Uma pessoa em situação de rua que divide um caixa eletrônico com um homem de meia idade e muitas dívidas, um taxista convence o passageiro a pegar um caminho diferente para ver se a ex-mulher que o abandonou está num bar, um funcionário de uma empresa de telemarketing que vê proximidade e distância com um cliente quase homônimo milionário. As personagens de Náufragos são pessoas comuns que vagam pelas ruas de uma grande cidade como sonâmbulos peripatéticos, falando sozinho, com público ou não, compartilhando silêncios e segredos na mesma respiração.
A beleza da boa literatura pode ser verbalizar o pensado, mas não dito. Pode ser refletir sobre o acontecido, sendo ele passado ou ainda presente. Nestes 19 contos, Fernando Molica propõe uma investigação sobre a solidão, o naufrágio, seja ele religioso, político, amoroso ou financeiro. A virtude de um bom contista, como Molica mostra ser mesmo neste seu primeiro livro de contos, é saber traduzir em algumas páginas a densidade de pessoas ímpares que escapam a redundâncias.
A novinha que topa o tiozão e o descarta na noite seguinte, o sambista que perde uma batalha de rima e sai dos eixos, a moça que toma uma dose de ácido e viaja dentro de si mesma, as mãos que abrem as argolas do chaveiro para devolver as chaves de um apartamento – que “cumpriram o papel de alianças que não chegaram a ser compradas para marcar a união.” As personagens desse grande naufrágio estão quase sempre acompanhadas e em movimento, mas estão sós, inexoravelmente sós. Como, no fundo, estamos todos nós.
Flávio Izhaki
Fernando Molica lançou esta semana (11/7) o volume Náufragos, pela editora Malê. Nos
19 contos, o autor trata de personagens que passam por momentos decisivos de suas vidas
e que, depois de enfrentar tempestades pessoais, nem sempre conseguem voltar à tona. Molica publicou nove livros, entre eles seis romances. Dois deles – Notícias do Mirandão,
pela Record, e Bandeira negra, amor, pela Objetiva – foram lançados na Alemanha e na
França. Ele mantém um site e um blog em www.fernandomolica.com.br.
Como jornalista, formado pela UFRJ, ele trabalhou nas sucursais do Estadão e Folha e foi
chefe de reportagem do Globo. Na TV Globo, ganhou o prêmio Vladimir Herzog. Em O Dia, recebeu o Embratel com a equipe de reportagens sobre a ditadura militar. Foi editor de Veja, e apresentador e analista da CNN. Organizou para a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) três coletâneas de reportagens. Coordenou o MBA em Jornalismo investigativo e realidade brasileira da FGV-Rio.
Em 19 contos, o escritor e jornalista propõe uma investigação sobre a solidã0 – o náufragio, seja ele amoroso, religioso ou financeiro. O autor traduz a densidade de pessoas ímpares que escapam a redundâncias. Dois dos seis romances de Molica também foram editados na Alemanha e na França. O lançamento de ‘Náufragos’ será terça-feira, 19h, na Travessa de Botafogo (Voluntários da Pátria, 97).
Ambiguidade é conceito pouco compreendido por parte da humanidade, embora esteja entranhado em muitos de seus espécimes – talvez em 90% deles. Grandes personagens literários são descritos em todas as diferentes facetas, e não apenas a da “fachada de catedral e alma de cabaré”, a hipocrisia consagrada em figuras criadas por Nélson Rodrigues, que retratou como poucos a pequena burguesia brasileira.
É na volta a um tempo vivido por Nélson que o niteroiense Sérgio Tavares situa o protagonista de Todos nós estaremos bem (Dublinense, R$ 51,18), sua primeira incursão no romance dentro de uma bem estruturada jornada como contista. Talvez venha na experiência de Tavares na criação de contos os sucessivos socos no peito oferecidos a cada trecho da trajetória de Roberto, um empresário que enriquece durante a ditadura, que se envolve com Lúcia, uma militante de esquerda. Os dois universos acabam se fundindo na filha Karla. A infelicidade ao longo dos anos de chumbo talvez possa encontrar alívio com o fim do regime militar, quando o casal entra num frenesi sexual, frequentando orgias, apesar da ameaça da epidemia de Aids.
O carioca Fernando Molica faz o caminho inverso ao de Tavares, estreando como contista depois de nove romances publicados. Em Náufragos (Malê, R$ 52), a solidão imposta pelas derrocadas existenciais vêm em testemunhos de figuras contemporâneas que transitam pela megalópole, expondo suas diferenças em esbarrões fugazes do dia a dia. É o motorista de táxi que conta ao passageiro como foi traído pela mulher, o passageiro que relata a vida ao vizinho do banco do ônibus, o taxista pastor evangélico que conhece orixás, pois já foi da umbanda, o brigão pronto a massacrar qualquer pessoas a socos, desde que lhe deem um motivo. Nada mais carioca do que essas explosões de confidências a estranhos, da confiança no encontro que jamais se repetirá tão bem expressos nessas curtas narrativas de pessoas que qualquer leitor já conheceu. Os solitários que se abrem são a essência do Rio e, talvez, da alma brasileira, embora o vazio que vivenciam permaneça depois de desabafarem com quem não conhecem.
Retrocedendo a uma época anterior às evocadas pelas duas ficções brasileiras, Oppenheimer – O triunfo e a tragédia do Prometeu americano (Intrínseca, R$ 99), que deu a Kai Bird e Martin J. Sherwin o Pulitzer em 2006, mostra essa sociedade que fechava os olhos para suas peculiaridades em nome do progresso e da manutenção da ordem. Cientista brilhante, de temperamento introvertido na juventude, quando teve sucessivas crises de depressão, J. Robert Oppenheimer participou do projeto de construção da bomba atômica norte-americana. Depois das explosões em Nagazaki e Hiroshima, ele se torna ferrenho opositor do uso da bomba, desligando-se do projeto. Acaba presidindo a Comissão de Energia Atômica dos EUA, sendo demitido durante o macarthismo, sob alegada simpatia aos comunistas. O livro foi a base para o roteiro da biopic que estreia nos cinemas com o irlandês Cillian Murphy na pele do controverso “Oppie”, personagem fascinante, que deixa o leitor um tanto ressabiado quanto a suas intenções, mas que torna a leitura tão irresistível quanto o biografado.
Olga de Mello
Nos 19 contos de “Náufragos” (Ed. Malê), Fernando Molica trata de personagens que passam por momentos decisivos de suas vidas – e que, depois de enfrentar tempestades pessoais, nem sempre conseguem voltar à tona. Como diz o escritor Flávio Izhaki na apresentação do livro, “são pessoas comuns que vagam pelas ruas de uma grande cidade como sonâmbulos peripatéticos, falando sozinhos, com público ou não, compartilhando silêncios e segredos na mesma respiração”. Leiam a entrevista com o escritor.
“Náufragos” mostra personagens em momentos decisivos de suas vidas. Como essas pessoas – tão reais que podemos encontrá-las em cada esquina – ganharam vida através da sua escrita? De onde elas surgiram?
R: De um modo geral, surgiram da própria vida, de situações vivenciadas ou presenciadas por mim ou por pessoas conhecidas, partem de uma espécie de provocação feita pela realidade. Outros contos nasceram de maneira mais abstrata, o `Bons tempos’, por exemplo, foi pensado como uma espécie de continuação de meu romance ‘O ponto da partida’.
Fontes disseram que o título do livro, por pouco, não foi “Sabor a mi” – nome do conto que retrata a linda história do amor entre um homem e uma mulher, marcada pelas idas e vindas de um país dividido entre a democracia e o autoritarismo. Esse é o seu conto preferido do livro?
R: Sim, pensei em batizar o livro com o nome do conto, mas aí seria outro livro, mais focado em histórias que tratam de relações amorosas. Depois, devidamente aconselhado, achei melhor tornar o livro mais amplo, ainda que tenha mantido muitos contos que tratam do tema. Não sei se é o meu conto favorito (não quero despertar ciúmes nos outros), mas gosto muito dele, da possibilidade de um diálogo carinhoso com o Brasil dos últimos anos.
O conto “O quadro de Courbet”, sobre a célebre pintura de Gustave Courbet (1819-1877) – cujas imagens são “censuradas” na internet – é uma experiência fascinante em termos de tema e linguagem. Qual é a história por trás desse conto?
R: Nasceu de um convite do amigo e escritor Marcelo Moutinho, um dos organizadores do ‘Dicionário amoroso da língua portuguesa’ (Casa da Palavra). Ele pediu a escritores, entre eles, eu, que escrevêssemos contos a partir de uma palavra de que gostássemos. Como provocação, estávamos num bar, falei aquela que vulgarmente define o órgão sexual feminino. Pra minha surpresa, ele topou. O conto não tem nada de erótico ou que possa ser chamado de pornográfico, foi na direção oposta do que seria imaginado por alguém que topasse com um texto originalmente chamado ‘Buceta’.
A maioria dos contos do livro é escrita em primeira pessoa. Como se dá a escolha pelo narrador? É algo pensado ou surge naturalmente?
R: Não sei, é algo bem natural, depende muito da história a ser contada, se quero algum distanciamento ou se considero mais necessário trabalhar a partir de uma visão do próprio personagem. Fora que, às vezes, implico um pouco com o narrador que sabe de tudo, é algo meio arrogante. Gosto de pensar na ideia de construção de uma fala, quase como que num divã. O engraçado é que só notei a predominância da primeira pessoa ao dar forma final ao livro.
Sua literatura é marcada pelo fato de ser cria do subúrbio carioca. Essa é uma de suas marcas como escritor? Existem outras “marcas”?
R: Sou suburbano de Piedade, carioca, sempre morei no Rio, em diversos bairros. Acho que minha literatura é muito carioca, meus primeiros romances – ‘Notícias do Mirandão’ (Record), ‘Bandeira negra, (Objetiva) e ‘O ponto da partida’ (Record) – fazem uma espécie de trilogia, tratam de uma Cidade tão bonita e tão cheia de contradições. Talvez, penso nisso agora, escrever ficção seja uma forma de me situar na minha cidade, no meu país. Gosto de jogar personagens no cenário e ver como eles se comportam, como interagem.
Você é jornalista e cobre a área de política há muitos anos, o que é sinônimo de “trabalho pesado”. Como encontra tempo para escrever e se dedicar à carreira de escritor?
R: Não sei. Costumo dizer brincando que, preso ao trabalho de apurar informações, gosto muito também de contar histórias inventadas. Meu trabalho como escritor é bem diferente do de jornalista, os princípios e as abordagens são quase contraditórios. Mas o fato de ser jornalista me permite o conhecimento de muitos ambientes e de muitas pessoas, o que acaba sendo útil na hora de fazer ficção.
Quais são seus próximos passos como autor de “Náufragos”?
R: Quero trabalhar bem o livro, os primeiros retornos têm sido bem legais. Escrever um livro dá muito trabalho, é importante tentar fazer com que mais pessoas se interessem pelas histórias lá contadas. Minhas gavetas estão praticamente vazias, nelas estão uns dois ou três contos que achei melhor não publicar nesse livro. E não faço muita ideia do que escrever agora, a cabeça ainda está – perdão – submersa no novo livro.
Ler “Náufragos” foi como sentar em um banquinho em uma rua muito movimentada e observar as pessoas caminhando, a vida acontecendo. Sabe quando entendemos olhares alheios, ouvimos trechos de uma conversa ou até ficamos pensando em dramas para desconhecidos que acabamos de ver?
Em formato de contos, Molica desenvolve pequenas histórias sobre pessoas, um taxista, um funcionário administrativo, um morador de rua, uma jovem aproveitando a vida… É como um aglomerado de vozes em um dia a dia, comum, injusto, brasileiro. Em alguns contos conhecemos esses sujeitos de forma mais distante, outras mais íntimas. Acredito que a conexão entre todos os contos é o desconforto – financeiro, amoroso, político, etc. – que enfrentam todos os sujeitos. Ainda que por tensões diferentes, todas resultam na solidão e em algum nível de descontentamento.
O interessante é que identificamos as motivações desses sentimentos por estarmos inseridos, também, nesta realidade. O plano de fundo do livro é um Brasil intolerante e desigual que aflinge a todos, sem restrição. Aqui, a linguagem exerce papel fundamental, porque somos deslocados para a perpectiva até daqueles sujeitos mais desagradáveis e, através de poucas palavaras, elaboramos a persona de muitos conhecidos.
Algumas passagens me lembraram a escrita de Geovani Martins pelo teor de denúncia. Se “O sol na cabeça” for um dos seus favoritos, esse pode ser também!
Essa foi minha passagem favorita:
“Alguns policiais entraram no mato, atrás de mim, queriam mesmo me pegar, não bastava me assustar, me botar pra correr, pra sair dali. O serviço tinha que ser completo. Talvez me acertassem, talvez eu morresse. Mas, se morresse, ia morrer ali, pertinho do quintal da minha avó.”
Vivian Gomes
Em Náufragos ,Fernando Molica nos presenteia com 19 contos sobre o cotidiano das pessoas,seus dilemas,seus amores e frustrações.Historias comuns ,sobre pessoas comuns . Situações que muitas vezes tentamos a todo custo fugir ,mas que nem sempre conseguimos .
Pular do barco antes de um náufragio na maioria das vezes se torna impossível.
Os contos são curtos ,a escrita do autor é fluida e muito viciante .No decorrer da leitura passamos a compreender os personagens ,entender seus questionamentos e decisões.
Leitura que me emocionou ,me fez refletir e também me proporcionou uma certa nostalgia.Contos repletos de alegria ,tristeza , arrependimento e também de esperança.
Dentre os 19 contos ,quatro me chamaram mais a atenção e deixo aqui um pouquinho das minhas impressões…
O conto RETORNO me emocionou muito porque mostras os efeitos absurdos do tempo na vida e as suas reviravoltas que as vezes nos pega desprevenidos. Sobre a nostalgia das boas recordações.
Em SAUDAÇÃO teremos boas reflexões sobre o respeito e a tolerância religiosa .
NÁUFRAGIO nos mostra que muitas vezes escapamos a verdadeiras tempestades e ainda assim continuamos à deriva ,girando para não “perder o prumo”.
SABOR A MI fala um pouco de saudade ,da um aperto no peito quando nos leva a refletir sobre a brevidade da vida .
Enfim um livro que não tem defeitos ,que escrita maravilhosa de Fernando Molica.
ELIANE SILVA
Os contos de Fernando Molica falam muito do Rio de Janeiro, embora, bom aprendiz das melhores lições, sua aldeia se universalize.
É possível olhar esses contos de muitos pontos de vista. Na maioria das vezes, o personagem central é um homem. Pasmem, não é um cafajeste, ao contrário, é alguém atento e disposto a aprender, inclusive e principalmente com as mulheres. Pode-se olhar também pela adesão ou não ao conto. Certas horas, Molica tangencia a crônica (como em Trajetos, que, apesar da proximidade com a crônica, é o conto mais conto possível, com aquela característica de a verdadeira história estar oculta, sugerida), noutras horas não exatamente a poesia mas a um texto de (na falta de uma palavra melhor) devaneio (Náufragos, por exemplo).
O Rio é um pouco esse que está por aí, com muito samba, futebol, perrengues. Mas Molica esgarça essa cidade e, no texto que mais me impactou (Bons Tempos), a leva ao futuro. Meus amigos, mesmo as saídas mais mirabolantes não dão conta das armadilhas soltas nessa cidade (nesse Estado).
Molica dosa bem a cidade encantadora e terrível.
Alexandre Brandão
Segundo o dicionário, Náufrago é a pessoa que naufragou. Em seu sentido figurado é uma pessoa infeliz, decadente, que padeceu ruína.
Em “Náufragos”, @fmolica explora o sentido figurado da palavra em 19 contos. São personagens completamente diferentes um do outro, com vidas distintas, mas que Fernando Molica alinhavou em torno do tema.
O primeiro conto, já causa impacto, um homem cheio de dívidas se vê em dúvidas em frente ao caixa eletrônico, na hora de sacar dinheiro para quitar uma delas. Ao que se depara com uma pessoa em situação de rua também com seus questionamentos frente a máquina. O leitor acompanha o raciocínio do endividado, suas lutas internas até a decisão que encerra o conto.
E assim, segue-se o livro, com personagens em meio às suas questões, desencontros, tristezas, rememorações.
Destaco os contos Trajetos, Anéis, Doce e Lição que, cada um à sua maneira, me impactaram. Mas o meu favorito foi o que encerra a coletânea, Sabor a mi, um conto que fala de amores do passado e repassa momentos da pandemia. Bonito e desolador.
O livro é curtinho, assim como cada um dos contos, mas isso não diminui o impacto que a leitura de cada um deles tem, fui lendo aos poucos, intercalando os dias, de forma a deixar cada um tomar seu tempo. Assim como Elefantes no Céu de Piedade, também do autor, recomendo muito a leitura.
Obrigada, @oasyscultural pelo envio, como sempre, mais uma indicação certeira! 😀
Danielle Gonzales
Eu conheci primeiro o Fernando Molica jornalista, sempre com boa atuação como comentarista da CNN. E foi uma grata surpresa saber que ele também é escritor, com 6 romances publicados já e estreando agora como contista com este ótimo “Náufragos”.
19 narrativas curtas que são quase crônicas de personagens tentando sobreviver com seus dilemas numa cidade como o Rio de Janeiro.
Com uma escrita ágil, imbuída de certa ginga carioca, Molica reveste de leveza temas densos como desigualdade social, discordância religiosa, conflitos amorosos, angústias pessoais, homofobia etc.
Se os contos iniciais são mais narrativos, a partir de “Gritos” (sim, lá tb se grita), percebi um tom mais reflexivo, com divagações mais profundas e uma maior experimentação de linguagem, acentuando a sensação de “náufragos da existência” dos personagens.
Um livro mto saboroso de ler e que me deu vontade de conhecer os romances do autor. Recomendo.
Rodrigo Netto
É sempre uma alegria ler um livro bem escrito e que nos proporciona prazer e momentos de reflexão durante sua leitura. “Náufragos” (Malê, 2023), de Fernando Molica, é um desses livros cuja leitura recomendo. Com a bela capa de Dandarra Santana, a antologia é composta de 19 contos de variados temas retirados de cenas do cotidiano e da história de nosso país.
No conto “Vizinho” que abre a coletânea, o autor, com toda sua sensibilidade jornalística, leva o leitor, através de seu personagem, a enfrentar seus medos durante uma visita a uma sala de caixas eletrônicas e mostra como preconceitos disseminados pelas redes e veículos de comunicação são internalizados e arraigados por nosso sistema de autopreservação ao acelerar mecanismos de defesa, às vezes desnecessários. A partir daí, somos conduzidos numa inusitada viagem de táxi cujo motorista se torna o narrador de mais uma história de amor mal resolvida, histórias banais que compõem o universo das pessoas comuns e se mesclam a tantas outras cantadas em músicas similares que tocam no rádio do carro.
E, assim, com a maestria do autor, o narrador vai tecendo uma sequência de histórias de nossa vida cotidiana que nos surpreendem a cada virada de página: a fuga de um bandido que só lembra da casa da avó em sua infância enquanto foge da polícia; falcatruas financeiras por causa de quase homônimos; conversas com pessoas que compartilham assentos e histórias pessoais no transporte público; as implicações de diferenças etárias nas relações sexuais entre uma garota de 23 anos e um homem casado e com filhos; as surpresas de um diálogo inusitado entre um condutor evangélico e uma passageira filha de santo numa corrida de Uber; o grito de desabafo sobre as distâncias construídas entre seres que um dia se amaram ou assim acharam; as histórias contadas por fluidos corporais e resíduos que se acumulam e se juntam na barra de apoio de um ônibus; a descoberta da violência implícita em algumas palavras proibidas em conversas familiares e a busca da concretização do significante em significado palpável; a tragédia provocada por disputas poéticas numa roda de samba; a junção e separação de corpos e almas no movimento de anéis de um chaveiro. Tudo se torna um roteiro para um conto neste livro de Molica, que, de forma poética e bem humorada, descreve tanto os devaneios e pensamentos de um náufrago quanto a viagem interior de uma moça sob o efeito de drogas. Como afirma Flávio Izhaki na orelha do livro: “As personagens desse grande naufrágio estão quase sempre acompanhadas e em movimento, mas estão sós, inexoravelmente sós. Como, no fundo, estamos todos nós.”
“Náufragos” pode ser encomendado diretamente do autor aqui marcado ou no site da Editora Malê.
Nascido no Rio de Janeiro, Fernando Molica é jornalista e autor de seis romances. Seu último romance “Elefantes sob o céu de Piedade” foi finalista do Prêmio Oceanos de 2022. Finalista do Prêmio Jabuti, possui dois romances publicados na Alemanha e na França: “Notícias do Mirandão” e “Bandeira negra, amor”.
Décio Torres
Estreando como contista depois de nove romances publicados, o carioca Fernando Molica traz, em Náufragos (Malê, R$ 52), personagens de uma megalópole agressiva, que esbarram no dia a dia. É o motorista de táxi que conta ao passageiro como foi traído pela mulher, o passageiro que relata a vida de sua família ao vizinho do banco do ônibus, o taxista pastor evangélico que conhece orixás, pois já foi da umbanda, o brigão pronto a massacrar qualquer pessoas a socos, desde que lhe deem um motivo. Nada mais carioca do que essas explosões de confidências a estranhos, da confiança no encontro que jamais se repetirá tão bem expressos nessas curtas narrativas de pessoas que qualquer leitor já conheceu.
Olga de Mello
Vizinho
Primeiro, o susto. Enquanto eu digitava a infinidade de números e senhas que garantiriam a transferência do dinheiro, o sujeito entrou no mesmo salão recheado de uma dezena de caixas eletrônicos. Sujo, maltrapilho, cor de pele indefinida por manchas e camadas de fuligem e poeira, calçava chinelo em um dos pés, o outro estava descalço. As tranças formadas pela falta de corte e lavagem ultrapassavam a altura do seu ombro, confundiam-se com os pelos da barba e do bigode. As roupas, camisas e calças sobrepostas, rasgadas, acomodavam-se com certa ordem naquele corpo; até pelo tempo em que estavam ali pareciam saber bem onde ficar. Havia também o cheiro, morrinha característica da falta de banho.
A chegada dele mudou o foco de minha irritação, das minhas preocupações. O homem, sujo daquele jeito, vestido com aquelas roupas, decidiu se postar em frente ao caixa que ficava ao lado do meu. Ficamos assim, a menos de um metro do outro, apartados por uma pequena barreira de acrílico, discreta e quase inútil separação entre os equipamentos. Só nós dois no salão que lembrava a cabine de comando de naves espaciais de antigos seriados. Perigo, perigo, perigo!, vontade de imitar o robô covarde da TV quando se via diante do desconhecido. Até então, eu cumpria a rotina mensal de, à noite, no limite de dia e horário, ir a um caixa eletrônico e transferir parte do dinheiro que me sobrara pra conta do filho da puta responsável pelo fato de sobrar tão pouco dinheiro na minha conta. Uma obrigação decorrente da falência do tal grande negócio que não tinha chance de dar errado — sopa no mel, mamão com açúcar, deveria ter desconfiado dessas duas espúrias combinações. Nunca vi alguém colocar sopa no mel, mamão com açúcar não passa de uma grotesca redundância. Até tomei alguns cuidados, conversei, consultei, avaliei. País crescendo, muita gente entrando no mercado de consumo, Cristo decolando na capa daquela revista inglesa. Como o major que cavalgou a bomba atômica no filme no Kubrick, pendurei-me no pescoço do Redentor — foi como cair do alto do Corcovado. Quebramos em menos de um ano, tive que passar a devolver, todos os meses, o dinheiro emprestado pelo meu sócio. Eu não tinha alternativa, não havia chance de negociação, delação premiada, acordo de leniência, tornozeleira eletrônica, conversa com ministro de tribunal superior. Ou depositava ou perderia meu último patrimônio, o nome — até por quanto tempo? — limpo na praça. As instituições financeiras funcionavam normalmente. (…)
Excelente obra. Recomendo.
Godofredo de Oliveira NetoNáufragos é uma obra imperdível! Prosa elegante sobre a “humanidade”, “acertos” e “desacertos” do nosso cotidiano, em uma perspectiva singular da vida urbana.
Arthur GueirosNão pude ir ao lançamento de Náufragos, de @fmolica, um dos mais concorridos da temporada. Mas o autor, um gentleman alvinegro, não me guardou ressentimento e me mandou o livro. Fã de bolero, de Lucho Gatica e do Molica, fui direto ler o conto Sabor a mi. Excelente.
Alvaro Costa e SilvaEm minha experiência como leitora e como pesquisadora, romances são para os bons, contos para os excepcionais. Fernando Molica não decepcionou. Confiram!! Um livro sensível, contemporâneo e excepcional!!
Denise RamalhoO novo livro de Fernando Molica contém 19 contos primorosamente construídos, com um domínio de técnica, linguagem, estilo e poder de síntese simplesmente admiráveis. Resultado: textaços!
Não vou me meter a dizer de que se tratam, porque Flávio Izhaki, um craque das letras, já o fez, logo de cara (na primeira orelha), de modo incomparável.
Tudo chancelado pela Editora Malê, em edição muito boa de ler.
(www.editoramale.com.br - contato@editoramale.com.br).
Imperdível!!!
Livro de contos diretos e fortes, lembrando os nocautes de Cortazar!
Lucia Bettencourt“Retorno”, do volume de contos “Náufragos” (Editora Malê, 2023), de Fernando Molica, é uma das narrativas mais bem urdidas, construídas e arrematadas que já li. Parabéns, @fmolica. Plínio Marcos, João Antônio e Wander Piroli se juntariam a mim no sentimento de inveja.
Luís PimentelRolando neste momento uma competição surda na literatura carioca pra saber qual é o melhor dos 19 contos curtos e concentrados que @fmolica reuniu em “Náufragos” (Malê). Embora o páreo seja duro, eu fico com a tristeza cósmica de “Gritos”. Mas aproveito pra perguntar: por que não 20, caramba?
Sérgio RodriguesAdorando. Parabéns Molica.
Lucrecia Capurro FrancoFui na Livraria da Travessa procurar um livro para meus filhos, não encontrei mas aproveitei para conferir o livro do Fernando Molica, Náufragos. Aproveitei para colocar um exemplar de pé, dando maior visibilidade. Merece. Ainda estou na página 54, que começa com uns 10 sinônimos da “perseguida”. Um belo livro e que trata de temas relevantes e sempre atuais.
Hermann NassLivraço do @fmolica! Cada conto é uma porrada diferente. Uma aula, imperdível.
São 19 contos escritos magistralmente. Simples e absolutamente profundos. Cada conto uma reflexão daquelas. O homem é MUITO craque. Não deixem de ler.
Comprado na Livraria Casa da Árvore, naturalmente.