava a atenção de seus colegas pelos seus discursos ardentes durante debates. Logo ele mergulha na favela, troca a namorada de um bairro de classe alta do Rio por uma ativista negra e aprende a manusear armas. A transformação de Célio de um estudante de esquerda para um guerrulheiro urbano forma um dos eixos do romance. O outro é Fontoura, um jornalista algo medíocre, que já passou do auge da carreira. Fontoura percebe que algo de incomum está acontecendo na favela e começa a apurar. Mas Fontoura, alter ego do autor, também só compreende metade da verdade. No fim, ele compra a versão da polícia. Nunca houve uma revolução.
O lado sangrento
O livro de estréia de Fernando Molica, nascido em 1961 no Rio de Janeiro, pretende antes de mais nada dar credibilidade à trama. O próprio Molica trabalha como jornalista em uma emissora de TV, e seus personagens poderiam ter nascido a partir de uma reportagem sobre esta favela que não pode ser encontrada em nenhum mapa da cidade. Aqui e ali, Molica salpica informações sociológicas, tentando aproximar o leitor de classe média desse mundo paralelo conhecido apenas das páginas policiais. A favela tem leis próprias, mas, diferentemente do que acontece no bem-sucedido filme Cidade de Deus, rodado com base do livro com o mesmo nome, a violência das favelas não obedece a nenhuma estética de videoclipe de MTV, e sim continua sendo o que é: o cotidiano assustador de cidadãos que, em sua maioria, não estão ligados ao tráfico de drogas,e , ao mesmo tempo, o lado sangrento da economia subterrânea que envolve simultaneamente políticos, policiais, os filhos mimados da classe alta e os chefes do tráfico, descritos de forma nada glamurosa. Molica faz a ação transcorrer como numa colagem, saltando de um capítulo para o outro entre um personagem e outro. A conspiração é revelada pouco a pouco, como num romance policial.
A força documental do romance revela ao mesmo tempo a sua fraqueza literária. Muitas vezes, os personagens parecem figuras estáticas, sem a complexidade humana, funcionando apenas como porta-vozes de determinadas posturas ideológicas. Um pouco mais de densidade épica não teria feito mal ao romance. Assim, ele continua sendo uma fantasia utópica que equivale a uma fotografia em polaróide do Brasil contemporâneo. Aos leitores que não se contentarem com este livro, recomendamos calorosamente esperar a reedição do romance do argentino Roberto Arlt no ano que vem pela editora Suhrkamp.
Timo Berger (tradução: Kristina Michahelles)