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Elefantes no céu de Piedade

Elefantes no céu de Piedade


  • Patuá
  • 2021
  • Capa tipo Brochura
  • 9786558641858
  • 168 Páginas

A década é a de 70, o Brasil ainda se acostuma à ideia da nova capital, e os militares mantêm o país sob tacão autoritário. No bairro de Piedade, no Rio, numa casa próxima à avenida Suburbana, uma família de classe média recebe um primo para um pretenso tratamento de saúde — ao mesmo tempo em que outro parente se vê envolvido num pouco esclarecido assalto a banco. Aí está o mote para este Elefantes no céu de Piedade, novo livro de Fernando Molica, que com técnica maiúscula consegue aliar andamento de suspense a revelações às vezes doloridas.

Valendo-se de um narrador em primeira pessoa e que tem a um só tempo o olhar espantado e inocente da infância, Molica faz uma reconstrução de época preciosa, com direito a um divertido acervo de canções, de utensílios e principalmente de carros, material que faz contraponto ao angustiante, e muito surpreendente, andamento dos fatos.

Neste livro, Molica nos faz lembrar duas grandes virtudes da literatura: uma delas é que a literatura pode encantar seus leitores; a outra, é que a literatura não nos deixa nunca esquecer.

Cíntia Moscovich

Pelos olhos de um menino, Fernando Molica nos mostra que a sombra da ditadura não é difusa ou remota. Pelo contrário: projeta-se e deixa marcas em nossas existências individuais. Este é um livro sobre o fim da inocência, mas também sobre a importância da memória como antídoto contra as tiranias.

Marcelo Moutinho

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Zero Hora, 26/12/2021 Um bom livro para começar o ano

Ambientado na ditadura militar, “Elefantes no Céu de Piedade”, de Fernando Molica, enreda o leitor em suspense e tensão

Uma reconstrução de época feita a preceito dentro de uma narrativa cheia de elipses, conjunto que, ao mesmo tempo em que joga luz sobre um tenebroso período da história do país, vai também enredando seu leitor em suspense e tensão. Assim é Elefantes no Céu de Piedade (ed. Patuá), quinto livro do carioca Fernando Molica – e do qual me orgulho de ter feito a orelha.

Passado no início dos anos 1970, na dureza do regime militar, envolvendo uma família do bairro de Piedade, subúrbio carioca, o livro é narrado por Francisco, filho de Jorge e Eneida, casal que incensa a política da época. Grande trunfo de Molica, tal narrador, um rapazinho de olhar espantado e ingênuo, testemunha os acontecimentos que têm lugar assim que um primo capixaba, Carlos Alberto ou Cacá, instala-se na casa da família para um suposto, e misteriosíssimo, tratamento de saúde.

A partir daí, Molica empreende um lindo esforço para recuperar os elementos de época, reunindo um acervo de utensílios, canções e carros – é notável o capítulo de abertura em que o autor conta a experiência de andar no Opala verde recém-comprado pelo pai, além de esmiuçar todos os detalhes construtivos da nova casa, vizinha à Avenida Suburbana, que o “milagre econômico” propiciou que a família adquirisse.

As tensões geradas pela presença de Cacá e o envolvimento de um familiar próximo num pouco esclarecido assalto a banco geram conversas das quais Francisco e as irmãs estão banidos mas que seguram e atiçam o interesse do enredo. Quando Francisco fica sabendo que o primo não está doente de verdade e que a polícia política anda em seu encalço, os fatos se precipitam e se desenvolvem de forma trepidante até culminar num desenlace inesperado.

Criado no bairro de Piedade, jornalista com passagem pelos principais veículos de imprensa do país, Molica é autor, entre outros, de Notícias do Mirandão e Bandeira Negra, Amor, obras que lhe valeram duas indicações ao prêmio Jabuti. Eis aí uma maneira para começar o ano a bordo de excelente literatura.

Feliz 2022!

Cíntia Moscovich


O Estado de S.Paulo, 30/05/2022 Romance de Fernando Molica retrata a ditadura pelos olhos de um menino do subúrbio

Comentarista político e jornalista, obra de Molica é a crônica de um país fraturado

​No começo dos anos 1970, o pai de Francisco compra um carro cuja primeira coisa impressionante é o banco dianteiro – “imenso, contínuo, sem aquela divisão de onde, no fusca, brotava a alavanca usada para a troca de marchas”. “Marco de uma vida que melhorava à custa de muita dedicação e trabalho”, o Opala representa uma ascensão de status que teve início na mudança de um apartamento de dois quartos para uma casa de frente de rua.

Estamos em Piedade, subúrbio do Rio de Janeiro, e a ditadura militar entra em sua fase mais sanguinária. Jovens são presos e torturados, guerrilheiros morrem no coração do país e a propaganda do governo investe pesado em lemas – “Brasil, ame-o ou deixe-o” – e bravatas, como as obras faraônicas – a rodovia Transamazônica – e o milagre brasileiro.

Não há aqui nenhuma intelligentsia carioca, jovens dispostos a mudar o mundo com a música e suas leituras muito intelectuais, muito cultas, cheias de um vocabulário que diz todo o blablablá revolucionário capaz de mover as montanhas. Há Francisco, seu pai, sua mãe, sua irmã e uma aridez de subúrbio, que pouco a pouco vai se incendiando, sufocante, rompendo com o destino de ser “mais prudente, seguro e lucrativo acreditar no poder”. Essa uniformidade torta, de uma rebeldia asfixiada e envolta por figuras como a prima Marisa, falada na vizinhança porque “gostava muito de rapazes”, será chacoalhada quando a casa de Francisco servir de abrigo para o primo Carlos Alberto. A presença de Cacá, vindo do Espírito Santo por estar muito doente, acaba por estremecer de vez o que só precisava de um empurrãozinho – o confronto pais versus filhos versus primo, a irmã com uma quedinha por Cacá, o silêncio diante dos amigos da vizinhança; não demora para ficar clara a doença do primo e as inevitáveis diferenças entre aquela família, conformista, e as inflamações da juventude.

Escrito com sobriedade e afeto transbordante, Elefantes no Céu de Piedade é a crônica de um país fraturado – ontem como hoje. Fernando Molica parece usar toda a sua experiência como comentarista político para trazer as sutilezas do cotidiano que ressoam no Brasil pela lente do período mais cruel e vergonhoso da nossa história. Há aqui uma falsa paz, um sentimento de tremor que corre por baixo do texto como um rastilho de pólvora. E essa tensão, portanto, reside muito mais em si mesma do que nas possíveis consequências de sua existência. É como se Molica disparasse um alarme que nunca para de tocar, ribombando nas mais de 160 páginas feito um grito de desespero.

O excesso de descrições, poupando a curiosidade do leitor, talvez possam amainar o efeito duro, áspero, de seguir Francisco e suas inquietações de menino, porém nunca, não neste Brasil, impedem que nos preocupemos de forma genuína. Se a obviedade das trocas com o primo faz parte do jogo dramático que envolve Piedade – porque não poderiam ser diferentes –, o final não se furta a ser maduro: Fernando Molica assume o que precisa ser grave e espanta quaisquer resquícios de imaturidade.

Numa chave macro, temos aqui um livro de formação que aborda com coragem, em seu núcleo, a ditadura militar por uma ótica nem sempre privilegiada: o AI-5, sabemos, deu poder ao presidente tanto quanto ao guarda da esquina, e também a ditadura existia longe dos grandes centros, das grandes paisagens. O que Molica nos faz ver é a obrigatoriedade do desastre. A tragédia criada pelos militares independe dos dramas pequeno-burgueses ou da presença de um heroísmo guerrilheiro: um menino que vê sua família se despedaçar, questionando tudo e todos em busca de uma verdade menos cínica que aquela diariamente lhe transmitida, também é capaz de produzir um relato tão forte quanto todos os outros. Ainda bem.

Mateus Baldi


O Globo, 22/12/2021 Antônio Torres indica 'Elefantes no céu de Piedade', sobre a ditadura na ótica de um garoto de 11 anos

A dica de hoje de um livro de presente neste Natal é do querido escritor “quase conterrâneo” Antônio Torres, 81 anos, baiano de Junco.

Ele sugere “Elefantes no céu de Piedade”, romance de Fernando Molica publicado pela Patuá.

“A obra tem ao fundo os mandos e desmandos da ditadura militar, sob a ótica de um garoto que à época tinha 11 anos e aos poucos vai perdendo a inocência em relação às mentiras fabricadas pelo novo regime, nas quais a sua família acreditava. A trama é eletrizante.”

Ancelmo Góis


Revista Bula, 08/02/2022 Fernando Molica retrata a ditadura pelo olhar infantil

A distância do tempo tem possibilitado a uma nova geração de escritores voltar-se para o período em que a ditadura militar prevaleceu no continente sul-americano e compor, a partir dessa realidade histórica, uma representação ficcional modulada pela experiência da infância. Histórias capitaneadas por visões pueris sobre os anos de chumbo, nas quais a lente da inocência mantém os horrores praticados pelo regime ocultos num clima de aparente normalidade, criando testemunhas mudas de uma sociedade oprimida.

Bons romances, a exemplo de “Clarice”, de Roger Mello, e “Kramp”, da chilena Maria José Ferrada, mostram esses domos de alheamento que cobrem as crianças, os filhos submersos num universo lúdico refratário à atmosfera de insegurança e medo, aos ruídos da máquina de prisões e torturas. A passagem que melhor retrata esse sintoma está no estupendo “Formas de voltar para casa”, do também chileno Alejandro Zambra, que revive o governo sanguinário do general Augusto Pinochet: “Enquanto os adultos matavam ou eram mortos, nós fazíamos desenhos num canto. Enquanto o país se fazia em pedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a dobrar os guardanapos em formas de barcos, de aviões. Enquanto o romance acontecia, nós brincávamos de esconder, de desaparecer”.

Fernando Molica opera nesse mesmo procedimento figurativo o enredo de “Elefantes no Céu de Piedade”, seu novo romance. O narrador Francisco rememora um trecho de sua infância na década de 70, quando, aos 10 anos, morava no subúrbio carioca na companhia dos pais e da irmã mais velha. O comércio da família lhes permitia luxos da classe média, com dois carros na garagem, empregada e boa escola. Gozavam do milagre econômico propagandeado pelo governo militar, amparados no noticiário que apregoava a soberania nacional. Suas únicas preocupações eram com os subversivos, que praticavam terrorismo, assaltos a banco e sequestros.

Então chega a informação que um parente foi preso em circunstâncias imprecisas. Dias depois, o pai anuncia que um sobrinho vindo do Espírito Santo irá passar uma temporada com eles. Carlos Alberto, estudante de economia, ficará hospedado num quarto fora da casa, antes ocupado pela empregada repentinamente dispensada por algumas semanas. O que se alega é que o rapaz veio em busca de novos ares e de um especialista para o tratamento de um problema de saúde. “Fique tranquila. A doença dele está sob controle, nem nós, nem muito menos as crianças corremos perigo”, declara o homem à esposa.

Essa é a primeira aparição do jogo cifrado da escrita. Obviamente que a doença tem outro significado, tampouco a viagem foi um ato frugal. Assim como Zambra, Molica usa da ambivalência dos verbos esconder e desaparecer, de modo a parear as brincadeiras infantis ao cenário de aparências que os adultos instavam para refugiar seus filhos. O narrador comenta o funcionamento desse mecanismo numa passagem: “Ser criança era viver num constante e mutável jogo de pique-esconde. Como se a brincadeira tivesse sido adaptada pelos mais velhos e recriada para ocultar ou, pelo menos, tornar palatáveis episódios que, na visão adulta, não seria compatíveis com o universo infantil. Um jogo interminável, de sucessivas camadas. Embates e narrativas familiares que seguiam, descobriria depois, o padrão utilizado pelo governo para esconder ou manipular os fatos”.

Ao contar de dentro, como testemunho, o autor explora a dimensão desses gestos camuflados na psicologia da convivência, evidenciando o impacto dessa dissimulação entre os integrantes da casa. Os que nada sabem, os que fingem que não sabem e sobre quem precisa-se esconder o que se sabe. A manutenção dessa mise-en-scène é realizada, portanto, pelo roteiro daquele (ou daquilo) que se revela ameaça. Celebra-se os feitos do regime e os valores tradicionais enquanto se vela um desvio, cuspindo moralismo contra a sobrinha namoradeira, o adolescente que fuma, as irmãs solteiras que saem da casa dos pais e vão morar, sozinhas, num apartamento alugado.

É nesse contexto altamente atraente que se revela, aliás, os mais interessantes componentes da trama: a verossimilhança dos personagens e de seus dramas internos, as vieses domésticas dentro da reconstrução do painel histórico, a naturalidade dos diálogos, ainda que alguns soem um tanto expositivos. O leitor é tragado para o espaço do subúrbio de outrora, uma representação mimética que parece constituída da combinação de força da imaginação e experiência pessoal, passeando por arquiteturas urbanas e memorabilia que os estreitam como que num corpo-a-corpo com o real, o regaste de um passado poroso que dá a dimensão vibrante do vivido.

Ser uma espécie de cúmplice desse momento faz com que se construa um vínculo emocional com o menino, sobretudo quando este começa a divisar por entre as rachaduras que se abrem nas máscaras, decretando o fim da inocência pouco a pouco, a formação oblíqua num crescendo de descobertas e espantos. “Elefantes no céu de Piedade”, afinal, é um livro sobre como o desconhecimento pode ser (invariavelmente) um veio tênue para a condenação. Uma forma de voltar para casa pela memória e externar, pela memória, toda a vilania e crueldade de uma ditadura militar que prendeu, que torturou, que matou, que desapareceu pessoas, famílias. Um relato sobre aqueles que precisam ser lembrados e, principalmente no Brasil de hoje, para aqueles não querem seguir esquecendo.

Sérgio Tavares


Camilla e seus livros, 03/08/2022 Uma ótima leitura

Em “Elefantes no céu de Piedade”, autoria de Fernando Molica,  temos um narrador que relembra episódios familiares no período de repressão militar.

Não é um romance de formação, mas a voz narrativa é de uma criança que nos mostra seu olhar cheio de dúvidas sobre a suposta “revolução” e as torturas que ouvia dizer, entre a bonança do milagre financeiro que contribuiu para a ascensão da família e o medo pelas prisões do tio e do primo por envolvimento com os subversivos.

É nessa atmosfera de interrogações, dentro da cabeça de um menino, que o autor constrói a história e nos mostra como foi um período turbulento e cheio de receios, até para aqueles/as que apoiavam o regime.

Não podemos considerá-lo um documento histórico, mas enquanto texto literário, pode despertar no/a leitor/a interesse em saber mais sobre este período e todas as mazelas que causou.

Foi uma ótima leitura!

Camilla Dias


Blog de Vivian de Moraes Dica de leitura

O mais recente lançamento de Fernando Molica é um romance que apresenta uma deliciosa reconstrução histórica do início dos anos setenta em contraponto ao difícil momento político da época. O longo período, conhecido como ditadura militar brasileira, foi constituído por sucessivos governos que se alternaram no comando do poder Executivo, por meio dos generais: Castello Branco (1964-67), Costa e Silva (1967-69), Garrastazu Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João Figueiredo (1979-85). O livro tem a sua ação focada durante o governo Médici, quando a repressão aos movimentos de esquerda se intensificou, assim como a propaganda institucional representada por slogans como o “Brasil Ame-o ou Deixe-o!”.

O autor procura recontar esse período histórico de uma forma diferente, pelo ponto de vista ingênuo de uma criança de dez anos, um protagonista que tenta compreender o que está acontecendo à sua volta e é influenciado pela postura dos pais, familiares e amigos. De fato, o distanciamento político era característico nas famílias brasileiras. De um lado o sequestro a diplomatas e assaltos a banco pelos movimentos de esquerda e, do outro, pessoas sendo torturadas e mortas nos porões da ditadura. Neste ambiente, a recomendação dos pais era para que os filhos não se envolvessem com política, assunto evitado e proibido, portanto.

Um fato que contribuiu muito para a apatia política generalizada foi a exaltação do “milagre econômico” brasileiro com grandes obras de infraestrutura e o aumento da taxa do PIB o que, juntamente com a propaganda ufanista de direita, criou na população a expectativa de crescimento econômico e oportunidades. O lançamento do Opala, antes da crise do petróleo, é um símbolo desta fase, destaque no capítulo inicial do romance, quando a compra do novo carro, em substituição ao tradicional Fusquinha, é uma demonstração do progresso do país.

“O que mais me impressionou foi o tamanho do banco dianteiro. Imenso, contínuo, sem aquela divisão de onde, no Fusca, brotava a alavanca usada para a troca de marchas. Era bem diferente, a haste do câmbio ficava presa ao volante, liberava espaço, fazia com que na frente do carro houvesse quase uma cama. Haveria espaço também para mim, entre meu pai e minha mãe, talvez fosse preciso revezar com Fátima, minha irmã; um dia ela, no outro, eu. Mas, na estreia, na primeira volta, o lugar seria meu, claro que seria. Não daria pra ficar triste quando tivesse que ir para o banco traseiro, também espaçoso e confortável, em nada parecido com o do Fusquinha: duro, apertado, de lá era difícil até ver o que se passava do lado de fora. Para chegar aos meus olhos, o mundo precisava se espremer e só então penetrar por janelinhas esquisitas, triângulos de pontas arredondadas, vidros que só podiam ser abertos um pouquinho, e no sentido oposto ao da entrada do ar. Para que algum vento chegasse aos passageiros seria preciso que o veículo rodasse em marcha ré. No Opala, a conversa seria outra, havia janelas amplas também no banco traseiro, eu receberia na cara o ar quente do Rio, vento que jogaria meus cabelos para trás.” (pp. 7-8)

A vida da famíla de classe média, narrada em primeira pessoa por Francisco, incluindo sua irmã Fátima de treze anos e os pais, transcorre tranquilamente no bairro de Piedade, no Rio de Janeiro, mas uma série de eventos irá afetar radicalmente o cotidiano de todos, iniciando com a chegada de um misterioso primo do Espírito Santo para um pretenso tratamento de saúde e, também, da suspeita do envolvimento de um outro parente em um assalto a banco para financiamento de ações de movimentos políticos de esquerda.

“Estava certo, sim, fazer o quê? Lembrei da música do Caetano que Roberto Carlos tinha acabado de lançar. Tudo estava certo como dois e dois são cinco. A soma dos fatos narrados pelo meu pai fazia tanto sentido quanto o resultado da conta citada na canção. Receberíamos a visita de um parente que seria mantida em segredo, ninguém deveria saber de sua presença em nossa casa. Um rapaz que tinha uma doença que poderia e, ao mesmo tempo, não poderia ser passada para outras pessoas. As explicações tortas provaram que, sim, o resultado de dois mais dois poderia ser cinco. Como aprenderia anos depois na faculdade, números também podem ser torturados, constrangidos a expressar a verdade que interesse ao seu algoz. Meu pai elaborara uma equação torta, violência matemática que traria consequências sérias para nossa família, episódios que em muito superariam a brincadeira formulada pelo autor da música. […]” (pp. 38-9)

Aos poucos, fica evidente para o jovem protagonista que o primo Carlos Alberto não está doente de fato, mas fugiu de seu Estado por ser procurado pelas autoridades de repressão política locais. A situação de manter um foragido político escondido na própria casa altera toda a organização da família e o convívio com amigos e vizinhos, provocando diversos conflitos e a constatação do que realmente está ocorrendo no país, fatos, até então, de pouca relevância para todos. Este contraste entre a fase sombria da política brasileira e a vida de gente simples, morando em um subúrbio carioca, é o lance de mestre de Fernando Molica nesta obra, muito recomendada. Ah, sim! o curioso título ficará claro ao longo da leitura do romance, deixarei o prazer da descoberta com vocês, mais um dos méritos do autor nesta saborosa narrativa.

“Depois do futebol, a conversa com os amigos se revelaria estranha para mim. Os assuntos de sempre haviam se tornado dispensáveis, pouco interessantes, banais. Não disputei o direito de dar palpites sobre a menina de 13 anos, idade da Fátima, moradora da parte alta da rua e que, todo mundo sabia, deixava os garotos passarem a mão na sua bunda e pegar nos seus peitinhos. Isso não era para nós, meninos de 10, 11 anos, mas para os caras mais velhos, de 14, 15 anos, quase adultos. Um dos integrantes da roda garantiu que vira a tal menina trocar de roupa com a janela aberta, reparou nos seus peitos, no tufo de cabelo entre as pernas, Muito gostosa, cara! E, ó, quer saber?, ela me viu olhando, e nem deu bola, ainda abriu mais a janela – Piranha! – proclamou um dos meninos, para a concordância geral.” (pp. 92-3)

Vivian de Moraes


Livros_da_de, 03/02/2022 Bem escrito e envolvente

Elefantes no céu de Piedade foi um dos últimos livros que li em 2021. Que leitura gostosa! Agradeço demais à Valéria da @oasyscultural que sempre me manda livros nacionais de excelente qualidade e bom gosto.

O livro é narrado por Francisco, uma criança de dez anos. No início dos anos 70, plena ditadura militar no Brasil, sua família é aquela que prefere não ver os absurdos, a violência, e acredita que foi melhor assim: os militares salvaram o país dos comunistas e trouxeram enfim ordem e progresso para o Brasil (mais de cinquenta anos depois, ainda tem gente com medo do golpe comunista… as pessoas não aprenderam nada mesmo) . Chamavam os que eram contra o governo de terroristas e defendiam a repressão do governo.Só que, de uma hora pra outra, aparece na casa deles um primo jovem, estudante de economia, que segundo os adultos, veio do Espírito Santo para fazer um tratamento de saúde. Mas logo fica claro que não era nada disso: Carlos veio para fugir da policia política. E a confusão na cabeça do menino está feita: quem está certo, Carlos ou seus pais?

O final é devastador. Eu, que adoro os livros que retratam esse período, fiquei chocada. E o pior é pensar que a história pode ser real. Pra quem gosta do assunto, fica a recomendação – a gente lê muito rápido porque é bem escrito e envolvente, e a história com certeza vai mexer com você.

Denise Amazonas


Além de Machado, 20/10/2021 Vale muito ser lido

Quando criança, andava pelas ruas de Piedade sem imaginar que seus nomes poderiam ser mencionados em uma obra de ficção. No colégio, eu e meus amigos estávamos lendo, para a prova do bimestre, um livro que falava da Delfim Moreira, da Ataulfo de Paiva, de jovens, bem mais velhos que nós, andando de bicicleta pelo Leblon. Aquele cenário era muito diferente da minha realidade, e o protagonismo do bairro da Zona Sul na narrativa significava para mim que a Avenida Suburbana não tinha importância alguma em comparação com a Delfim Moreira. Eu, uma criança do subúrbio, estudando em um colégio da Zona Norte com um livro que discorria apenas sobre o Leblon, constatava que “o mundo passava longe de Piedade”, como diz o narrador do romance de Fernando Molica.

Essa distância pressupunha a ideia de cidade partida: do lado de lá estavam aqueles que poderiam protagonizar livros; do lado de cá, a gente, que deveria aprender com eles para conseguir estar do outro lado um dia. Do mesmo modo, tal condição implicava outra inferioridade, cuja explicação está na fala que Francisco, o narrador, recupera da avó: “Política, dizia, era para os grandões, não para nós, que somos pobres, moramos no subúrbio, não temos conhecimento, não temos estudo, eles é que sabem, melhor ficarmos quietos para não aguentarmos as consequências, a corda arrebenta sempre do lado mais fraco”. E a lógica era – ainda é, em muitos casos – mesmo essa. Da convivência com meus avós e tios, por exemplo, que moravam também em Piedade praticamente (Quintino fica ao lado, afinal), não me lembro de qualquer comentário político, qualquer menção à época da ditadura no país.

A regra do “eles é que sabem” demonstra que o distanciamento em relação a temas políticos acaba influenciando certa simpatia pelo poder que busca a ordem, o progresso, muitas vezes confundidos com alguma melhoria na vida de uma família de classe média do subúrbio carioca: “Ditadura, como assim? Governo que mata as pessoas? Não, não é possível, você deve estar exagerando […]. Aqui em casa mesmo a mamãe fala que agora temos ordem, que os militares acabaram com a bagunça, que tudo melhorou. A loja do papai vive cheia de clientes […]. Ele conseguiu comprar esta casa, comprou o Opala…”. A visão do menino é questionada pelo primo universitário, com quem estava convivendo havia poucos dias: “Francisco, por favor, você acha que o Brasil ficou bom porque o tio comprou um Opala? Só uns poucos melhoraram de vida, primo”.

A proximidade com o primo “subversivo” faz com que Francisco comece a vislumbrar outra perspectiva sobre o regime. Somado a demais acontecimentos familiares, é esse contato afetivo, marcado pelo fato de considerar Cacá “um cara legal”, que passa a proporcionar a ele alguns questionamentos: “Talvez os comentários de Cacá sobre tortura e abusos não fossem tão mentirosos assim”; “Pela primeira vez, achava que poderia não haver um lado sempre certo nas brincadeiras de polícia e ladrão”. Tal proximidade, no entanto, não era comum em Piedade (“o caso de nossa família era excepcional, perigoso”). Ao falar de seu bairro, o narrador revela uma sintomática característica da nossa cidade, do nosso país: estar ou manter-se afastado dos acontecimentos mascarava para muitas pessoas a realidade e, consequentemente, contribuía para que elas apoiassem a ordem, repetissem chavões, engrossassem o coro, assim como acontece hoje em dia.

Por causa desse diálogo com a atualidade, mas não só por isso, “Elefantes no céu de Piedade” vale muito ser lido. É uma obra que ajuda a elucidar questões ainda confusas para nós, como o apoio de grande parcela social a governos autoritários, desumanos, cruéis com essa mesma população que lhes é favorável. Muitas vezes, a cabeça confusa de Francisco – reflexo do pensamento dos pais -, que confunde a troca do fusca pelo opala com o progresso social da nação, é a cabeça do cidadão que acompanha de longe, ou simplesmente não acompanha, os rumos políticos do país.

Ao final do romance, o narrador afirma que “memória é também construção”, mas em outro momento alerta: “É preciso ter cuidado com a construção da memória que diz respeito à história coletiva”. Enquanto é possível preencher lacunas da memória individual a partir do imaginário, uma vez que o tempo faz com que determinadas lembranças pessoais fiquem esparsas ou contraditórias, não podemos fazer o mesmo com a memória coletiva. Nesse sentido, cabe registrar o que Beatriz Sarlo comenta em seu livro Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva: “A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura e o é na maioria dos países da América Latina […]. A ideia do ‘nunca mais’ se sustenta no fato de que sabemos a que nos referimos quando desejamos que isso não se repita […]. Os atos de memória foram uma peça central na transição democrática […]. Nenhuma condenação teria sido possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não tivessem existido”.

Diante disso, “Elefantes no céu de Piedade”, ao abordar a perspectiva de uma família de classe média do subúrbio carioca a respeito da ditadura brasileira, nos faz refletir sobre a construção dessa memória coletiva e, ao mesmo tempo, salienta como é importante conhecer a história, esta escrita com inicial maiúscula, para termos consciência do significado de “nunca mais”. Não à toa Francisco passa a questionar certos pensamentos somente após conviver com alguém que posteriormente sofreria nas mãos das autoridades; não à toa Eneida, sua mãe, esboça desconfiança dessas mesmas autoridades apenas quando testemunha a forma como o irmão foi preso (“era a primeira vez que eu via minha mãe manifestar algum tipo de questionamento em relação ao governo”).

A crença na ideia de que “falar de política só traz problema, isso é com o governo, não é com a gente”, que paira sobre Piedade – representação metonímica de muitos lugares do Brasil -, permite que elefantes sobrevoem o céu daquele bairro, de outras regiões, de um país inteiro e, ainda assim, sejam ignorados. O problema, como a narrativa atesta, é que uma hora acabamos sentindo o grande peso que passa a assolar nossas vidas.

Thais Velloso


Benditos Livros, 06/12/2021 História que mexeu com a minha paz

Mais uma vez digo : 2021 é o ano no qual os livros curtos ganharam o meu coração. Em pouco mais de 150 páginas, Fernando Molica, em” Elefantes no céu de Piedade”, conseguiu entregar uma história que mexeu com a minha paz.

 

Nesse livro temos Francisco, um menino típico do subúrbio carioca , que está vendo a vida de sua família prosperar durante a ditadura, e que não tem motivos para duvidar do que ouve sobre o governo militar na escola e na TV.

Isso até o momento em que conhece o primo Carlos Alberto, jovem universitário que vem passar uma temporada na casa da família, no Rio de Janeiro.

Essa visita inesperada vai provocar uma ruptura familiar, quebrar o encanto da infância e trazer muitos aprendizados. Francisco e o leitor vivenciarão pequenas e grandes descobertas sobre o cotidiano social, sobre as relações familiares e sobre o que realmente foi construído ( e destruído) no país sob o discurso do crescimento econômico e a segurança politica.

Ver acontecimentos tão duros pelos olhos de um menino do subúrbio foi uma boa maneira de suavizar o impacto da narrativa histórica e também de discutir como a memória pode ser fluida, um constante exercício de construção e desconstrução .
Hoje somos capazes de enxergar que a narrativa oficial era bem diferente da realidade vivida, e que a ditadura brasileira, período sombrio da nossa história, ainda é repetidamente subestimado .

Contudo, é preciso ler, aprender, e nunca esquecer. Fernando Molica, em poucas páginas, apresenta uma história delicada e dolorosa que mexeu comigo.

Seus elementos de não ficção mostram atos e fatos que desconhecemos, ou que relevamos com o passar dos anos.

Obrigada, @oasyscultural, por mais um livro incrível!

Luana Gomes


Chimarrão e Livros, 27/11/2021 Um céu nublado para ilustrar Elefantes no Céu de Piedade, de Fernando Molica

Narrado em primeira pessoa por Francisco, um menino que se muda com os pais para uma nova casa. O livro se passa na década de 70, durante a ditadura militar e vamos conhecendo as impressões do menino sobre esse período, muito pautadas pelo pensamento dos pais.

O pai de Francisco está prosperando, vendo o negócio crescer, comprando uma nova casa e um novo carro para a família e, como muitos que viveram durante esse período, acreditavam que por eles e as pessoas ao seu redor estarem bem, aqueles que eram contra a ditadura estavam errados.

Tudo ia muito bem, até que um novo elemento entra em cena e, Francisco, com a curiosidade típica de uma criança, passa a questionar todos e a se perguntar se o que os pais e professores dizem é mesmo verdade.

O livro é super fluido e é fácil se envolver com os personagens criados pelo autor. A ditadura é plano de fundo e parte central do enredo, mas o livro vai além: fala da vida em família, de segredos, descobertas e do fim da inocência.

Preciso destacar o epílogo, que fala sobre memória de uma forma linda!

É daqueles livros importantes demais, é uma ficção, mas com aquele toque de realidade necessário.

Danielle Gonzales


Mundo de K Deliciosa reconstrução histórica do início dos anos setenta

O mais recente lançamento de Fernando Molica é um romance que apresenta uma deliciosa reconstrução histórica do início dos anos setenta em contraponto ao difícil momento político da época. O longo período, conhecido como ditadura militar brasileira, foi constituído por sucessivos governos que se alternaram no comando do poder Executivo, por meio dos generais: Castello Branco (1964-67), Costa e Silva (1967-69), Garrastazu Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João Figueiredo (1979-85). O livro tem a sua ação focada durante o governo Médici, quando a repressão aos movimentos de esquerda se intensificou, assim como a propaganda institucional representada por slogans como o “Brasil Ame-o ou Deixe-o!”.

O autor procura recontar esse período histórico de uma forma diferente, pelo ponto de vista ingênuo de uma criança de dez anos, um protagonista que tenta compreender o que está acontecendo à sua volta e é influenciado pela postura dos pais, familiares e amigos. De fato, o distanciamento político era característico nas famílias brasileiras. De um lado o sequestro a diplomatas e assaltos a banco pelos movimentos de esquerda e, do outro, pessoas sendo torturadas e mortas nos porões da ditadura. Neste ambiente, a recomendação dos pais era para que os filhos não se envolvessem com política, assunto evitado e proibido, portanto.

Um fato que contribuiu muito para a apatia política generalizada foi a exaltação do “milagre econômico” brasileiro com grandes obras de infraestrutura e o aumento da taxa do PIB o que, juntamente com a propaganda ufanista de direita, criou na população a expectativa de crescimento econômico e oportunidades. O lançamento do Opala, antes da crise do petróleo, é um símbolo desta fase, destaque no capítulo inicial do romance, quando a compra do novo carro, em substituição ao tradicional Fusquinha, é uma demonstração do progresso do país.

“O que mais me impressionou foi o tamanho do banco dianteiro. Imenso, contínuo, sem aquela divisão de onde, no Fusca, brotava a alavanca usada para a troca de marchas. Era bem diferente, a haste do câmbio ficava presa ao volante, liberava espaço, fazia com que na frente do carro houvesse quase uma cama. Haveria espaço também para mim, entre meu pai e minha mãe, talvez fosse preciso revezar com Fátima, minha irmã; um dia ela, no outro, eu. Mas, na estreia, na primeira volta, o lugar seria meu, claro que seria. Não daria pra ficar triste quando tivesse que ir para o banco traseiro, também espaçoso e confortável, em nada parecido com o do Fusquinha: duro, apertado, de lá era difícil até ver o que se passava do lado de fora. Para chegar aos meus olhos, o mundo precisava se espremer e só então penetrar por janelinhas esquisitas, triângulos de pontas arredondadas, vidros que só podiam ser abertos um pouquinho, e no sentido oposto ao da entrada do ar. Para que algum vento chegasse aos passageiros seria preciso que o veículo rodasse em marcha ré. No Opala, a conversa seria outra, havia janelas amplas também no banco traseiro, eu receberia na cara o ar quente do Rio, vento que jogaria meus cabelos para trás.” (pp. 7-8)

A vida da famíla de classe média, narrada em primeira pessoa por Francisco, incluindo sua irmã Fátima de treze anos e os pais, transcorre tranquilamente no bairro de Piedade, no Rio de Janeiro, mas uma série de eventos irá afetar radicalmente o cotidiano de todos, iniciando com a chegada de um misterioso primo do Espírito Santo para um pretenso tratamento de saúde e, também, da suspeita do envolvimento de um outro parente em um assalto a banco para financiamento de ações de movimentos políticos de esquerda.

“Estava certo, sim, fazer o quê? Lembrei da música do Caetano que Roberto Carlos tinha acabado de lançar. Tudo estava certo como dois e dois são cinco. A soma dos fatos narrados pelo meu pai fazia tanto sentido quanto o resultado da conta citada na canção. Receberíamos a visita de um parente que seria mantida em segredo, ninguém deveria saber de sua presença em nossa casa. Um rapaz que tinha uma doença que poderia e, ao mesmo tempo, não poderia ser passada para outras pessoas. As explicações tortas provaram que, sim, o resultado de dois mais dois poderia ser cinco. Como aprenderia anos depois na faculdade, números também podem ser torturados, constrangidos a expressar a verdade que interesse ao seu algoz. Meu pai elaborara uma equação torta, violência matemática que traria consequências sérias para nossa família, episódios que em muito superariam a brincadeira formulada pelo autor da música. […]” (pp. 38-9)

Aos poucos, fica evidente para o jovem protagonista que o primo Carlos Alberto não está doente de fato, mas fugiu de seu Estado por ser procurado pelas autoridades de repressão política locais. A situação de manter um foragido político escondido na própria casa altera toda a organização da família e o convívio com amigos e vizinhos, provocando diversos conflitos e a constatação do que realmente está ocorrendo no país, fatos, até então, de pouca relevância para todos. Este contraste entre a fase sombria da política brasileira e a vida de gente simples, morando em um subúrbio carioca, é o lance de mestre de Fernando Molica nesta obra, muito recomendada. Ah, sim! o curioso título ficará claro ao longo da leitura do romance, deixarei o prazer da descoberta com vocês, mais um dos méritos do autor nesta saborosa narrativa.

“Depois do futebol, a conversa com os amigos se revelaria estranha para mim. Os assuntos de sempre haviam se tornado dispensáveis, pouco interessantes, banais. Não disputei o direito de dar palpites sobre a menina de 13 anos, idade da Fátima, moradora da parte alta da rua e que, todo mundo sabia, deixava os garotos passarem a mão na sua bunda e pegar nos seus peitinhos. Isso não era para nós, meninos de 10, 11 anos, mas para os caras mais velhos, de 14, 15 anos, quase adultos. Um dos integrantes da roda garantiu que vira a tal menina trocar de roupa com a janela aberta, reparou nos seus peitos, no tufo de cabelo entre as pernas, Muito gostosa, cara! E, ó, quer saber?, ela me viu olhando, e nem deu bola, ainda abriu mais a janela – Piranha! – proclamou um dos meninos, para a concordância geral.” (pp. 92-3)

Alexandre Kovacs


Jornalistas e cia Fernando Molica lança livro sobre ditadura no subúrbio

‘Elefantes no céu de Piedade’ é o novo romance que Fernando Molica lança pela editora Patuá. O enredo situa-se no início dos anos 1970 e tem como foco uma família suburbana, moradora do bairro de Piedade, no Rio de Janeiro, favorável à ditadura de 1964. A harmonia é interrompida pela chegada de um primo capixaba que precisa passar uma temporada na casa dos parentes.

Apesar de ser difícil de precisar como surgiu a ideia deste livro, por ser ficção, o autor arrisca dizer que talvez tenha nascido da constatação de que os livros sobre a ditadura, de ficção ou não ficção, têm seu foco na classe média alta e mais intelectualizada, um universo de onde partiram diversos movimentos. “Na minha infância, eu tinha uma vivência suburbana, diferente disso”, afirma.

A sensação de ordem proporcionada pela ditadura e o “milagre econômico”, que elevou o poder aquisitivo de parte da população, fizeram com que as pessoas vissem com muita reserva os movimentos de contestação. No livro, a família é colocada diante de um impasse que tem a ver com a ditadura. O autor quis elaborar a maneira como diferentes setores da sociedade apreenderam aquele período, que pôde ser mais bem trabalhado na ficção, por dar mais liberdade que o jornalismo. E lembra que temos um presidente que, desde a campanha eleitoral, nunca escondeu sua simpatia pela ditadura e, mesmo assim, foi eleito.

Molica nasceu no Rio de Janeiro e foi criado no bairro de Piedade. É autor de cinco romances, foi duas vezes finalista do Prêmio Jabuti, e teve dois de seus livros lançados na Alemanha e na França. Também publicou livro-reportagem, um infanto- -juvenil, e tem contos editados em diversas antologias. Depois de passar por algumas redações, atualmente é comentarista da CNN Brasil.


Portal Anna Ramalho Segunda listinha de Natal – a missão

Já aquele tio que sente saudade dos anos de chumbo pode se interessar pelas recordações de uma infância ficcional na Zona Norte do Rio nos anos 60/70 em Elefantes no céu de piedade (Patuá, R$ 45), de Fernando Molica. A rotina de um menino se transforma quando sua família de classe média típica precisa abrigar um parente que se tranca na casa e esconde um passado misterioso. O menino observar as estranhezas do comportamento dos adultos, que não comentam também a prisão de um tio depois do assalto ao banco em que ele trabalhava. Um trabalho sensível e primoroso de reconstituição de uma época em que pequenos e grandes segredos turvam a inocência das crianças. 

Olga de Mello


Site Lu Lacerda – coluna De próprio punho A ficção trata da dor que não sai no jornal

Meu romance “Elefantes no céu de Piedade” (Editora Patuá) é talvez resultado da constatação de que a maioria dos relatos publicados em livro sobre a ditadura implantada em 1964 privilegiou um olhar da classe média; mais, de uma classe média intelectualizada e mais afinada com a oposição aos militares.

Não conheço, claro, toda a produção literária referente ao período, mas arrisco dizer que esses livros, de ficção ou não-ficção, tendem a apresentar/justificar dúvidas e comportamentos relacionados à busca da melhor maneira de se enfrentar o arbítrio. No limite, uma escolha entre a adesão a um projeto de guerrilha ou a opção por uma resistência pacífica. Muitos traduzem na perspectiva individual o dilema que fez rachar a esquerda nos anos 1960.

São livros que têm como protagonistas jornalistas céticos ou engajados, líderes estudantis, militantes veteranos, políticos desiludidos ou comprometidos com mudanças sociais; homens e mulheres moradores da zona sul do Rio ou de áreas nobres de São Paulo, que frequentavam escolas ou faculdades particulares de elite ou instituições públicas de referência, como colégios de aplicação. Quase todos circulavam em ambientes que não correspondiam ao universo que eu havia vivenciado na minha infância e adolescência.

Em Piedade, subúrbio carioca onde eu morava, pouco se falava de política –o assunto, pelo menos, não entrava nas conversas de meus pais, tios e de seus amigos. O medo da repressão e a censura à imprensa colaboravam para o silêncio, mas havia também outras explicações, temas ainda hoje incômodos, como uma determinada aprovação aos governos militares.

Eram tempos de milagre brasileiro, de crescimento econômico, de boom da Bolsa de Valores, quando foi registrado o aumento do poder aquisitivo de parte considerável da população. Havia também um sentimento de ordem e de organização, algo que contrastava com a agitação de anos anteriores.

Presidente no período mais duro da ditadura, o general Emílio Garrastazu Médici era aplaudido quando ia ao Maracanã com radinho de pilha colado à orelha, cidadãos expunham em seus carros adesivos como o que pregava amar ou deixar o Brasil. Notícias relativas à atuação de grupos envolvidos com a tentativa de luta armada — assaltos a banco, sequestros de diplomatas — geravam insegurança e apreensão, pelo menos no meu mundo.
Não se pode generalizar, é mais do que razoável supor que em Piedade e em tantos outros bairros periféricos havia inconformismo e revolta com a ditadura. Mas é impossível negar que, em muitos setores, havia uma avaliação positiva do regime – ecos dessa aprovação chegam à atualidade, levam multidões às ruas, fomentam gritos por implantação de uma nova ditadura, tiveram influência decisiva na eleição de 2018. Construído com base na escravidão, o país naturalizou a violência ao longo de sua história; até hoje boa parte da população aceita e justifica a tortura.
A conciliação que viabilizou o projeto de entrega do poder aos civis serviu também para impedir uma maior discussão sobre o impacto da ditadura no Brasil; A tentativa de negação da história tem consequências trágicas, impede a correta e necessária análise de crimes, erros e responsabilidades, permite a disseminação de versões que minimizam o horror praticado naquele período.
Até por ser jornalista, respeito e me submeto aos fatos. Mas sei também que a objetividade jornalística não dá conta de tudo, muitas vezes não chega ao que não é dito, ao que não é revelado, que não consta de documentos. A ficção é fundamental para que possamos ao menos tatear o que não se revela, o que se esconde.
‘Elefantes no céu de Piedade’ nasce, portanto, do desejo de narrar uma história que ainda não tivesse sido contada, a de uma família suburbana, conservadora e simpática ao regime que, em determinado momento, se vê às voltas com contradições relacionadas ao seu apoio à ditadura.

Trata de uma dor que, como no samba de Luís Reis e Haroldo Barbosa, não sai nos jornais. É uma ficção, ainda que ancorada em uma realidade que vivenciei, do jeito que dela me recordo, da maneira que poderia ter acontecido se aqueles personagens fossem reais.
Histórias privadas não são dissociadas de outras, mais gerais, que envolvem a sociedade como um todo. Essa interação gera conflitos importantes, capazes de possibilitar narrativas aqui e ali incômodas, mas que podem acrescentar novos elementos à história de cada um de nós. Elefantes, voadores ou não, são grandes e pesados demais para que sejam ignorados.


Site da Oasys Cultural Entrevista

Elefantes no céu de Piedade” (Ed. Patuá), novo romance do escritor e jornalista Fernando Molica, se passa no início dos anos 1970 e tem como foco uma família suburbana, moradora do bairro de Piedade (RJ), favorável à ditadura de 1964. A aparente harmonia é interrompida pela chegada de um primo capixaba, universitário que, motivos de saúde, precisa passar uma temporada na casa dos parentes. Logo descobrem que o rapaz não está doente, mas saiu de seu estado por ser procurado pela polícia política. Leiam a entrevista com com o autor.

Vamos começar pelo instigante título do seu livro: por que “Elefantes no céu de Piedade?

R: O título tem a ver com uma piada sobre dois mineiros que ouvi há alguns anos. Uma piada que trata de pessoas que fingem não ver a realidade, que tentam ignorar o óbvio, que tentam assim fugir do inevitável. Ao escrever o livro, achei que poderia usar essa historinha para o meu romance.

Um dos atrativos do romance é a minuciosa reconstrução histórica, com detalhes sobre automóveis, utensílios e canções dos anos 60 e 70. Fez pesquisa para compor esse “acervo”? Ou guarda tudo na cabeça? Ou usou a imaginação?

R: Citei quase tudo de memória, era criança nos anos 1960, comecei a entrar na adolescência na década seguinte. O que tive foi o cuidado de checar as informações. Houve também a preocupação de não fazer com que esses detalhes atrapalhassem a narrativa, são apenas elementos que integram a história, não podem substituí-la, disputar os holofotes com ela.

A ditadura é pouco abordada em obras de ficção no Brasil. Na Argentina, ao contrário, os anos de chumbo são tema recorrente. Por que essa diferença entre países tão próximos e que viveram esse drama quase ao mesmo tempo?

R: A abrangência da ditadura argentina foi muito maior. A população deles é muito menor que a nossa, mas o número de desaparecidos durante os governos militares é em torno de dez vezes superior ao registrado aqui. A matança produzida por lá gerou mais cicatrizes na sociedade. Além disso, há na Argentina um histórico de mobilização política muito maior que o nosso.(continua nos comentários).

Tal qual o protagonista de seu livro, você também era criança, em Piedade, no período da ditadura. Quais são suas lembranças pessoais daquela época?

R: O livro é uma ficção, mas é claro que usei muito da minha memória, inclusive em relação à avaliação que se fazia do regime militar. Havia um medo da repressão, mas também aprovação à lógica de ordem implantada pela ditadura. E, principalmente, havia entusiasmo pelos resultados do tal milagre econômico. Naquele início dos anos 1970 muitos ganharam dinheiro, havia a ilusão do Brasil grande, a Bolsa de Valores batia recordes. Ações de grupos de esquerda, como sequestros de diplomatas e assaltos a bancos geravam medo, apreensão em Piedade.O Brasil vive agora algo semelhante ao que se passou na década de 60? Acredita que a literatura é capaz de ajudar numa tomada de consciência, à semelhança do que acontece em seu romance?R: Os processos são diferentes. Nos anos 1960 havia uma ditadura, pessoas foram presas, perseguidas, torturadas. É bem diferente do que ocorre hoje, apesar das ameaças autoritárias. Não vejo na literatura um poder de mudar a consciência das pessoas, mas acredito na sua capacidade de enxergar o outro, de lançar alguma luz sobre o que está nas sombras. O atual presidente nunca escondeu sua simpatia pela ditadura, e mesmo assim foi eleito. É preciso tentar entender as razões dessa certa saudade do autoritarismo que se manifesta em parte da população.


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O que mais me impressionou foi o tamanho do banco dianteiro. Imenso, contínuo, sem aquela divisão de onde, no Fusca, brotava a alavanca usada para a troca de marchas. Era bem diferente, a haste do câmbio ficava presa ao volante, liberava espaço, fazia com que na frente do carro houvesse quase uma cama. Haveria espaço também para mim, entre meu pai e minha mãe, talvez fosse preciso revezar com Fátima, minha irmã; um dia ela, no outro, eu. Mas, na estreia, na primeira volta, o lugar seria meu, claro que seria. Não daria pra ficar triste quando tivesse que ir para o banco traseiro, também espaçoso e confortável, em nada parecido com o do Fusquinha: duro, apertado, de lá era difícil até ver o que se passava do lado de fora. Para chegar aos meus olhos, o mundo precisava se espremer e só então penetrar por janelinhas esquisitas, triângulos de pontas arredondadas, vidros que sóâpodiam ser abertos um pouquinho, e no sentido oposto ao da entrada do ar. â Para que algum vento chegasse aos passageiros seria preciso que o veículo rodasse em marcha ré. No Opala, a conversa seria outra, havia janelas amplas também no banco traseiro, eu receberia na cara o ar quente do Rio, vento que jogaria meus cabelos para trás.

Bancos, janelas, carroceria imponente, buzina grave que condenaria ao folclore familiar o ganido rouco que tanto marcava o carrinho antigo, cápsula que, embora simpática, apertava pessoas, malas e motor. Veículo resistente, econômico, duro na queda, quase sinônimo de automóvel. Presente na infância, nas lições de direção, nos relatos que os mais velhos faziam de seus primeiros amassos da juventude. Não seria abandonado, continuaria na família, segundo carro, o carro da mulher, da minha mãe, algo que revelava modernidade – não era comum vê-las ao volante –, e machismo, a elas cabia o veículo menor, acanhado, mais barato, menos potente. Diante daquele Opala quatro portas, verde musgo, teto de vinil, pneus com banda branca, friso preto ao longo das laterais, motor de 2.500 cilindradas, quatro cilindros, 80 HP, não havia como pensar no Fusca 67 e suas insignificantes 1.300 cilindradas e seus 46 cavalinhos. A mudança era concreta, palpável. Os tempos eram outros, eu, meu pai, minha mãe e minha irmã admirávamos, cercávamos e alisávamos a nova conquista familiar; mais que um carro, referência de progresso, marco de uma vida que melhorava à custa de muita dedicação e trabalho. Degraus que iam sendo galgados aos poucos, mas com regularidade; esforço recompensado, proporcional ao investimento, à luta do meu pai.

Primeiro fora a recente mudança do apartamento de dois quartos para uma casa de frente de rua, construção que já não preservava algumas de suas características originais, havia sido vítima de mudanças influenciadas pela nova capital, alterações que trocaram adornos por linhas retas, que impunham esquadrias de alumínio no lugar das janelas de madeira, que limaram frontões decorados com imagens religiosas pintadas em azulejos. Uma faxina estética que tentava apagar vestígios do passado, que antecipava um futuro sem arestas e curvas, um porvir que seria limpo, organizado, impositivo. A nossa casa, que sucumbira ao furacão arquitetônico que soprava do Planalto Central, encaixava-se no sonho expansionista de minha mãe, que na infância dividira quartos com tantos irmãos. Sempre sonhei em morar num lugar assim, disse, ao passar a mão direita sobre textura irregular que revestia as paredes da varanda.

Havia três quartos, fora o de empregada, o da Jandira, que ficava grudado à cozinha. O quintal da frente era delimitado por um muro azul com moldura branca e que, como quase todos os outros da rua, ainda era baixo, não fora espichado por razões de segurança, permitia um diálogo da casa com o mundo exterior, atuava mais como um definidor de espaço, não como obstáculo. Tínhamos mangueira, caramboleira; no canto esquerdo, um jardim com rosas – pedido de minha mãe, queria uma roseira que nos desse flores brancas, como as que circundavam o andor de Nossa Senhora nas procissões que vinham da Igreja Divino Salvador e fechavam o trânsito da Avenida Suburbana. Havia uma área nos fundos, piso de um mosaico composto de cacos de cerâmica nas cores vermelha, preta e amarela, um bom lugar, meu pai destacava, para churrascos, pequenas comemorações familiares. Tudo era grande, amplo, imenso, talvez por contraste com o apartamento, talvez por conta dos meus olhos e do meu corpo de criança. Na época não teria como saber que, revisitados em idade adulta, lugares tendem a se revelar menores que na memória, como se a régua que existisse nas nossas cabeças fosse sendo adaptada ao nosso crescimento. A volta física a um desses locais costuma ser decepcionante, os espaços quase sempre se apresentam menores, acanhados. Mas, naquele momento de conquistas, as verdades nos chegavam de maneira evidente, segura e grandiosa; como o Opala e a nova casa, a vida era feita de certezas, não havia espaço para dúvidas.

Os assaltos eram raros, mas não custava prevenir, as janelas foram guarnecidas com grades de ferro formadas por losangos verticais que se reproduziam e alongavam nossa sensação de segurança, de inviolabilidade. Sentimento reforçado, a cada madrugada, pelo apito que marcava a ronda do guarda noturno, que, sem armas, percorria o quarteirão para inibir eventuais invasores de casas. A garagem com espaço para dois carros e o ar-condicionado instalado no quarto dos meus pais, de frente para a rua, foram outras conquistas. A caixa retangular e barulhenta, tão exclusiva e rara naquela época, naquela rua e naquele bairro, era outro sinal de progresso e de ascensão proporcionados pela tranquilidade no país. Sem bagunça ficava mais fácil trabalhar, produzir, vender. Minha mãe contava como haviam sido difíceis os anos de confusão, de greves. Meu pai, com dois filhos pequenos, chegara a fazer estoque de comida em casa, medo de um caos no abastecimento. Tempos que ficaram para trás, depois da Revolução havia ordem e progresso – como na bandeira, frisava. O constante aumento no volume de vendas da loja em Madureira também ressaltava a necessidade de organização, de pulso firme. Graças ao seu comércio, o bairro suburbano era o campeão de recolhimento de ICMS do Estado da Guanabara, como meu pai repetia pelo menos uma vez por semana.

A opção pelo Opala foi resultado de um misto de ousadia e de contenção, fórmula que bem definia a nossa família. Chegamos a visitar uma concessionária que oferecia um Dodge Dart, uma daquelas banheiras tão ao gosto norte-americano de então. Numa rua acanhada como a nossa, um Dodge Dart teria efeito semelhante ao provocado pelas alegorias que coloriam a Presidente Vargas nos desfiles de carnaval. Na mala, meu pai observou, rindo, daria para transportar um Fusca. Mas o carro era beberrão, seus oito cilindros demandavam muita gasolina, um litro para rodar quatro quilômetros. O combustível era barato, ninguém falava em crise de petróleo, o governo garantia que também nesse setor tudo estava certo, tranquilo, não haveria surpresas. Mas a prudência falou mais alto, nada de ir além das próprias pernas, um passo de cada vez, o importante era garantir avanços seguros e consistentes. Como num comercial da TV feito pelo governo, estrelado por trapezistas. Um deles se lançava no ar, fazia uma pirueta, emendava num salto mortal e, depois, agarrava firme as mãos do parceiro que o esperava no momento e no ponto certos. Movimentos coordenados, combinação de força, treinamento e precisão. Havia um close nas mãos dos artistas quando o homem voador era resgatado no ar por outro integrante de seu time. A voz grave do locutor reforçava que ordem e confiança produziam o bem-estar da comunidade. Um resumo, uma plataforma e uma síntese válidos para o país e para a minha casa. Era preciso respeitar, seguir as instruções, confiar, ousar sem excessos, avançar, e, se fosse o caso, até pular no vazio – haveria mãos fortes à nossa espera, mesmo que esses avanços pudessem aprofundar algumas rusgas domésticas. Diante do futuro novo carro, minha mãe deixou escapar um comentário que revelava o medo de que, a bordo daquele símbolo de poder e de boa condição econômica – estava bem de vida, como se dizia –, seu marido ficasse ainda mais atraente aos olhares de outras mulheres. As mocinhas da loja e da Associação vão gostar muito do Opala, é capaz até de pedirem para dar uma voltinha, né, Jorge? Papai ignorou a provocação que aprofundava uma suspeita frequente, renovada a cada noite em que ele chegava de madrugada por conta dos, segundo ele, inadiáveis compromissos na Associação Comercial de Madureira.

Avante, como pregava o hino da minha escola, particular, que ficava na Abolição, bairro grudado a Piedade, onde morávamos. Estudando, sempre estudando, e o futuro nos livros alcançar – ensinava. Canção que dava salvas ao torrão brasileiro, que classificava nossa história de patrimônio universal, um exemplo para o mundo inteiro: “Descoberta de Álvares Cabral/ E o Grito de Pedro Primeiro”. Tudo seguia assim, de forma gloriosa, sempre para frente, sem obstáculos, trajetória linear que unia passado, presente e futuro. Um destino que autorizava a remoção de qualquer obstáculo que pudesse impedir vitórias como a compra de uma casa ampla e de um carro maior. Tudo como no Brasil em que acreditávamos, um país que ia pra frente.

O negócio foi fechado na mesma tarde, papai pagou à vista, pegaria o carro em quatro dias. Imaginávamos que a compra seria a única grande novidade daquelas semanas, não tínhamos como prever o que viria poucos dias depois de meu pai virar a chave e acionar o motor do Opala. O velho Fusca também testemunharia algumas surpresas.

Fernando Molica chega ao seu sexto romance merecendo muitos aplausos. Apresento aqui apenas um motivo para você correr atrás dele: é eletrizante. Lê-se “Elefantes no céu de Piedade” sem pestanejar.
Os outros motivos você vai encontrar na apresentação do livro, feita pela querida escritora Cintia Moscovich, e nos arremates do não menos queridíssimo Marcelo Moutinho, na contracapa:
“Este é um livro sobre a inocência, mas também sobre a importância da memória como antídoto contra as tiranias”.
A edição, muito boa de ler, é da Patuá:www.editorapatua.com.br

Antônio Torres

Acabei de ler seu livro e estava indócil para lhe dizer quanto gostei. Você conseguiu uma coisa raríssima e muito difícil: manter o mais absoluto controle de uma narração que lida com história, memória e política, sem perder nada da qualidade literária. A economia do seu relato é assombrosa. O resultado, contundente. De tirar o chapéu! Parabéns.
É admirável como você não se deixou enredar em boas intenções nem escorregou em pautas ideológicas prévias. Soube contar a história com a força que ela merece e a língua bem domada é capaz de revelar. Muita gente boa, de nome consagrado, já naufragou nessas águas.
Vou sair contando a todo mundo quanto gostei e respeito seus elefantes no céu de Piedade.

Ana Maria Machado

O @fmolica escreveu um romance tão bonito e tão cheio de verdade sobre uma infância suburbana de classe média no Brasil da ditadura, início dos anos 70, que só depois do ponto final a gente entende que ele está falando de hoje, de agora. E também que não, não somos menos tristes do que aqueles personagens – talvez até sejamos mais, porque tivemos a chance de aprender e não aprendemos, não estamos aprendendo. Ou estamos?

Sérgio Rodrigues

Li o seu livro ainda no RJ, e gostei muitíssimo. Não só pelo tema – a vida quotidiana, em ditadura – mas também pela violência que foi para o pequeno narrador e sua irmã ter de guardar um segredo de que nada entendem e nada sabem. O ponto de vista escolhido é duplamente interessante, e compreendemos o desfecho, inesperado mas também violento. Chega sempre um momento em que a ditadura não se aguenta mais, e se reage por vezes de modo imprevisível.
Vi as páginas a negro como um corte no tempo, e um corte no estilo. O que depois aconteceu é já relatado noutro registo, mais distanciado, sucinto e “apenas” factual. Mas há todo um mundo de sombras, ameaças, dúvidas, interrogações, que permanecem, também nestas últimas páginas. A atmosfera de pesadelo, que atravessa o quotidiano, não se dilui no fim.Os elefantes caindo do céu e rebentando são uma excelente metáfora do que não queremos olhar – resistimos a olhar, por medo, incredulidade,inconsciência ou desinformação, até ao momento em que a realidade desaba de repente sobre nós.
O Brasil passou por uma ditadura militar na altura em que você era ainda muito jovem, e suponho que o “narrador” é em certa medida autobiográfico.
Quando se atravessa um tempo assim não há como não falar dele. Daí a força e a sedução muito peculiar do livro.

Teolinda Gersão

A construção de um romance calcado na memória de uma criança é uma estratégia arriscada. Fazer um livro sobre ditadura militar, depois de tantos lançados nas últimas décadas, também. Mas Molica consegue se equilibrar colocando como protagonista um bairro.
Há aqui uma história – um núcleo familiar comum do subúrbio dos anos 1970 cuja vida é de certa forma interrompida pela chegada de um primo que precisa se esconder por um tempo – e dentro dela outras desdobram-se sem pressa. O pai, trabalhador, dono de loja em Madureira; a mãe, dona de casa; a filha virando mocinha (para usar um termo da época), o menino que lembra, ainda na corda bamba entre a fantasia de criança e a incerteza do que não entende.
Mas o grande barato do romance é o bairro, a rua do subúrbio carioca – e aqui ele se aproxima do romance “O amor dos homens avulsos”, do Victor Heringer. É o pé no chão ao jogar bola na rua com golzinho de chinelo, é a fofoca de meninos e meninas adolescentes, é fazer parte da vida dos adultos, mas não entender o que está em jogo ali.
Numa rua de Piedade cabe o mundo do Brasil da ditadura. E como o Marcelo Moutinho fala na quarta-capa, “ela deixa marcas em nossas existências individuais.” E é por isso que outro livro sobre o período da ditadura militar no país é necessário, ainda mais no Brasil de 21/22.

Flávio Izhaki

Terminei a leitura de Elefantes no céu de Piedade, do amigo Fernando Molica, emocionada. Por muitos motivos mas, principalmente, por ter relembrado minha própria infância, tão parecida – o clima familiar, o primo escondido em casa (no nosso caso, um primo e um amigo vindos de Recife), a ambiguidade de sentimentos dos pais diante da ditadura militar, até mesmo a Brasília (o carro).
Elefantes no céu de Piedade trata de um tema pouco abordado na literatura brasileira: a vida das pessoas comuns sob o tacão dos militares. Mas o fato é que nada consegue ser comum sob um regime de força. Por mais que tentem se adequar, as pessoas são sempre frágeis demais diante do Estado.
A escolha do narrador – um menino de dez anos – é um belo achado (as ditaduras sempre tratam seus sujeitados como se fossem crianças, não?). Com uma escrita segura e técnica impecável, Ferando Molica nos deu um belo livro.
Elefantes no céu de Piedade está à venda no site da editora Patuá e em algumas livrarias físicas no Rio de Janeiro (acho que tem na @livrarialeonardodavinci e imagino que também na @folhaseca37).

Rosa Maria Strausz

O jornalista Fernando Molica é também um excelente romancista. Seu novo livro, “Elefantes no céu de Piedade”, lançado pela Editora Patuá, conta a história de uma família classe média que mora no subúrbio carioca de Piedade, cuja vida é alterada pela chegada de um primo, vindo do Espírito Santo. Mas não há qualquer interferência divina de piedade do espírito santo sob o destino do primo. O que paira no ar o tempo todo é a presença simbólica de elefantes no céu que todos se recusam a ver, preferindo estabelecer um pacto de silêncio criminoso.
O enredo é narrado sob a perspectiva de um garoto de 11 anos na época da ditadura militar no Brasil. Essa visão de um momento histórico sob a perspectiva infantil nos remete ao primoroso filme de Edgard Navarro, “Eu me lembro” (2005), que se utilizou da mesma estratégia narrativa.
No romance de Molica, o garoto vai, aos poucos, perdendo sua inocência à medida em que vai descobrindo as mentiras fabricadas pelo novo governo, nas quais todos ao seu redor acreditavam. Só após descobrir o envolvimento de membros de sua família nas ações contra a ditadura, o personagem narrador começa a desconfiar da história oficial inventada para o controle da população. Com uma linguagem bastante atrativa ao leitor, por vezes com tons poéticos, o narrador nos conduz a um tempo antigo em que cenários de uma novela escondiam uma luta silenciosa pela liberdade e pela recuperação de direitos civis subtraídos.
Destaca-se, no livro, o capítulo sobre a memória como construção, como exercício de criação e ficção, e a tentativa do escritor de ser fiel aos fatos, mesmo sabendo que eles passam pelos filtros da memória através dos anos: “O passado é vivo, mutável, escorregadio. Não somos, ao reconstruirmos histórias, as mesmas pessoas que as vivenciaram ou testemunharam” (p. 138). Apenas pela leitura deste capítulo já vale a pena lê-lo. Mas a história de Cacá e seu primo sobre um período fatídico de nossa História nos arrebata e justifica toda sua leitura, do início ao fim.

Décio Torres

“Foi mais ou menos em 1974. Os Secos&Molhados estavam bombando e havia também aquele clima de Copa do Mundo, essas coisas. Eu tinha 7 anos, por aí. Vi quando meu pai convidou um primo dele para vir morar com a gente. O cara queria prestar concurso pro Banco do Brasil. Isso foi em Santarém, interior do Pará, que na época era ainda mais longe do Rio. Ele veio. Não sei quantos anos tinha. Talvez 20, ou 25, não sei. Também não sei quanto tempo ficou lá em casa, mas lembro que passou para o BB, teve festinha.
Um dia ele sumiu, desapareceu, escafedeu-se. Sem aviso prévio. Quando voltei da escola, fim de tarde, minha mãe falou que ele tinha saído levando a mala, mal se despediu dela. Meu pai ficou triste quando soube. O primo sequer deu tchau pra ele – agradecer, muito menos. Foi-se. Esqueci o nome dele, e que se dane.
A gente que é moleque curioso ouve muita coisa, bate as conversas alheias no liquidificador, mistura tudo, fica imaginando coisas. Foi assim que um dia misturei essa parábola do primo ingrato com as histórias de sumiço de militantes políticos, torturas etc e tal. Bem anos 1970. De vez em quando pensava nessa história: estudante do interior é cooptado pela esquerda para tocar la revolución através da luta armada – e esse “terrorista” tinha que ser justamente o cara que morava lá em casa. Emocionante.
Bom. Esses e outros casos meus daquela época, que sinceramente estavam no fundo da minha memória perneta, me vieram à tona ontem, ao fim da leitura do “Elefantes no céu de Piedade”, do camarada Fernando Molica. O livro será lançado hoje, mas não resisti e li antes, tô nem aí. Baita Bildungsroman, um romance de formação, uma narrativa mostrando o mundo pelo olhar de uma criança. O Molica explica tudo aí no vídeo em anexo. Meu recado é: leia.
Com frequência, esses romances de formação saem meio imbecilizados, porque pessoal escreve quase no tatibitate, com a chupeta metida na orelha – confundem o lúdico com algo infantiloide e acham isso bonito. Não é o caso desse “Elefantes…”. É um retrato bem cuidadoso de uma época e um cenário importantes para o Rio de hoje. E o melhor: baseado em fatos, que frequentemente são mais criativos que a ficção.
À parte isso, fico muito feliz por ter usado a palavra Bildungsroman. Ganhei meu dia.

Nelson Vasconcelos

“Tio Alfredo ficou quatro dias preso, sem direito a advogado ou a visita. Tia Laura e meus pais nem sabiam para onde ele tinha sido levado. Dessa vez, a delegacia da Rua Goiás informou que não tinha qualquer registro de sua prisão, por lá não passara. O Opala recém-comprado iria a outras delegacias, a batalhões da Polícia Militar, e nada. Em todos os locais a resposta era a mesma, não havia qualquer informação sobre o tio, O senhor tem mesmo certeza de que ele foi levado pela polícia?”
Famílias comuns em pânico com o vôo baixo da ditadura militar, mostrando as trombas no céu e no chão; marcas de sustos e de covardias de um tempo que quem viveu não esquece (nem deve); um menino impressionado com o tamanho do banco dianteiro de um Opala, uma nova casa para a família, a vida sendo feita “de certezas”. Narrativa certeira, pungente e poética do jornalista e escritor Fernando Molica, um dos textos mais enxutos e seguros do jornalismo e da literatura.

Luis Pimentel

Tirei essa foto sob o céu do Largo São Francisco da Prainha e guardei para o momento em que, enfim, tivesse lido sobre o que havia no céu de Piedade a ponto de elefantes voarem por lá. Como lá e cá, à época dos fatos, como em todo o país hoje, imensos Dumbos serpenteiam pelo ar por mais que os ignoremos. Os mamíferos sobre nossas cabeças vem de uma piada mineira que meu compadre @fmolica ressignifica para situar seu romance na ditadura militar. A piada, ele explica no livro, também nos revela como permanecemos atônitos e coniventes diante do arbítrio, que é indiscreto como só poderiam ser os paquidermes suburbanos do meu parceiro.

O livro é um thriller, acelerado, em que toda a ação se constrói na tensão que há entre o novo morador do quartinho de empregada (e faz pensar na própria existência do local e do termo, o espaço onde fica o que tentamos ignorar) e a vida feliz de uma família de classe média, vascaína e contente com seu Opala dos tempos do milagre econômico. O morador é contestador e faz o personagem mais novo desconfiar que, afinal, havia algo estranho em Piedade e no país.

Mais não digo, porque o livro vai de uma tacada só. Há, ainda, uma singela reflexão sobre o lugar da memória nesses tempos bicudos, valeria o escrito só por ela.

O velho Marx diz que a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. Tem um sentido histórico aí que não me cabe, e gente mais capacitada do que eu sabe discutir os conceitos da frase no detalhe. Mas o que a vida brasileira tem mostrado é que se repete, sim, mas primeiro como tragédia, depois como prolongamento de uma mesma tragédia. Da nossa insistência em ignorar violências e violações variadas, imensas como elefantes no céu.
A história que Molica conta é excelente e, sobretudo, um alerta.

Leandro Resende

“Elefantes no céu de Piedade”, de Fernando Molica , é exemplo da boa literatura produzida atualmente no Brasil. Li e recomendo.

João Carlos Viegas

Terminei a leitura sem querer virar a última página! Parabéns, Fernando Molica ! Fiquei imaginando um filmaço a partir do enredo do livro! Piedade entrou para o Parnaso da literatura brasileira!!! Corram, cineastas!

Isra Toledo Tov

“Amigo, o livro é bom demais. A qualidade da sua escrita é fato, a história, especialmente para nossa geração, tem referências sentimentais profundas. Foi com prazer e certa melancolia que fiz a viagem por sua história – que é de muitos.
Parabéns.

Denise do Passo

Terminei de ler Elefantes no Céu de Piedade de autoria de Fernando Molica . Como imaginei, li em gute em gute, em uma só sentada. O romance nos prende, pegou não larga.
O título baseado numa piada mineira, onde dois caipiras mineiros veem elefantes como se fossem passarinhos sintetiza o enredo.Sob o olhar de uma criança os elefantes vão surgindo nós céus do Brasil, mas os adultos, por comodidades e motivos diversos, fingem em não vê-los.
Ditadura, casas novas, futebol,Opala( onde no banco inteiriço da frente caberia o mundo), famílias de classe média, em seus silêncios, apoiavam o regime opressor.Mas, como já se disse, a realidade é um soco no estômago e não há como escapar de seus efeitos.
Molica retrata um mundo real vivido por muita gente, pessoalmente me senti dentro da trama.
As pessoas quiseram ver passarinhos no lugar dos elefantes, elas sabiam da ditadura.Assim como hoje, não dar para fingir que nada está acontecendo.
Na época alguns ganhavam, mas havia muito arrocho, fome, prisões,torturas,censura, exílios e muita propaganda do Brasil grande potência e o Ame-o ou Deixei-o.
Hoje temos muita fome e mais de 700 mil mortes pela PANDEMIA. Não dá para continuar vendo elefantes voando…
Comprem e leiam Elefantes no Céu de Piedade, vale muito a pena.

Carlos Pereira Neto Siuffo

Li em duas etapas o livro que é de se ler em uma só. Molica é um querido amigo, seu último livro já estava na lista de prioridades da vida e foi o primeiro a ser destrinchado entre os muitos que comprei para ler neste fim de ano. Elogiada por craques muito mais gabaritados do que eu, inclusive porque não tenho gabarito algum, é uma obra necessária ao nosso tempo. De fácil leitura – o autor é bom nisso -, o livro trata as memórias de um jovem de 11 anos criado por uma família de classe média no subúrbio carioca até certo ponto alheia às atrocidades da ditadura. Uma realidade totalmente oposta à minha, mas idêntica à maioria das famílias brasileiras, o que ajuda a entender e explicar muita coisa. E tomara, evitar tantas outras. Golaço, @fmolica.

Caio Barbosa

Quero dividir com vocês o prazer que senti lendo ‘Elefantes no céu de Piedade’. Lendo não, devorando. Pela elegância de quem soube condensar tudo o que importa e dispensar gordura, pela habilidade de vasculhar a alma de um povo que queria acreditar no progresso dos anos 70 mas não podia ignorar o odor dos quartéis. E pela intensidade com que o autor ensina a arte de ser fiel à realidade nas invenções que precisam ser feitas para rechear os lapsos da memória. A maturidade da escrita é irresistível.
Parabéns, Fernando Molica. Você fez um livro obrigatório.

Aziz Filho

Ao contrário de Argentina, Chile e Uruguai o Estado e a sociedade brasileiros, de modo geral, não olham de frente as marcas da ditadura militar.
No lugar disso, de uns anos para cá há um trabalho espúrio de tentar abrandar suas chagas.
No Brasil, o avivamento da memória desse tempo de horror é tarefa executada principalmente pelas artes, e a literatura se destaca em manter em evidência as hashtags Para que Nunca Esqueçamos Para que Jamais se Repita.
Elefantes sobre o Céu de Piedade, novo livro de Fernando Molica, arregaça as mangas e faz esse trabalho, mostrando um ângulo de visão diferente sobre a brutalidade daqueles tempos.
Revela também que não apenas quem se envolveu na luta armada, promoveu reuniões, participou de passeatas ou lia e guardava livros “suspeitos” sofreu as consequências de 20 estúpidos anos da vida nacional.
Como toda forma de expressão que é veículo para que não se esqueça da barbárie, o livro de Molica é importante, principalmente nesses tempos em que o passado vive de ameaçar o presente e assuntar o futuro.

André Giusti